O problema do gordo não é o cinto

Em artigo de hoje, José Serra defende a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) como o melhor regime fiscal para o Brasil. Segundo o ainda senador, o teto de gastos é uma excrescência que não tinha como dar certo, pois as despesas obrigatórias comprimem as discricionárias, acabando por inviabilizar o funcionamento do Estado brasileiro.

De modo a ancorar as expectativas sobre a trajetória da dívida pública, a LRF prevê dois dispositivos: metas de limite de dívida e de superávit primário. Serra cita a experiência da Nova Zelândia, segundo ele, o país fiscalmente mais responsável do mundo, e que usa justamente esses mecanismos. O problema com essas comparações internacionais está sempre na escolha de um aspecto isolado positivo, esquecendo-se do resto. Voltaremos a este ponto.

O senador erra ao apontar o dedo para o teto de gastos como o nosso principal problema na área fiscal. É como um obeso usar um cinto muito apertado para se forçar a fazer regime, e depois culpar o cinto por estar muito apertado. O problema, obviamente, não está no cinto, mas na falta de determinação de se fazer um regime.

Serra propõe uma solução mais “flexível”, prevista na LRF. Seria como que permitir que o obeso afrouxasse o cinto sempre que se sentisse apertado, confiando que a meta de emagrecimento de longo prazo será atingida. Qual a chance?

Aliás, mesmo sem uma meta de endividamento público, o sistema de metas de superávits primários funcionou muito bem na primeira década do século. Como as receitas cresciam, impulsionadas pelo super ciclo internacional de commodities, as despesas podiam crescer sem problemas, gerando superávits primários e diminuindo a dívida. Era uma época boa, em que o gordo podia comer à vontade, pois o seu metabolismo ajudava a manter, e até a melhorar, o seu peso. Passada essa época abençoada, vimos o que aconteceu: os superávits sumiram e a dívida explodiu. Não houve LRF que desse jeito. O limite de dívida, se houvesse, seria letra morta, diante das necessidades sempre urgentes do Estado brasileiro.

Serra olha para o modelito Nova Zelândia, e atribui a sua beleza ao tipo de cinto por ela usado. Não conheço de perto o país, mas sou capaz de apostar que lá as pessoas não se aposentam antes dos 60 anos de idade, as condições de estabilidade do funcionalismo são muito mais limitadas, a remuneração da nata do funcionalismo está mais alinhado ao que paga a iniciativa privada e o judiciário custa uma fração do que custa o nosso. Ou seja, o cinto flexível da Nova Zelândia funciona lá não porque o cinto seja melhor, mas porque a pessoa faz regime de verdade. Além disso, e não menos importante, a classe política da Nova Zelândia conta com um ativo valioso, quando se trata de promessas futuras: credibilidade. Qual a chance de o mercado comprar uma promessa de equilíbrio fiscal de longo prazo por parte dos políticos brasileiros?

Enquanto ficamos discutindo a natureza do cinto, o problema de fundo, que é um Estado que não cabe em nossa carga tributária, segue intocado. Podemos usar cintos das mais diversas cores, tamanhos e tipos de fivela. Enquanto não atacarmos o problema das despesas obrigatórias de frente, estaremos somente nos auto-enganando.

Incêndio no salão

As crises financeiras podem ser comparadas a uma grande festa em recinto fechado, em que um foco de incêndio se inicia em um canto. A música continua animando a festa durante um tempo, até que os que estão mais próximos do foco (aqueles que têm mais informação) começam a se dirigir para a porta de saída, abandonando a festa, que continua durante um certo tempo. Outros, mesmo sentindo sinais de fumaça, confia que o lugar tem uma boa brigada de incêndio e vai controlar a situação. Por isso, não abandonam a festa, que está bem legal. No final, quando vai ficando cada vez mais claro que o incêndio está atingindo grandes proporções, todos tentam desesperadamente abandonar o recinto. Mas aí, a porta é estreita demais.

Um incêndio desse tipo atingiu o mercado no final do governo Dilma. Entrou em ação, na época, a brigada de incêndio do governo Temer, que controlou a situação. A festa recomeçou, até que um novo foco de incêndio foi iniciado em outubro de 2021, quando o governo Bolsonaro mudou a regra de cálculo do teto para poder gastar mais em 2022. Aquele foco era pequeno, o que passou a ideia de que era possível controla-lo.

Eleito o novo presidente, a esperança dos frequentadores da festa era de que, sendo “pragmático”, manteria o foco de incêndio sob controle e, quem sabe, mais para frente, até acabasse com o fogo jogando água. Para surpresa de muitos, o presidente eleito, mesmo sem assumir o mandato, jogou gasolina no fogo. A justificativa, que está no texto da PEC fura-teto, é que o recinto conta com sprinklers, que serão acionados pela própria ação do fogo. Em economês, os gastos adicionais gerarão crescimento econômico, o que produzirá aumento da arrecadação suficiente para pagar a dívida, dado o efeito multiplicador do gasto público.

Obviamente, esse pessoal que acredita nisso nunca passou por uma mesa de operações. Ou, para manter a analogia, nunca frequentou uma festa em recinto fechado. No final, nem importa se os sprinklers vão ou não funcionar. Ninguém vai ficar ali para comprovar a tese.

Prova do pudim

“É comendo que se prova o pudim”.

Esse é o chamado “teste do pudim”, em que se prova o ponto pela experiência. Lembrei-me desse ditado quando li o texto que fundamenta a PEC do estouro do teto, que o amigo Murillo Bugatti me mandou.

A cartilha está completa. Não vou aqui perder o meu e o seu tempo explicando porque se trata de uma grande bobagem. Basta o teste do pudim.

Conversinha mole

Em uma economia capitalista em funcionamento normal, onde há uma oportunidade de geração de lucros, haverá um capitalista pronto a aproveitá-la. No caso, se o refino de combustíveis no Brasil fosse lucrativo, não precisaríamos da Petrobras para sermos autossuficientes em combustíveis. Assim, o único motivo para que a Petrobras seja obrigada a investir em refino é “reduzir a vulnerabilidade a choques externos”, o que significa controlar preços. A frase final, “preservando as finanças da Petrobras” é contraditória no contexto.

Já escolados com os desastres de Abreu Lima e Comperj, em que bilhões de reais foram sugados literalmente para nada, os investidores de Petrobras devem ficar arrepiados só de ouvir o termo “aumento da capacidade de refino”. Maurício Tolmasquin, coordenador do grupo de trabalho de energia do governo de transição e co-autor da MP 579, que destruiu a Eletrobras em 2013, já de olho nessa reação, afirma que novas refinarias seriam a última opção, estuda-se o aumento de capacidade das já existentes, mas sempre “preservando as finanças da Petrobras”.

Bem, tanto faz se o investimento em refino vai se dar via expansão da capacidade atual ou construção de novas plantas. Do ponto de vista de investimento (Capex), dá na mesma. Assim, a Petrobras vai precisar usar os seus lucros para investir em refinarias ao invés de pagar dividendos. Resta saber se os acionistas estarão dispostos a financiar a empresa para “diminuir a vulnerabilidade do país aos preços internacionais”.

Se há um benefício em já termos tido um governo do PT é que já tivemos a oportunidade de ver as consequências dessa conversinha mole. O investidor está bem mais arisco, e não será na base de promessas de bom comportamento que irá colocar o seu suado dinheirinho em projetos sabidamente perdedores. O governo precisará encontrar outros meios de capitalizar a Petrobras para que a empresa assuma seu papel “estratégico”. Fica difícil imaginar de onde sairá o dinheiro, mas nunca é bom desconfiar da criatividade do pessoal do PT.

Lavagem de biografia

E continua o esforço de lavagem da biografia de Fernando Haddad, de forma a torná-lo palatável aos agentes econômicos. Hoje, temos um Haddad que criticou os dogmas da esquerda e condenou o sistema soviético. Como se isso, por si só, o transformasse no mais liberal dos petistas.

Vamos lá. Não posso opinar sobre sua monografia pois não consegui achá-la. O máximo que consegui foi o resumo na base de dados da USP, em que o futuro ministro da Fazenda afirma algo que nos é familiar: o sistema soviético não era socialista, era só uma forma primitiva de acumulação de capital. Só faltou usar o termo “real” (o sistema soviético não era o socialismo real).

Sabemos o que isso significa. O verdadeiro socialismo nunca foi implementado de verdade. Se tivesse sido implementado como manda o figurino, estaríamos no paraíso. Mas o sistema soviético desvirtuou o conceito e se perdeu.

Criticar o despotismo stalinista é bacana, mas chegou com 34 anos de atraso: Khrushchov já havia feito isso em 1956. Mas, antes tarde do que nunca. Eugênio Bucci, meu guru para assuntos das esquerdas, afirma que a tese de Haddad foi corajosa, porque “desafiou os dogmas da esquerda”.

Só se for da esquerda tupiniquim, que estava, para não variar, algumas décadas atrasadas em relação ao que acontecia no mundo.

Haddad escreveu a sua tese em 1990, depois, portanto, da queda do muro de Berlim. Naquele momento, apontar para os problemas do sistema soviético era fácil, e até necessário para livrar a cara do socialismo real. Isso, obviamente, não torna Haddad um champion da economia capitalista, como quer sugerir reportagens como as de hoje. Suas ideias sobre como funciona a economia continuam tão retrógradas quanto as de Dilma Rousseff e outros economistas do PT.

A nossa esperança é que Lula cumpra a sua promessa e seja ele mesmo o responsável pela condução da política econômica. A que ponto chegamos.

Grandes luxos, pequenos luxos

Muitos anos atrás, quando eu ainda era um jovenzinho em início de carreira, lembro de um diretor da empresa onde eu trabalhava comentando sobre o absurdo que era, no Brasil, pessoas andarem de Ferrari. Aquilo seria um acinte diante da pobreza da maioria dos brasileiros.

O que me chamava a atenção era que o próprio diretor dirigia um Toyota Camry novinho, carro equivalente a alguns anos do meu salário. Para ele, no entanto, o carro que ele dirigia era “normal”, o exagero seria a Ferrari.

Todos temos um estilo de vida mais ou menos compatível com a nossa renda. O jornalista André Trigueiro, por exemplo, quase certamente dirige um carro e mora em um apartamento compatíveis com a sua renda, que deve ser muito, mas muito superior ao que os brasileiros mais pobres poderão um dia sonhar em ter.

Mas isso não impede que o jornalista, assim como muitos outros burgueses com consciência social, condenem a “Ferrari” do momento: o churrasco “folheado a ouro” que os jogadores degustaram no Qatar. Seria uma ofensa, diante de tantos brasileiros que passam fome.

Se perguntados, esses críticos certamente diriam que, se eles próprios tivessem condições financeiras de comer o tal bife dourado, não o fariam, em respeito aos mais pobres. Não percebem que eles mesmos têm condições de fazer isso, aqui e agora. O seu estilo de vida está vários degraus acima do da maioria dos brasileiros, de modo que é fácil descer a escada e abrir mão daquilo que, para a os brasileiros mais pobres, não passa de luxos inalcançáveis. Sim, eu sei que não é fácil. Nos acostumamos com um certo padrão de vida, e achamos tudo muito necessário. O andar de cima é que tem luxos, nós não.

Condenar o “churrasco de ouro” serve para massagear a consciência social de uma classe média que se incomoda com o fato de ser classe média e que não consegue abrir mão de seus pequenos luxos. Os pobres mesmos, esses em nome dos quais a classe média bem-pensante aponta o dedo, provavelmente não estão nem aí para o que os jogadores estão comendo no Qatar. Aliás, é possível, até, que achem muito justo que profissionais que ganharam a sua fortuna honestamente tenham sim esses luxos. Afinal, fariam exatamente o mesmo se pudessem.

As sementes da destruição

Enquanto as atenções estão voltadas para os protestos contra a política de Covid-zero, o jornalista Lourival Sant’Anna chama a atenção para o ponto que julgo mais relevante para projetar a China do futuro: a relação do governo com a iniciativa privada.

O trecho destacado acima parece ter sido tirado diretamente do livro Why Nations Fail, de Daron Acemoglu. O economista lista uma série de exemplos de países cujas elites políticas sufocaram o surgimento de novas tecnologias, com o receio de perder poder. Talvez seja neste ponto que a democracia, com seus pesos e contrapesos e com pluralidade de representação, mostre-se o mais adequado sistema político para fomentar uma prosperidade de longo prazo.

As inovações são, por natureza, destrutivas. Destroem o status quo para substituir por outro mais eficiente, que cria mais valor com menos recursos. Esse processo, obviamente, encontra resistências, e a inovação somente segue em frente se o grupo dominante não tem poder suficiente para barrá-la.

A China é só o exemplo mais recente de elite política que se opõe à inovação, mesmo que isso pareça um tiro no pé. O PC chinês tem poder suficiente para fazê-lo e vai fazê-lo, porque essa é a lógica das instituições extrativistas.

Assim como aconteceu com a antiga União Soviética, pode levar décadas para que a China, tal qual a conhecemos hoje, desapareça e, no lugar, surja um país bem mais modesto. Mas é uma questão de “quando”, não de “se”. As sementes da destruição estão plantadas, é só uma questão de tempo para que floresçam.

Fanfarrão

Há poucos dias, o deputado Carlos Zarattini, do PT, mereceu menção honrosa desta página, ao defender que a PEC dos R$ 200 bilhões trazia “previsibilidade de gastos”, que era tudo o que o mercado queria.

Hoje, Zarattini faz por merecer uma segunda menção honrosa, ao listar o que o PT quer de Arthur Lira para apoiá-lo: basicamente, abster-se de atuar contra os interesses do governo na Câmara. Como se o PT tivesse alguma outra alternativa a não ser apoiar Lira.

O presidente da Câmara deve ter pensado com seus botões: “entendi, o PT quer a exclusividade no envio de pautas-bomba ao Congresso, como a PEC dos R$ 200 bilhões”.

No outro post, chamei Zarattini de piadista. Para não repetir, vou chamá-lo aqui de fanfarrão.

Ainda o VAR

O meu texto de ontem sobre o VAR suscitou oposição de duas naturezas: técnica e moral. Ambos os tipos de crítica me fizeram pensar e me levaram a escrever esse segundo texto.

Comecemos pela oposição técnica, a mais simples. Essa argumentação não entra no mérito da intenção do jogador, focando apenas no erro do árbitro. Segundo essa crítica, o VAR seria útil para eliminar erros grosseiros da arbitragem, protegendo o investimento de times profissionais vítimas desses erros.

Bem, se fosse só isso, não estaríamos discutindo o VAR aqui. No início da implementação da tecnologia, até pensava assim, mas desconfiava que a busca da justiça perfeita nos levaria a mais injustiças. E é o que vem acontecendo. Não são apenas erros grosseiros que o VAR corrige. Como a regra é clara, decisões do VAR em lances em que o impedimento precisa ser calculado com fórmulas que nem a NASA deve ter, acaba prejudicando o time em que o jogador está ”impedido”. De fato, o sujeito está 0,1 mm à frente e, portante, segundo a regra, está impedido. Mas essas correções de erros “não grosseiros” acabam por criar injustiças do outro lado. Para que o VAR funcione, seria preciso criar regras específicas para o seu uso, e não usar as regras normais, usadas por juízes de carne e osso. Transferir ao VAR decisões que nem o mais capacitado dos juízes teria condições de tomar parece tremendamente injusto.

Então, para resumir este primeiro ponto: sim, o VAR é útil para eliminar erros grosseiros, desde que se limite a esses. O desafio de se definir o que vem a ser um “erro grosseiro” está posto.

O segundo tipo de oposição, o moral, é mais interessante, pois leva em consideração a intenção do jogador. Há aqui, portanto, além da defesa da justiça, um julgamento moral do bandido, quer dizer, do jogador que infringiu a regra de propósito, esperando ludibriar o juiz. Para acrescentar o insulto à injúria, usei o exemplo de Maradona, um cara amigo de Fidel Castro e que teve sérios problemas com drogas. Pensando no fato de que muitos não conseguem separar o homem do jogador, deveria ter usado o exemplo de Pelé, que usava o truque, muitas vezes com sucesso, de se agarrar com o zagueiro na área para simular um pênalti. A malandragem (ou o roubo) é a mesma, mas talvez o personagem certo criasse menos oposição.

Mas, vejamos o ponto, que, sem dúvida, é muito bom: é moralmente correto comemorar um gol roubado porque o juiz não viu a infração? Os torcedores mais fanáticos costumam dizer que “roubado é mais gostoso”, principalmente quando estão convencidos de que o adversário já foi muito beneficiado pelos juízes no passado. Afinal, ladrão que rouba ladrão…

Este é um bom ponto, porque comemorar a malandragem não parece ser muito civilizado. Não posso deixar de concordar. Sempre admirei aquele gol de Maradona como se admira o truque de um mágico, não como uma ode à malandragem. Eu estava assistindo àquele jogo, vi o lance e não achei nada anormal em um primeiro momento. Como se fosse possível um jogador de 1,65 ganhar pelo alto de um goleiro de mais de 1,80. Mas Maradona passou a impressão, à primeira vista, de que aquilo era possível. Depois, claro, no replay, a coisa ficou clara, como quando o mágico explica como fez o truque.

Maradona, com sua genialidade, construiu o roteiro do crime perfeito. Em filmes como Golpe de Mestre (Oscar de melhor filme de 1974), torcemos pelos bandidos, sem que isso signifique aval moral ao crime. Trata-se de entretenimento.

Claro que um jogo de futebol, apesar de também ser entretenimento, não é um show de mágica ou um filme de Hollywood. Existe um protocolo de honra, que deve ser obedecido. Assim, atitudes anti-desportivas, como a de Maradona, são, sem dúvida, reprováveis. Por isso, reconheço que o VAR seria importante para reparar essa injustiça.

O VAR, se existisse em 1986, teria colocado as coisas em seus devidos lugares: o gol seria anulado, Maradona, provavelmente, teria sido expulso por atitude anti-desportiva, e seríamos privados do mais belo gol de todas as copas, o segundo contra a Inglaterra. Mas a justiça teria sido feita, a mágica teria sido desfeita, o crime perfeito não teria sobrevivido à tecnologia. O mundo teria se tornado, sem dúvida, um lugar um pouco mais justo. Mais chato, mas mais justo.

A pretensa justiça do VAR

Quem me acompanha aqui há algum tempo, sabe que sou absolutamente contra o uso do VAR no futebol. Mais do que qualquer argumento, fico com a evidência: o gol da “mão de Deus” de Maradona contra a Inglaterra na Copa de 86 teria sido anulado pelo VAR, o que nos privaria de um dos momentos mais sublimes do futebol de todos os tempos. Gols como aquele fazem do futebol o que ele é: paixão, discussão, blefe. Futebol é um jogo de truco, não de bridge.

Alguns dirão que só falo isso porque não sou inglês. Pode ser. Mas a Inglaterra não seria campeã do mundo em 1966 se houvesse VAR, com um gol decisivo que não entrou. As injustiças são aleatórias, assim como na vida.

Aliás, a palavra “justiça” é a que norteia toda a defesa do uso do VAR. Em tese, com a ajuda da tecnologia, as decisões seriam “justas” e acima de qualquer discussão. Obviamente, não é o que se tem visto. O que nasceu como uma forma de evitar “erros grosseiros”, é usado para detectar “erros” que nem o Robocop seria capaz de ver. Desde linhas de impedimento até a definição de ultrapassagem da bola pela linha de fundo (como vimos ontem no jogo Japão x Alemanha), passando pela marcação de pênaltis, a “justiça” do VAR tem sido contestada por torcedores e jogadores. O que nasceu para estabelecer “justiça” tornou-se mais um elemento de injustiça.

E este é o ponto fundamental de toda essa discussão: a busca da “justiça perfeita” é inútil e vã. Os seres humanos somos falhos por natureza, não existe a perfeição. A tentativa de ser “mais justo” com o auxílio da tecnologia só introduz injustiças de outra ordem. Quer coisa mais injusta do que exigir dos jogadores que joguem contra uma máquina, que decidirá se a protuberância dentro do seu calção está à frente do zagueiro na imagem 3D?

Aqui volto ao ponto inicial: o gol da “mão de Deus” foi fruto de uma ilusão de ótica genial, que somente um dos mais geniais jogadores de futebol de todos os tempos seria capaz de realizar. Mas isso só foi possível porque os jogadores, que são seres humanos, estão lidando com outro ser humano, o juiz, e não com uma máquina. A “justiça” no futebol está em que seres humanos julgam seres humanos. Os erros fazem parte do jogo, assim como fazem parte da vida. O futebol é o que é porque imita a vida. E a vida é “injusta” por natureza.