Só vejo verdades

Notinha de hoje na Coluna do Estadão nos informa que Manuela d’Ávila não gostou nada de um painel em um edifício de Porto Alegre. Chama de “mentiras” o que está lá escrito e vai além: diz que é um crime e pergunta quem é o criminoso que estaria pagando por aquilo.

Manuela d’Ávila foi aquela candidata que se deixou fotografar em uma missa em 2018, quando era candidata a vice-presidente. Aquilo sim era verdade. Mentira é dizer que as esquerdas apoiam a descriminalização do aborto, o desencarceramento, o desarmamento da população, a escolha livre de gênero, a invasão de propriedades improdutivas.

Talvez o único ponto de discussão fosse o apoio à censura. Ditaduras de esquerda e de direita censuram, então trata-se mais de um problema das ditaduras do que das esquerdas. No entanto, o próprio tuíte da ex-deputada é um pedido de censura ao debate político legítimo. Os adversários do presidente o chamam de genocida e golpista, em um discurso político onde procuram situar Bolsonaro em um determinado campo de ideias. Manuela, por outro lado, quer a censura, pois prefere uma missa fake a enfrentar as consequências eleitorais de suas próprias ideias.

Contradição insanável

Na quinta-feira aconteceu a leitura da Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito no Largo de São Francisco. A inspiração, como sabemos, foi a leitura da Carta aos Brasileiros, evento ocorrido há 45 anos.

Procurei nos arquivos da época a repercussão do evento. Chamou-me a atenção o fato de ter havido uma passeata pelas ruas do centro de São Paulo “permitida” pela polícia.

Eram tempos em que, de fato, se arriscava algo ao se posicionar contra o governo de plantão. Na mesma edição do jornal, por exemplo, ficamos sabendo que a polícia havia prendido cerca de 20 pessoas na UnB naquele dia. Fico imaginando a tensão daqueles estudantes, sendo observados de longe por carros “chapa branca”, como menciona a reportagem.

Em comparação, o evento de ontem reflete o Brasil de duas gerações adiante. Ninguém ali presente corria o risco de sair dali preso. O ato não requereu a coragem de 45 anos atrás. Talvez por isso, as reportagens que li foram unânimes em destacar a diversidade religiosa, de gênero e de raça como parte relevante dos discursos. A defesa da democracia em 1977 era questão de sobrevivência física. A de 2022 pode se dar ao luxo de defender pautas identitárias, sinal de que já ultrapassamos o básico na pirâmide de Maslow da democracia.

Mas a fundamental diferença entre as duas manifestações é o adversário: em 1977 havia uma ditadura que tinha, de fato, atropelado qualquer coisa semelhante a um Estado Democrático de Direito. Em 2022, temos um presidente com um discurso mambembe sobre não aceitação dos resultados eleitorais, um espantalho perfeito para engolir novamente o sapo barbudo.

A defesa do Estado Democrático de Direito não se dá no espaço etéreo das ideias, mas em uma realidade política concreta, em que está em jogo o poder político. Em 1977, essa defesa visava canalizar a pressão da cidadania pela entrega do poder por parte dos militares. Em 2022, essa defesa, por mais apartidária que se queira ver, envolve a entrega do poder político a uma das partes. É esta contradição insanável que enfraquece o movimento.

Nem a realidade os detém

Fernando Haddad, no primeiro debate entre os candidatos ao governo de SP, afirmou que é completamente contra a privatização da Sabesp. E foi além: afirmou que as tarifas de energia elétrica e das telecomunicações são altas por causa da privatização.

Fazendo um pouco de arqueologia jornalística, não foi difícil encontrar pérolas do tempo das telecomunicações estatais. A reportagem abaixo é de 27/12/1992.

Ao ler a reportagem nos lembramos que as linhas telefônicas eram consideradas investimentos, que competiam com o dólar paralelo, o ouro e as ações, e sua cotação dependia da perspectiva de a Telebrás conseguir ou não suprir a demanda por linhas.

Mas o mais cruel é observar que as linhas mais caras eram justamente aquelas localizadas na periferia. Guaianazes, São Mateus, Itaquera e Parelheiros lideram os preços. Para se ter uma ideia, R$ 45 milhões (preço da linha nessas regiões) era equivalente a aproximdamente US$ 3,1 mil, já considerando a cotação do dólar no paralelo. Imagine pagar o equivalente a R$ 16 mil para ter uma linha telefônica fixa! Ou seja, a estatal prejudicava mais justamente os mais pobres. Nenhuma surpresa aqui.

É difícil fazer um paralelo com a energia elétrica, pois se trata de um mercado mais complexo e que não foi totalmente privatizado (a Eletrobrás só foi privatizada agora). Mas você pode estar certo de que o raciocínio é exatamente o mesmo. Não tenha dúvida de que, caso uma boa parte das empresas de energia elétrica não tivesse sido privatizada, o preço das tarifas seria, hoje, o menor dos nossos problemas. Estaríamos pagando o preço que fosse para garantir fornecimento. E, claro, os mais pobres seriam os mais prejudicados.

Depois de todas as evidências empilhadas nos últimos 25 anos, só defende a existência de estatais quem quer um cabide de emprego para uso político ou quem sofre de uma cegueira ideológica que impede de enxergar a realidade tal qual é. Fernando Haddad pertence a este segundo grupo, o mesmo que incluia Dilma Rousseff. São os mais perigosos, pois nada os detém. Nem a realidade.

A despolitização da amarelinha

O filme “O ano em que meus pais saíram de férias” conta a história de um garoto que fica sozinho depois que seus pais fogem da ditadura militar. Em uma determinada cena, os terroristas estão assistindo à primeira partida do Brasil na Copa de 70, contra a Tchecoeslováquia, que pertencia então à esfera de influência da União Soviética. Quando os tchecos abrem o placar, os rapazes reagem com frieza, dizendo coisas como “é isso aí”, “muito bom”, “esses milicos precisam aprender uma lição”, e coisas do tipo. No entanto, na medida em que o jogo vai avançando e o Brasil vai construindo a sua goleada, há uma transformação. No gol de empate, os rapazes ameaçam comemorar mas se contém. No último gol, no entanto, a festa é total, se abraçam, gritam gol feito uns loucos. Ou melhor, feito qualquer torcedor normal diante daquele esquadrão.

Lembrei dessa cena quando li essa reportagem sobre a tentativa das marcas de ”resgatar” o simbolismo da amarelinha, supostamente sequestrada por Bolsonaro e seus seguidores.

Antes, uma recapitulação da história.

A camisa da seleção ganhou protagonismo político bem antes da onda Bolsonaro. Foi, digamos, o uniforme dos movimentos pelo impeachment. Portanto, seu significado, antes do bolsonarismo, foi de antipetismo. Uma contraposição à cor vermelha dominante nas manifestações das esquerdas. A camisa da seleção veio bem a calhar para um público que queria usar as cores nacionais, verde e, principalmente, amarelo.

O uso da camisa da seleção foi constantemente ridicularizado pela intelectualidade. Não se conformavam com o “sequestro” de um símbolo nacional para derrubar uma presidenta petista. Diria que metade ou mais da culpa pela politização da amarelinha se deve à própria interpretação da esquerda ao fenômeno. A coisa só piorou de 2018 para cá, com a ascensão de Bolsonaro. Os bolsonaristas continuaram a usar a amarelinha, dessa vez para apoiar o seu mito. A camisa passou a ser símbolo bolsonarista, um significado mais estreito que o antipetismo original.

A campanha da Ambev pretende “resgatar” esse símbolo nacional. Isso significa tentar convencer os petistas (ou, de maneira mais geral, os antibolsonaristas) a vestirem a camisa para simplesmente torcer pela seleção. Guardadas as devidas proporções, é como tentar convencer um bolsonarista a assinar a Carta pela Democracia, dizendo que aquilo significa apoio à democracia e não apoio ao Lula.

Para que a campanha da Ambev funcione, são necessárias três coisas: 1) que o petista não se sinta constrangido ao passear com a camisa da seleção; 2) que, ao ver alguém passeando com a camisa da seleção, a maioria das pessoas não veja um bolsonarista em potencial e 3) que a seleção desperte algum entusiasmo nos brasileiros. Acho que, dessas três condições, a terceira é a mais difícil. Uma seleção como a de 70 poderia unir os brasileiros. Essa aí, difícil.

Meta para a dívida: funciona?

A manchete acima é de ontem, mas não tive tempo de comentar. Trata-se de uma nova ideia sobre âncora fiscal, em elaboração por técnicos do ministério da Economia e que consistiria de uma meta para a dívida pública, incluindo bandas de flutuação. Funciona?

Em primeiro lugar, as vantagens. A primeira é que uma meta para a dívida pública endereça diretamente a preocupação do mercado, que é o tamanho da dívida. Para os credores, tanto faz como se chega em uma dívida controlada, desde que se controle a dívida. O teto de gastos era uma maneira de se chegar, em algum momento, a superávits primários e, por consequência, a uma trajetória de redução da divida. Controlando a dívida diretamente, teríamos o mesmo resultado de maneira mais direta.

A segunda vantagem em relação ao teto é a flexibilidade. Justamente por endereçar diretamente o problema, a meta para a dívida pública deixa mais graus de liberdade nas mãos do gestor público. Limitar os gastos é apenas um de três instrumentos disponíveis para atingir o objetivo. Os outros dois são aumento das receitas correntes e aumento das receitas extraordinárias, via venda de ativos. Assim, a meta poderia ser alcançada combinando-se vários instrumentos e não apenas um só, livrando o governo da camisa-de-força representada pelo teto de gastos. (Estou desconsiderando a diminuição dos juros da dívida como instrumento, dado que não está nas mãos do governo federal mas de um ente independente, o Banco Central).

Agora, as desvantagens. A primeira é que o controle do nível da dívida é uma política pró-cíclica, ou seja, vai apertar o torniquete quando mais o país precisar de investimentos. Isso acontece por uma questão matemática: como a relação dívida/PIB tem o PIB no denominador, quando o PIB diminui a relação aumenta. Além disso, com a redução do PIB, menos impostos são arrecadados, piorando ainda mais a relação dívida/PIB. Neste momento, o governo será chamado a diminuir gastos para voltar à relação dívida/PIB estabelecida pela meta, aumentando a desaceleração da economia. O teto de gastos, por outro lado, é anti-ciclico: por ser um objetivo nominal (gastos do ano anterior corrigidos pela inflação), em uma recessão os gastos em relação ao PIB aumentam, justamente porque o PIB diminuiu. Ou seja, o teto trabalha contra o ciclo econômico, gastando mais em relação ao PIB quando há recessão e gastando menos em relação ao PIB quando há expansão do PIB.

E é nossa pró-ciclicalidade que reside a grande fraqueza da meta para a dívida pública. Imagine a pressão política para “abrir exceções” à regra quando a vaca da economia estiver indo para o brejo. Talvez por isso, os técnicos da Economia tenham pensado nas “bandas” de flutuação da dívida. Essas bandas serviriam para absorver choques inesperados que tirariam a relação dívida/PIB da trajetória desejada, a exemplo de como funcionam as metas de inflação. Assim, o governo ainda teria algum espaço de manobra caso houvesse uma recessão “inesperada”.

Só tem um problema nessa comparação: um BC crível começa a agir imediatamente após entender que a meta (o centro da meta, não a banda superior), está em risco. E por agir, entendemos aumentar a taxa de juros. Para imitar o comportamento do BC no sistema de metas, o governo federal deveria cortar gastos imediatamente após ficar claro que o centro da meta de endividamento está sob risco. Ou seja, no sistema de metas de inflação, a banda não é uma desculpa para deixar a inflação correr solta. Isso foi o que aconteceu no Banco Central do Tombini, o que destruiu a credibilidade da autoridade monetária. Da mesma forma, a banda da meta de endividamento não deveria servir como uma desculpa para “gastar mais caso haja necessidade”, sob pena de jogar mais essa regra na mesma vala comum em que jazem todas as outras regras fiscais do país. Mas não é nada menos que óbvio que é justamente isso que ocorrerá.

A regra do teto de gastos inscrita na Constituição foi a nossa melhor chance de construir credibilidade fiscal: uma regra simples, de fácil entendimento e contra-cíclica, que poderia ter induzido uma reforma do orçamento público. No final, foi o orçamento público que induziu uma reforma (na verdade, o fim) do teto. Qualquer outra regra será inferior e, portanto, menos apta a induzir reformas que tornem o Estado brasileiro sustentável no tempo. Se o teto não deu conta de suportar as pressões políticas, imagine uma regra mais flexível. O resultado disso são taxas de juros reais mais altas do que precisariam ser e, portanto, crescimento econômico menor ao longo do tempo.

O novo regime fiscal democrático e progressista

Um grupo de 6 “notáveis”, sem ligações partidárias, propõe uma série de contribuições para o próximo presidente. O documento, apesar de se pretender apartidário, usa terminologia bem conhecida: “Contribuições para um governo democrático e progressista”. E, para ficar claro do que se trata, o documento foi apresentado a todos os candidatos, “menos para Bolsonaro”. Interessante o conceito de democracia deste grupo, que exclui um dos candidatos do jogo democrático. Mas enfim, não é este o foco do post.

E o que o grupo “democrático e progressista” propõe? Tomando o risco de ter lido somente o resumo do jornal e não o documento inteiro, a única proposta no campo fiscal prevê “gastos acima do teto em 1% do PIB sem aumento da carga tributária”.

O novo arcabouço fiscal é tratado como uma espécie de meteoro, que virá em algum momento no futuro. Mas, “enquanto o novo regime fiscal não vem”, o grupo de “notáveis” sugere que gastar acima do teto não tem problema nenhum.

Li com atenção as propostas, em busca do que seria esse “novo regime fiscal”. Saí de mãos vazias. Não há nenhuma sugestão para retomar o equilíbrio do orçamento. Há sim, sugestões de reformas administrativa e tributária, mas não há metas de resultado fiscal, nem de superávit primário, nem alguma limitação de gastos. É um pouco como prometer fazer regime mas sem nunca subir na balança para medir o progresso.

Há uma contradição insanável nessa proposta: não é possível manter indefinidamente gastos acima do teto sem aumento de carga tributária, a não ser que se queira que a dívida pública aumente explosivamente. Qualquer regime fiscal deverá limitar os gastos ou aumentar a carga tributária, ou ambos, de modo a retomar a produção de superávits primários. Não há mágica. Agora, alguém consegue imaginar programas iniciados durante o período de “licença para gastar” sendo descontinuados depois que o “novo regime fiscal chegar”? Uma proposta desse tipo somente torna mais difícil ainda a solução do problema fiscal brasileiro. Trata-se de uma proposta em linha com a parte “progressista” dessas “contribuições”, e deve soar como música para partidos “progressistas”, como PT e PDT.

Os seis “renomados notáveis” conseguiram um espaço generoso no jornal com suas “contribuições apartidárias”. A mensagem que fica, no entanto, é que não há unanimidade sobre a urgência de se alcançar um novo equilíbrio fiscal, que aponte para uma trajetória de redução da dívida pública. Talvez quando atingirmos o estágio da Argentina, essa unanimidade seja alcançada. Mas aí poderá ser tarde demais.

Para onde aponta o grande capital

No dia 16/03/2016, o juiz Sérgio Moro levantou o sigilo do grampo no telefone do ex-presidente Lula. Era início de noite, e a Globo News deu o furo de reportagem: Dilma havia prometido enviar o “Bessias” com o termo de posse para evitar a prisão de Lula.

Assisti à curta matéria no escritório, já de saída. Intuindo que aquilo era a gota d’água para a questão do impeachment, decidi ir até a Paulista para sentir o clima. Não havia nenhuma convocação especial, mas a Paulista estava lotada. Uma manifestação espontânea daquele tamanho era tão significativa quanto a manifestação monstro que havia ocorrido três dias antes nas principais cidades brasileiras, mas que tinham sido preparadas cuidadosamente. Naquela quarta não, as pessoas estavam ali simplesmente porque pressentiam o momento da história.

Mas, para mim, o mais significativo daquela noite ainda estava por ocorrer. Encontrava-me em frente ao prédio da FIESP, quando, de repente, a fachada do prédio se iluminou com as cores verde e amarela, cruzada com uma faixa preta com a palavra “IMPEACHMENT” inscrita. Naquele momento, entendi que o jogo estava perdido para Dilma Rousseff.

Voltemos um pouco mais no tempo. Quem tem acesso aos jornais da época, sabe que o golpe de 1964 foi apoiado por todas as forças civis relevantes do país. Empresários, grande imprensa, políticos das mais diversas tendências (de Juscelino a Lacerda) se uniram contra a baderna prometida por Jango. As Forças Armadas se juntaram a um movimento que já existia na sociedade civil.

Voltando a 2016, aquele “IMPEACHMENT” inscrito na fachada da FIESP traduzia o sentimento do grande capital, que precisa de condições mínimas de governabilidade para fazer negócios. Condições essas que Dilma já havia perdido há algum tempo.

E chegamos em 2022. A FIESP e a Febraban assinam um manifesto emprestando solideriedade ao STF, ao TSE e ao processo eleitoral brasileiro.

Assim como em 1964 e 2016, o grande capital se coloca ao lado da estabilidade das instituições, condição sine qua non para fazer negócios. Pouco importa se também assinam o manifesto os suspeitos de sempre, como CUT ou OAB. A FIESP não assinou manifestos #elenao em 2018, mas decidiu assinar este. A sua assinatura neste manifesto equivale ao “IMPEACHMENT” na fachada do seu prédio. Assim como Dilma estava sozinha com os petistas, Bolsonaro está sozinho com seus seguidores.

Como último esclarecimento: a análise acima não pretende ser um veredito moral, sobre o que é certo ou errado. Trata-se apenas de uma leitura das forças que estão em jogo. Como disse Rodrigo Pacheco ontem, no dia 1o de janeiro de 2023, o Congresso Nacional dará posse ao presidente eleito nas urnas eletrônicas. A assinatura da FIESP a este manifesto não deixa margem a dúvidas quanto a isso.

O que dá para fazer com R$ 400 milhões?

O que dá para fazer com R$ 400 milhões? Muita coisa. Mas o governo de São Paulo decidiu usar R$ 400 milhões para subsidiar a tarifa de pedágio. Ou seja, todos os paulistas, usando ou não as rodovias, pagarão para que uma minoria o faça. A única lógica por trás dessa decisão é populista: benefícios aparentes para um grupo bem definido, com custos não aparentes para a maioria, que nem sabe que o dinheiro que falta para necessidades mais urgentes foi usado para ganhar votos (ou não perdê-los) em ano eleitoral.

Rodrigo Garcia, o representante do PSDB nessa eleição, foi o autor dessa manobra. O PSDB gosta de posar como o partido da racionalidade econômica, aquele que pensa o Brasil de gerações à frente, não para o ciclo eleitoral. Na hora da onça beber água, são todos iguais.

Rodrigo Maia, quem diria, acabou no Irajá

Há algumas semanas, li uma entrevista do consultor político Alberto Almeida, defendendo a tese de que uma terceira via, se quisesse ter alguma chance, deveria atacar Bolsonaro, para pescar os votos de anti-bolsonaristas que vão votar em Lula já no primeiro turno. Para quem não lembra, Alberto Almeida era um consultor muito requisitado pelo mercado financeiro, até que foi pego em um dos grampos de Lula, dando “conselhos” ao ex-presidente. A sua, digamos, isenção, ficou comprometida. Quando li a entrevista, pensei: “Alberto Almeida não mudou nada”.

E eis que Rodrigo Maia, o ex-todo poderoso presidente da Câmara dos deputados, faz a mesma análise: atacar Lula seria um erro, e foi por isso que a terceira via não decolou. Como desta vez a análise veio de um político experimentado, resolvi revisitar o meu ponto de vista.

Já defendi aqui várias vezes que, se um candidato quisesse ter alguma chance de chegar ao 2o turno, deveria pescar seus votos no anti-petismo, não no anti-bolsonarismo. A tese é simples: o PT está sempre no 2o turno de qualquer eleição presidencial. Foi assim desde 1989. Foi assim em 2018, com Lula preso e uma nulidade como Haddad como candidato. Portanto, seria perda de tempo tentar tirar Lula do 2o turno. O campo aberto é o do antipetismo, hoje ocupado por Bolsonaro. O anti-bolsonarismo é de ocasião, o antipetismo é orgânico.

Coincidência ou não, os dois únicos candidatos que saíram do traço estatístico nas pesquisas, Ciro e Moro, são bastante críticos ao petismo e a Lula. Rodrigo Maia crítica Ciro justamente por isso. Diz que o candidato do PDT “não chegará a lugar nenhum” fazendo isso. Bem, ele já chegou bem mais longe do que outros candidatos da “terceira via” que passaram a mão na cabeça de Lula.

Maia também diz que o candidato da “terceira via” deveria conquistar o eleitor que votou em Bolsonaro e se arrependeu. Bem, certamente não é batendo fofo em Lula que vai conquistar o eleitor bolsonarista arrependido. O que Maia descreve é um conjunto vazio, o que não deixa de ser uma explicação involuntária de porque a “terceira via” não decolou.

A nota cômica vai para o resultado desejado dessa “tática” de conjunto vazio: um candidato de “centro-direita” que isolasse a extrema direita em seu nicho. Em 2018, a “centro-direita” recebeu 7,5% dos votos, 5% de Alckmin e 2,5% de Amoedo. Não foi por falta de opções, portanto, que o antipetismo elegeu Bolsonaro. Hoje, a “centro-direita” está sentada no colo de Lula (Alckmin é seu vice!), e Maia, assim como o “consultor” Alberto Almeida, mal consegue disfarçar o seu papel de quinta-coluna do petismo. De anti-petistas na praça sobraram Bolsonaro e Ciro Gomes, não por coincidência os únicos candidatos competitivos além de Lula.

Rodrigo Maia já foi um dos grandes nomes do jogo político nacional. Neste ano, nem candidato vai ser. Veio com uma conversa de que não quer ser eleito para ficar na planície na Câmara dos Deputados. A verdade é que tem medo de não ser eleito. Rodrigo Maia, quem diria, acabou no Irajá.

Bens públicos, benefícios privados

Existem coisas com as quais convivemos a vida toda, e não nos perguntamos porque aquilo é daquele jeito. O Círculo Militar é uma dessas coisas. Faz parte da paisagem do paulistano, e a sua presença é tão natural na paisagem como o Obelisco, a alguns metros dali.

Essa naturalidade, no entanto, encobre realidades jurídicas e econômicas incontornáveis. Por exemplo: qualquer imóvel é de alguém. Para ser de alguém, foi necessária a cessão a algum título, seja por meio de doação, comodato ou venda. Não vou aqui entrar na seara jurídica, não é minha praia. Vou apenas fazer a análise econômica.

A área em que hoje se encontra o Círculo Militar foi cedida em 1957 pela municipalidade à associação que mantém o clube. Escapa-me a que título foi essa concessão, mas temos aqui uma clara forma de privilégio. Naquela localização, um terreno de 31 mil metros quadrados poderia ser vendido para uma incorporadora por R$ 1 bilhão. Este é o valor embolsado pela associação. O juíz do caso arbitrou em R$ 1 milhão por mês o prejuízo da prefeitura, considerando aluguel do terreno e IPTU (nem IPTU o clube paga!). Essa seria a despesa adicional dos associados, caso quisessem continuar a usufruir do benefício de ter um clube em área nobre da cidade.

A continuidade da cessão do terreno a título gratuito, em tese, dá direito a outras associações particulares que reivindiquem nacos de terrenos municipais. Aliás, o MTST poderia organizar um acampamento dentro do parque do Ibiraquera, alegando isonomia com o Círculo Militar. Errados não estariam.

Este caso não poderia ser mais representativo do Brasil. Uma nobreza se apropria de bens públicos para uso particular e acha aquilo a coisa mais natural do mundo. Claro que estamos todos preocupados com a pobreza e a concentração de renda no país. Desde que não se mexa no nosso queijo.