A isonomia “por cima”

Desculpem-me se estou demasiadamente monotemático, mas sou obrigado a, novamente, falar sobre orçamento público. Ontem escrevi sobre a síndrome do “já que”. Hoje, escreverei sobre a “isonomia por cima”.

Já notaram que a palavra “isonomia”, no contexto do funcionalismo público, é sempre usada para nivelar salários por cima? Nunca se trata de nivelar por baixo, apesar de a palavra “isonomia” significar, apenas, igualdade de nível, qualquer que ele seja. O nobre deputado Marcelo Castro poderia propor um aumento de 5% para o Judiciário e o Legislativo também, o que não exigiria mudança alguma no orçamento e garantiria a mesma “isonomia”. Mas, por alguma estranha manobra mental, o deputado prefere o caminho mais difícil para alcançar o mesmo objetivo.

Claro que se trata de uma ironia. Judiciário e Legislativo, assim como o Executivo, são poderes autônomos e, como tal, têm o poder de determinar os seus próprios salários, desde que respeitada a regra do teto de gastos, que é independente para cada Poder. Portanto, não haveria como exigir que todos os poderes seguissem a mesma regra salarial, a não ser que houvesse uma lei específica para tanto. A questão aqui é outra: como o Judiciário e o Legislativo podem dar mais aumento do que o Executivo?

A coisa remonta ao drible da vaca que o governo deu no teto de gastos em 2021. A chamada PEC dos Precatórios trazia uma mudança de data para o cálculo da inflação que reajusta o teto de gastos para o ano seguinte: era o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior, e passou a ser o IPCA acumulado em 12 meses até dezembro do ano anterior. Como a inflação estava se acelerando em 2021, essa manobra permitiu aumentar o teto de 2022. O Executivo gastou esse dinheiro a mais pagando a manutenção do Auxílio Brasil em R$600, de modo que já está na tampa de novo. Já o Legislativo e o Judiciário, que só têm despesas com seu próprio funcionalismo, podem usar esse espaço adicional para aumentar salários.

Trata-se, obviamente, de uma manobra meramente contábil. O dinheiro não apareceu como que por mágica só porque a data de reajuste do teto foi mudada. Se tudo correr conforme os planos do Banco Central, estamos no fim do “bônus inflacionário”, que permitiu uma arrecadação extra em 2021/2022. A partir de 2023, com a queda da inflação e a desaceleração da economia, o aumento da arrecadação reduzirá seu ritmo, e aquele teto mais alto cobrará o seu preço em aumento da dívida pública. A não ser que tenhamos seguidas surpresas inflacionárias que mantenham a arrecadação em alta, o que é, por sinal, o resultado esperado da gastança.

Sinal de que o cobertor já está curto é a quantidade de vezes que vocês lerão o nome do deputado Marcelo Castro, o relator do orçamento, em reportagens desse tipo daqui para frente. Ontem foi o piso da enfermagem, hoje é o reajuste do funcionalismo, e a fila só aumenta para o pedido de “perdão” para ultrapassar o teto de gastos no ano que vem. São todas causas boas e justas, e que implicam aumento permanente de despesas. O Banco Central nos promete inflação na meta em 2024 (já desistiu de 2023 também). Boa sorte.

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