A despolitização da amarelinha

O filme “O ano em que meus pais saíram de férias” conta a história de um garoto que fica sozinho depois que seus pais fogem da ditadura militar. Em uma determinada cena, os terroristas estão assistindo à primeira partida do Brasil na Copa de 70, contra a Tchecoeslováquia, que pertencia então à esfera de influência da União Soviética. Quando os tchecos abrem o placar, os rapazes reagem com frieza, dizendo coisas como “é isso aí”, “muito bom”, “esses milicos precisam aprender uma lição”, e coisas do tipo. No entanto, na medida em que o jogo vai avançando e o Brasil vai construindo a sua goleada, há uma transformação. No gol de empate, os rapazes ameaçam comemorar mas se contém. No último gol, no entanto, a festa é total, se abraçam, gritam gol feito uns loucos. Ou melhor, feito qualquer torcedor normal diante daquele esquadrão.

Lembrei dessa cena quando li essa reportagem sobre a tentativa das marcas de ”resgatar” o simbolismo da amarelinha, supostamente sequestrada por Bolsonaro e seus seguidores.

Antes, uma recapitulação da história.

A camisa da seleção ganhou protagonismo político bem antes da onda Bolsonaro. Foi, digamos, o uniforme dos movimentos pelo impeachment. Portanto, seu significado, antes do bolsonarismo, foi de antipetismo. Uma contraposição à cor vermelha dominante nas manifestações das esquerdas. A camisa da seleção veio bem a calhar para um público que queria usar as cores nacionais, verde e, principalmente, amarelo.

O uso da camisa da seleção foi constantemente ridicularizado pela intelectualidade. Não se conformavam com o “sequestro” de um símbolo nacional para derrubar uma presidenta petista. Diria que metade ou mais da culpa pela politização da amarelinha se deve à própria interpretação da esquerda ao fenômeno. A coisa só piorou de 2018 para cá, com a ascensão de Bolsonaro. Os bolsonaristas continuaram a usar a amarelinha, dessa vez para apoiar o seu mito. A camisa passou a ser símbolo bolsonarista, um significado mais estreito que o antipetismo original.

A campanha da Ambev pretende “resgatar” esse símbolo nacional. Isso significa tentar convencer os petistas (ou, de maneira mais geral, os antibolsonaristas) a vestirem a camisa para simplesmente torcer pela seleção. Guardadas as devidas proporções, é como tentar convencer um bolsonarista a assinar a Carta pela Democracia, dizendo que aquilo significa apoio à democracia e não apoio ao Lula.

Para que a campanha da Ambev funcione, são necessárias três coisas: 1) que o petista não se sinta constrangido ao passear com a camisa da seleção; 2) que, ao ver alguém passeando com a camisa da seleção, a maioria das pessoas não veja um bolsonarista em potencial e 3) que a seleção desperte algum entusiasmo nos brasileiros. Acho que, dessas três condições, a terceira é a mais difícil. Uma seleção como a de 70 poderia unir os brasileiros. Essa aí, difícil.

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