Defesa estética da democracia

Ler Eugênio Bucci tem uma utilidade: entrar na mente da esquerda brasileira munido de GPS, e não às escuras e no meio do tiroteio que caracteriza as palavras de ordem e os discursos políticos. Podemos, assim, ter uma ideia mais clara de quais são os valores que levam alguém a votar até em Lula para tirar Bolsonaro do poder.

A tese do artigo de hoje é que o cidadão leitor de jornal (os “detentores do poder”) dão de ombros para os sistemáticos ataques à democracia perpetrados pelo governo Bolsonaro, de modo a evitar uma suposta “volta da corrupção” em um novo governo do PT. Estaria, assim, a imprensa fazendo papel de boba (daí o título do artigo), revelando coisas que os “detentores do poder” já sabem e com que pouco se importam.

Eugênio Bucci nunca me decepciona, e dessa vez não seria diferente. Sua análise peca em três dimensões: factual, moral e conceitual.

Na dimensão factual, a mais saliente e risível, Bucci afirma que não há que se ter medo de uma “volta da corrupção” porque “aquelas condutas criminosas foram julgadas e condenadas e muitos foram parar na cadeia”. Segundo essa narrativa, Lula seria uma espécie de ilusão de ótica, pois continua preso pela propina que recebeu na forma do triplex e da reforma do sítio do seu amigo.

O erro moral do articulista é considerar que a sua própria escala de valores é universal, e que as pessoas, conhecendo essa escala de valores e não a seguindo, não passam de seres cínicos abjetos. O ponto é que “corrupção” e “democracia”, os valores abordados no artigo, são apenas duas das dimensões que importam para escolher um candidato. “Economia” e “valores morais” são outras dimensões possíveis. Há pessoas, por exemplo, que não votam de jeito nenhum em um candidato que defenda que o aborto seja uma questão de “saúde pública”, assim como há pessoas que votam no primeiro candidato que lhes prometa uma cesta básica. Para essas pessoas, “democracia” e “corrupção” passam longe de suas principais preocupações, sem que se tornem, necessariamente, seres moralmente reprováveis.

Mas Eugênio Bucci escreve sobre e para os “detentores do poder”. E, para estes, “democracia” deveria ser um valor inegociável, no que tendo a concordar. Afinal, sem uma democracia plena, Bucci não poderia escrever o que escreveu, nem eu poderia estar escrevendo o que estou escrevendo. O problema está no conceito que cada um tem de democracia, o que vai influenciar o modo como analisa a realidade à sua volta. Este é o terceiro erro do artigo.

O articulista acusa o governo Bolsonaro da maior das corrupções: o aparelhamento do Estado e a sabotagem das instituições democráticas. Ele não nos fornece exemplos concretos, mas podemos imaginar o que vai em sua mente: pastores pedindo propina no MEC, ministério da saúde sabotando a vacinação, ministério do meio-ambiente queimando a Amazônia (esse exemplo ele deu), emendas secretas e por aí vai. Tudo isso pode ser muito grave, não vou aqui entrar no mérito. Meu ponto é outro.

Bucci realmente considera o governo do PT superior ao governo Bolsonaro em matéria de respeito às instituições democráticas. Pode parecer ilógico, mas não surpreendente. Afinal, o próprio Lula afirmou que a Venezuela de Chavez sofria de “excesso de democracia”. E a esquerda, até hoje, baba ovo para o regime liberticida de Cuba.

A questão central é que a anti-democracia de Bolsonaro só foi possível porque, antes, tivemos a anti-democracia do PT. Bolsonaro é cria do PT, um partido que já deveria ter sido extinto em 2005, quando se descobriu que pagou fornecedores com contas offshore. Aqueles que viram o rosto diante da feiúra do governo Bolsonaro são os mesmos que tinham reparos apenas protocolares aos “mal-feitos” do PT. Bolsonaro é somente o verso da tapeçaria da corrupção dos valores democráticos que o PT teceu com tanto esmero ao longo de seus anos no poder.

Eugênio Bucci seria muito mais crível em suas críticas aos “detentores do poder” se reconhecesse que o PT é tão deletério à democracia quanto Bolsonaro. No entanto, Bucci quer apenas virar o tapete novamente para cima, para que a destruição da democracia tenha, ao menos, uma cara elegante. A sua defesa dos valores democráticos é apenas estética.

Confiança 100%

A urna eletrônica é suficientemente segura. Repare que não disse “100% segura”. Não existe nada no mundo que seja 100% seguro. Quem faz gestão de riscos sabe que o máximo que se consegue fazer é mitigar riscos, nunca eliminá-los 100%. A urna eletrônica veio substituir a votação em papel justamente para diminuir o risco de fraude eleitoral. Não eliminar, mas diminuir.

A urna com o voto impresso acoplado seria um avanço para a auditoria do voto, aumentando ainda mais a segurança do processo. No entanto, dado o atual nível de segurança, já bastante robusto, concluiu-se que o custo adicional, além de possíveis problemas mecânicos que poderiam inviabilizar um número alto de urnas, não valeriam a segurança adicional. Em nossas casas fazemos a mesma conta o tempo inteiro: reforçamos a segurança até que o custo da segurança adicional não compensa o seu custo.

A pergunta feita pela enquete da Jovem Pan tira proveito dessa falha cognitiva ao perguntar se o internauta confia TOTALMENTE no processo eleitoral.

“Totalmente”, talvez eu mesmo, que confio no processo, respondesse que não. Não dá pra confiar em nada “totalmente”. O risco sempre vai existir. Confiamos de maneira razoável. Não se trata de 100% de segurança ou zero. Há um nível de risco em que podemos nos sentir confortáveis, a ponto de entrar em um avião e ter razoável certeza de que chegaremos ao nosso destino.

O público da Jovem Pan, uma rádio de apoio ao bolsonarismo, é enviesado. Qualquer enquete terá como resultado a tese bolsonarista, qualquer que seja. O uso da palavra “totalmente” só agrava a situação, o que, provavelmente, era a intenção da rádio. A enquete só confirma o que já sabemos: os bolsonaristas não confiam na urna eletrônica. Na verdade, a urna eletrônica serve como um bom bode expiatório para colocar em dúvida o processo eleitoral. Donald Trump e seus seguidores tiveram muito mais trabalho para alegar fraude eleitoral. Precisaram inventar uma série de histórias diferentes (todas elas devidamente refutadas, escrevi um longo post a respeito) para defender a tese da fraude. Aqui no Brasil é muito mais fácil: o TSE, que não é simpático a Bolsonaro, deixa propositalmente um flanco aberto para a ação de “hackers” a serviço dos adversários de Bolsonaro. Como isso se daria em grande escala, dado todo o processo, não fica claro, mas isso é o de menos quando se trata de “provar” uma tese.

O fato é que Bolsonaro está há muito tempo preparando o terreno para a tese da fraude. Uma parcela da população, a que segue Bolsonaro, está absolutamente convencida de que o processo é fraudulento, independentemente do resultado. Portanto, resta inútil qualquer tentativa de “provar” a segurança das urnas. Quem está convencido da tese não necessita de “provas”.

A invasão do Capitólio foi o ponto alto (ou baixo, a depender da perspectiva) da tese da fraude nos EUA. Aqui, bolsonaristas mais exaltados poderão tentar algo parecido se Bolsonaro for derrotado, mas dificilmente terão mais sucesso do que o exército brancaleone de Trump conseguiu, dado que igualmente não terão apoio institucional. Restará o chororô e a disputa política para a próxima eleição. Que será igualmente apurada em urnas eletrônicas, as mesmas que deram a vitória a Bolsonaro em 2018.

PS1: figura retirada de um post de Joel Pinheiro da Fonseca.

PS2: no post citado acima, há um vídeo de um debate sobre segurança das urnas entre um técnico do TSE e Diego Aranha, o crítico mais vocal sobre a segurança das urnas eletrônicas. Vale assistir para entender melhor a questão.

O rei das redes

A coluna do Estadão constata o óbvio: Bolsonaro domina as redes.

Só acho que o diagnóstico está errado. O colunista sugere que Bolsonaro tem adotado uma “estratégia” para chamar a atenção, que seria a da “provocação” a artistas e rivais. Na verdade, penso que o engajamento citado é fruto de uma coisa bem mais simples: tamanho da audiência.

No Instagram, Bolsonaro tem pouco menos de 20 milhões de seguidores contra 4,5 milhões de Lula. 800 mil curtidas é um bom engajamento, mas explicável pela base de seguidores. Lula pode esperar cerca de 1/4 disso nos seus posts mais populares.

No Twitter, Bolsonaro tem 7,5 milhões de seguidores contra 3,3 milhões de Lula. Não à toa, seu post sobre a aliança Lula-Alckmin teve o dobro de curtidas do que o do seu adversário do PT sobre o mesmo assunto.

Bolsonaro entendeu antes de todo mundo a importância das redes. O seu volume muito maior de seguidores é fruto de um trabalho de anos, não de meses. Além disso, Bolsonaro usa as redes com a linguagem das redes, e não como uma página oficial com discurso insosso. E mais: sua interação soa autêntica, pois é o mesmo discurso que seus seguidores ouvem no cercadinho do Planalto. Muito diferente de tentativas toscas de Ciros e Alckmins da vida, que contratam marqueteiros para “acertar o tom”. Seu “kkkkkk” como comentário sobre a aliança Lula-Alckmin é exemplo acabado desse fato.

Assim como a motociata, seguidor no Instagram não significa necessariamente voto na urna. Mas se as redes sociais tiverem em 2022 a mesma importância que tiveram em 2018, Bolsonaro sai com vários corpos de vantagem. Não é à toa que seus adversários estão pedindo que o juíz consulte o VAR para verificar se o presidente não está impedido.

Carro, objeto cada vez mais de luxo

Fiquei espantado com uma reportagem do Valor Econômico de hoje, ao constatar que dos 10 modelos de carros mais vendidos no Brasil no 1o trimestre deste ano, 5 têm valor acima de R$ 100 mil. Modelos como T-Cross e Compass estão entre os 5 mais vendidos, em um ranking que não há muito tempo era dominado pelos modelos básicos.

Fui dar uma olhada nos emplacamentos de veículos zero, estatística mantida pela Fenabrave. Em 2022 foram emplacados 300 mil veículos no 1o trimestre. Em 2021 foram 400 mil e em 2019, nada menos do que 500 mil no mesmo período (pulei 2020 por ser o ano da pandemia). No 1o tri de 2013, pico da série histórica, foram emplacados 660 mil veículos. O fato é um só: o comprador de menor poder aquisitivo foi expulso desse mercado.

O Brasil está fazendo a sua parte para conter os gases de efeito estufa.

A autonomia da criança japonesa

No início da década passada, fui ao Japão algumas vezes profissionalmente. Uma coisa que me impressionou foi ver crianças pequenas (estimo com 7/8 anos de idade) andando desacompanhadas no metrô de Tóquio. Uniformizadas, estavam se dirigindo à escola. Anexei algumas fotos que eu mesmo tirei. Lembrei disso ao ler a notícia de que a Netflix vai reproduzir um reality show japonês que trata justamente desse assunto, a autonomia das crianças japonesas.

Em contraste, no mesmo jornal, reportagem sobre a “antiga” região da cracolândia, no centro de São Paulo, colhe depoimentos de moradores que reconquistaram o espaço. Um deles conta que agora pode deixar seu filho de 11 anos ir sozinho até a escola, que fica a UMA QUADRA da sua casa. Antes, ele precisava acompanhá-lo.

A surpreendente autonomia das crianças japonesas é uma questão cultural sim. Mas não se pode abstrair do fato de que vivem em uma sociedade muito mais segura, em que se espera que as crianças serão cuidadas e não abusadas pelos estranhos. Eu, particularmente, procurei ensinar meus filhos desde cedo a andarem sozinhos pela rua e a usarem o transporte público. Mas isso quando já estavam entrando na adolescência, não quando ainda eram crianças. Penso que deve haver um equilíbrio entre a neura da segurança (que é um problema real) e o dever de criar adultos autônomos. Em uma sociedade como a brasileira, trata-se de um equilíbrio difícil, mas necessário.

A motociata como proxy para o voto

Mais uma “motociata” liderada pelo presidente Jair Bolsonaro. Mais uma interminável discussão sobre o real tamanho do evento. Desde os 3 mil medidos no pedágio até os 70 mil da maior conta que vi, dando um passeio pelo Twitter, a disputa sobre a adesão à procissão da sexta-feira santa tomou conta das redes. (Vou deixar de fora a estimativa de R$ 20 milhões arrecadados de ICMS só com a gasolina das motos. Considerando um consumo de 30 km/l, 240 km de percurso, R$ 7,50 por litro e 25% de alíquota, teríamos 1,3 milhões de motos. Seria o milagre da multiplicação das motos).

Digamos que tenham sido 70 mil motos. Segundo o Detran, em abril de 2021 havia 1.076.861 motos na cidade de São Paulo. Considerando que a cidade represente 60% da população da região metropolitana, teríamos um total de 1,8 milhão de motos na Grande São Paulo que potencialmente poderiam participar do evento. 70 mil representam cerca de 4% desse total. Quantos eleitores esses 4% representam? Difícil dizer. Se um em cada 10 motociclistas eleitores de Bolsonaro tenham decidido aderir à motociata, esses 70 mil representariam 40% dos votos entre motociclistas. Em termos comparativos, as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff chegaram a juntar 2 milhões de pessoas na Paulista, ou mais de 10% da população TOTAL da região metropolitana, não somente de motociclistas. E é neste ponto que temos a pegadinha.

Note que temos uma amostra enviesada. Motociclistas, em geral, são homens e têm renda superior a 2 salários mínimos por mês. Nesse estrato da população, Bolsonaro colhe seus melhores resultados. Ele apanha entre os pobres e as mulheres. Portanto, 40% de uma parcela que lhe favorece (ainda mais em São Paulo, não no Nordeste) não parece ser algo que chame especialmente a atenção. E isso porque estressamos o número de motos (70 mil) e a proporção de motociclistas que votam em Bolsonaro dispostos a dar as caras no evento (10%).

Na verdade, pouco importa se foram 3 mil ou 70 mil. Como vimos acima, isso é pouco relevante do ponto de vista do número de votos. Bolsonaro conseguiu seu intento de produzir imagens marcantes e tomar conta do debate nas redes. Essas imagens serão usadas como “evidência” do grande apoio popular ao presidente, e como a derrota nas urnas somente pode ser explicada por fraude.

E antes que alguém lance mão do whataboutismo, o fato de Lula não ter se aventurado, por enquanto, em eventos públicos, não significa absolutamente nada. A coisa mais fácil de produzir são imagens de multidões, e elas serão produzidas pelo petista, podem estar certos. Bolsonaro foi muito esperto, e sacou essa da motociata, em que as motos ocupam muito mais espaço do que pessoas e passam a sensação de multidão muito mais facilmente. Serve como peça publicitária, mas não como antecipação do que será o voto na urna.

A moralidade como atributo humano

Meu amigo Cleveland Prates postou uma notícia inusitada: uma onça pintada teria sido “cancelada” no Twitter por ter “assassinado” uma capivara. Na verdade, o cancelado foi o fotógrafo da cena, que registrou o momento e postou em sua conta Biodiversidade Brasileira, que registra cenas da vida animal. Infelizmente, o tuíte foi apagado, então as reproduções abaixo são da reportagem do UOL.

Atribuir comportamentos humanos a animais não é algo novo. Os Irmãos Grimm, no século XVIII, compilaram várias fábulas envolvendo animais. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, conta a história de uma menina e sua avó, vítimas de um lobo “mau”. Bem, lobo não é mau ou bom, lobo é lobo, vai simplesmente seguir o seu instinto e caçar o suficiente para se alimentar. Mas na fábula o lobo personifica a maldade humana.

Walt Disney elevou à enésima potência a humanização dos animais. Ratos, cachorros, elefantes, leões, enfim, a fauna toda foi transformada em seres humanos, em um fenômeno que chamo de “disneyficação” da natureza. Crescemos nesse ambiente, a ponto de alguns realmente acreditarem que os animais tomam decisões morais, como demonstra as reações ao post da onça pintada que ataca a capivara. Ou, no mínimo, colocando filtros morais em atos envolvendo animais.

A coisa chega a níveis paradoxais. Brigas de galo, por exemplo, são proibidas, pois se trata de maus tratos a animais. No entanto, o boxe, que é uma especie de briga de galo com regras, é um esporte olímpico. A diferença está, claro, no livre arbítrio. Os boxeadores estão lá porque querem, ao passo que os galos são colocados para brigar contra a sua “vontade”. Claro, os galos não têm vontade, eles seguem o seu instinto quando colocados juntos. Quem reveste de moralidade este ato somos nós, os seres humanos.

Como tudo o que envolve decisões morais, a zona cinzenta é gigantesca. Muitos são vegetarianos porque entendem que a forma de criar e matar animais é desumana. Alguns, inclusive, atribuem aos animais características morais, o que faria da morte de um animal um assassinato, da mesma forma que a onça “assassina” a capivara. Seja pela forma de matar, seja pela morte em si, os animais são elevados à condição humana.

A grande confusão está em que o ser humano é bem parecido com os animais, mas só até certo ponto. Há algo que não compartilhamos com os animais, e esse algo é o nosso julgamento moral. Animais seguem seus institutos de sobrevivência em 100% do tempo. Nós também seguimos o nosso instinto de sobrevivência, mas somos capazes de outras considerações de ordem moral que limitam a nossa busca pela sobrevivência a qualquer preço. Duas pessoas em situação de desespero podem tomar decisões diferentes sobre como vão sobreviver, a depender de sua formação moral.

Nessa escala da natureza, é como se o ser humano pertencesse ao reino animal mas tivesse uma participação em uma espécie de centelha divina, o que o obriga, para o seu desespero, a estar, o tempo inteiro, classificando todos os atos do universo nas colunas de “certo” e “errado”. No filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, os macacos são todos iguais, até que um grupo encontra um monólito negro misterioso, que lhes dá a capacidade de fazer o bem e o mal. Aquele monólito significa essa “centelha divina” que nos diferencia de todo o reino animal, pois nos faz seres morais.

Hoje é sexta-feira santa, dia em que os cristãos recordam a morte de Deus. Deus não morre, por suposto, mas a fé cristã afirma que Deus se encarnou em um homem, e este homem morreu hoje. É, de alguma forma, o reconhecimento de que os seres humanos somos em parte animais e, em parte, deuses. Alguns resumem todos os conflitos humanos a uma simples luta pela sobrevivência, como se fôssemos puros animais com um cérebro maior. Discordo dessa visão. Os nossos conflitos são, antes de mais nada, morais. Lutamos pelo que achamos certo.

Boa Páscoa a todos!

Os planos estão na mesa

Jean Paul Prates deve ser o ministro das Minas e Energia em um futuro governo do PT. Para que ninguém reclame de que não foi avisado, ele deixa muito claras suas ideias. Que, de resto, são as velhas ideias do PT.

Segundo Jean Paul, a existência de estatais é imprescindível para sanar “falhas de mercado”. Por exemplo, não fosse a Petrobras, o Brasil não teria explorado petróleo em águas profundas. Ele “esquece”, obviamente, que os EUA tornaram-se o maior produtor de petróleo do mundo explorando o xisto sem que fosse necessária a presença de qualquer estatal. Também convenientemente esquece que nossa produção de petróleo está estagnada em cerca de 2 milhões de barris/dia faz anos. No início da década passada, com o pré-sal, a empresa previa uma produção de 4 milhões de barris/dia até 2020. Jean Paul cita também o gasoduto Bolívia-Brasil como uma obra que somente uma estatal poderia fazer. Sério?

Em 2013, uma outra “especialista” em setor elétrico resolveu mitigar “falhas de mercado” para baixar o preço da eletricidade. Não vou aqui entrar em detalhes técnicos, mas a MP 579, baixada pelo governo Dilma Rousseff, impôs perdas bilionárias às empresas do setor. Quer dizer, como se tratava de uma adesão voluntária, e as empresas privadas e estaduais não aderiram ao novo modelo proposto pela gênia da lâmpada do setor elétrico, a MP impôs perdas a apenas uma empresa, adivinha qual. Dica: termina com “bras”.

Resumo da ópera: a Eletrobras carregou sozinha o piano da redução das tarifas, e essa dívida bilionária está tendo que ser saudada através… do aumento do preço das tarifas. Realmente, estatais são muito úteis para fazer esse tipo de barbeiragem.

O que me deixa mais espantado é que o jornalista simplesmente “esquece” de perguntar ao ilustre deputado sobre este período. Parece que estamos diante de uma página em branco, que aceita qualquer desenho. É como se o governo Dilma, que foi um desastre para o setor elétrico, simplesmente não tivesse existido, e o PT tivesse carta branca para cometer os mesmos erros. Como disse o senador Prates, “o PT está comunicando desde já suas ideias”, para que ninguém se sinta enganado. Continua acreditando no “Lula pragmático” quem quer.

A diversidade de Harvard

Os alunos brasileiros de Harvard organizam anualmente uma conferência sobre os problemas brasileiros. Neste ano de eleição, estão presentes todos os pré-candidatos à presidência da República: Ciro Gomes, João Doria, Eduardo Leite, Simone Tebet, Sergio Moro e, representando Lula, Jaques Wagner.

Sentiu falta de alguém? Sim, isso mesmo, cadê o André Janones?

PS.: se você acha que uma conferência que pretende discutir os problemas do Brasil deveria convidar um representante do governo brasileiro, é porque não alcançou o real significado da palavra “diversidade”, que orienta a escolha dos palestrantes.

Aqueles que “podem fazer escolhas”

Pedro Fernando Nery cai na provocação de Lula e se pergunta: será que nosso problema é que a “classe média” (definida pelo colunista como “aqueles que podem fazer escolhas”) consome demais?

Antes de começar, quero dizer que gosto dessa definição, aqueles que “podem fazer escolhas”. No mais miserável barraco da mais miserável favela brasileira você vai encontrar TV e celular. São escolhas, e essas pessoas entram na definição de Pedro Nery para a “classe média”. Sigamos.

Para início de conversa, é preciso reconhecer que, sem poupança não há investimento e, sem investimento, não há crescimento econômico. Este é o mais puro “supply side economy”, justamente o inverso do que Lula e sua camarilha econômica sempre propuseram, que o dinheiro “na mão do pobre” vira consumo e o consumo impulsiona o crescimento. Ciro Gomes pega bem essa contradição, ao chamar de “nacional-consumismo” o modelo econômico do PT, em contraponto ao seu “nacional-desenvolvimentismo”.

Mas voltemos à questão: o brasileiro “que pode fazer escolhas” consome demais? O que seria esse “consumir demais”? Lula refere-se à “ostentação” da classe média (vamos esquecer por um momento o relógio de R$80 mil que o pai dos pobres humildemente ostentava). Pedro Nery refere-se ao pouco gosto que “aqueles que podem fazer escolhas” têm pelo ato de poupar. Somos um país de consumistas.

Isso é verdade. Nosso nível de poupança é dos mais baixos do mundo. Mas o grande despoupador chama-se governo. No breve período de 15 anos em que fabricamos superávits primários (deve ter sido o único período na história do Brasil), usamos esta poupança para pagar os juros da dívida, fruto da despoupança dos anos anteriores. E, desde 2014, temos produzido novamente déficits primários. E de onde vem essa poupança que serve para pagar os juros da dívida e o déficit primário? Sim, vem da poupança dos que “podem fazer escolhas”.

O incentivo à poupança é baixo no Brasil. Temos uma história marcada por confisco e constantes surpresas inflacionárias. Assim, as pessoas que “podem fazer escolhas” escolhem consumir hoje a guardar o dinheiro para um amanhã que não sabem se vai chegar. Somos uma sociedade consumista, a começar do governo, o maior consumidor de todos.

Lula crítica a “ostentação” da classe média por motivos ideológicos. Ele mesmo deve achar esse discurso uma bobagem, mas falando aos seus, divide o mundo em “burguesia” e “proletariado”, sendo que seu partido é a vanguarda do proletariado. É permitida à vanguarda usar um relógio de R$80 mil, na medida em que está trabalhando para a libertação do proletariado de seus grilhões. “Ostentação” é uma categoria que se aplica somente à burguesia, que trabalha para a manutenção de seus privilégios. Pedro Nery toma esse discurso de Lula como uma chamada à poupança. Nada mais longe da realidade.