A moralidade como atributo humano

Meu amigo Cleveland Prates postou uma notícia inusitada: uma onça pintada teria sido “cancelada” no Twitter por ter “assassinado” uma capivara. Na verdade, o cancelado foi o fotógrafo da cena, que registrou o momento e postou em sua conta Biodiversidade Brasileira, que registra cenas da vida animal. Infelizmente, o tuíte foi apagado, então as reproduções abaixo são da reportagem do UOL.

Atribuir comportamentos humanos a animais não é algo novo. Os Irmãos Grimm, no século XVIII, compilaram várias fábulas envolvendo animais. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, conta a história de uma menina e sua avó, vítimas de um lobo “mau”. Bem, lobo não é mau ou bom, lobo é lobo, vai simplesmente seguir o seu instinto e caçar o suficiente para se alimentar. Mas na fábula o lobo personifica a maldade humana.

Walt Disney elevou à enésima potência a humanização dos animais. Ratos, cachorros, elefantes, leões, enfim, a fauna toda foi transformada em seres humanos, em um fenômeno que chamo de “disneyficação” da natureza. Crescemos nesse ambiente, a ponto de alguns realmente acreditarem que os animais tomam decisões morais, como demonstra as reações ao post da onça pintada que ataca a capivara. Ou, no mínimo, colocando filtros morais em atos envolvendo animais.

A coisa chega a níveis paradoxais. Brigas de galo, por exemplo, são proibidas, pois se trata de maus tratos a animais. No entanto, o boxe, que é uma especie de briga de galo com regras, é um esporte olímpico. A diferença está, claro, no livre arbítrio. Os boxeadores estão lá porque querem, ao passo que os galos são colocados para brigar contra a sua “vontade”. Claro, os galos não têm vontade, eles seguem o seu instinto quando colocados juntos. Quem reveste de moralidade este ato somos nós, os seres humanos.

Como tudo o que envolve decisões morais, a zona cinzenta é gigantesca. Muitos são vegetarianos porque entendem que a forma de criar e matar animais é desumana. Alguns, inclusive, atribuem aos animais características morais, o que faria da morte de um animal um assassinato, da mesma forma que a onça “assassina” a capivara. Seja pela forma de matar, seja pela morte em si, os animais são elevados à condição humana.

A grande confusão está em que o ser humano é bem parecido com os animais, mas só até certo ponto. Há algo que não compartilhamos com os animais, e esse algo é o nosso julgamento moral. Animais seguem seus institutos de sobrevivência em 100% do tempo. Nós também seguimos o nosso instinto de sobrevivência, mas somos capazes de outras considerações de ordem moral que limitam a nossa busca pela sobrevivência a qualquer preço. Duas pessoas em situação de desespero podem tomar decisões diferentes sobre como vão sobreviver, a depender de sua formação moral.

Nessa escala da natureza, é como se o ser humano pertencesse ao reino animal mas tivesse uma participação em uma espécie de centelha divina, o que o obriga, para o seu desespero, a estar, o tempo inteiro, classificando todos os atos do universo nas colunas de “certo” e “errado”. No filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, os macacos são todos iguais, até que um grupo encontra um monólito negro misterioso, que lhes dá a capacidade de fazer o bem e o mal. Aquele monólito significa essa “centelha divina” que nos diferencia de todo o reino animal, pois nos faz seres morais.

Hoje é sexta-feira santa, dia em que os cristãos recordam a morte de Deus. Deus não morre, por suposto, mas a fé cristã afirma que Deus se encarnou em um homem, e este homem morreu hoje. É, de alguma forma, o reconhecimento de que os seres humanos somos em parte animais e, em parte, deuses. Alguns resumem todos os conflitos humanos a uma simples luta pela sobrevivência, como se fôssemos puros animais com um cérebro maior. Discordo dessa visão. Os nossos conflitos são, antes de mais nada, morais. Lutamos pelo que achamos certo.

Boa Páscoa a todos!

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