O moto-perpétuo não existe

Meu caro Boulos, bom tarde!

Li em uma reportagem no Valor de hoje que você espera o aquecimento da economia via ”o investimento pesado na construção de moradias populares”.

Trata-se de erro muito comum, em que se confunde o curto com o longo prazo e, principalmente, não se entende a natureza do crescimento econômico. Não vou culpá-lo por isso, ainda mais sabendo quem são seus gurus nessa matéria. Mas permita-me, nessa missiva, mandar a real sobre o tema.

Para entender a questão, imagine por um momento que, ao invés de construir casas populares, o governo se dedicasse a contratar pessoas (milhões delas) para abrir buracos e fechá-los novamente. Essa atividade frenética certamente “aqueceria a economia”, não somente através do salário recebido pelos escavadores, como também pelo impulso a toda a cadeia de produção de pás. O problema é que nada disso contribui para o crescimento econômico no agregado da economia. Na verdade, há um decrescimento econômico. Para entender este ponto, é preciso lançar mão do conceito de “valor”.

O crescimento do PIB nada mais é do que a soma de todo o valor agregado da economia. Se eu produzo um filão de pão por R$ 1,00 e consigo vendê-lo por R$ 3,00, agreguei R$ 2,00 ao PIB do país. Isso porque alguém viu valor no pão que eu produzi, a tal ponto que ficou disposto a pagar R$ 3,00 por ele. Assim, agreguei R$ 2,00 de valor às matérias primas que comprei e aos salários que paguei para produzir aquele filão de pão. Do nada, com meu trabalho e engenho, criei valor. Isso é PIB.

Voltemos aos buracos do governo. Aquela atividade não criou valor. Pelo contrário, destruiu valor. O governo arrecadou impostos daqueles que criaram algum valor para a economia no passado, e literalmente enterrou-os. Tanto faz se os salários dos operários servirão para movimentar o comércio ou se a indústria de pás irá florescer. No agregado da economia, o que importa é que todo o dinheiro gasto em pás e salários saiu de algum lugar e não criou valor. Pelo contrário, foi literalmente enterrado.

Boulos, você deve estar se perguntando, ainda, se a atividade gerada pela indústria dos buracos, afinal, não agrega ao PIB. Sim, meu caro, agrega. Mas, a somatória desse valor criado com o valor destruído é negativa. Fica fácil de entender se colocamos alguns números aqui. Digamos que o governo gaste R$ 1.000 comprando pás e outros R$ 2.000 pagando os salários dos escavadores. O fabricante de pás gastou R$ 700 para produzi-las e, portanto, agregou R$ 300 de valor. Já os empregados vão gastar esses R$ 2.000 no comércio, que gastou R$ 1.500 em mercadorias. Portanto, o comércio agregou R$ 500. Comércio mais fabricantes de pás agregaram, portanto, R$ 800. O governo, por outro lado, tirou R$ 3.000 da economia para manter essa atividade sem criar nada. Portanto, destruiu um valor líquido de R$ 2.200. Não tem como essa conta fechar.

Claro que estamos falando de construção de imóveis, não de cavar buracos. Mas o raciocínio é rigorosamente o mesmo. Se os imóveis construídos não puderem ser vendidos por um preço acima do seu custo, o governo estará destruindo valor, da mesma forma que faria se estivesse cavando buracos inúteis. Do ponto de vista de crescimento econômico, é exatamente a mesma coisa.

Meu caro Boulos, já vejo você protestar contra esse exemplo, dado que construir imóveis populares é algo muito necessário e tem o seu mérito. Além disso, há ”externalidades positivas”, palavra bonita muito usada por seus mentores da Unicamp, e que justifica todo e qualquer investimento do governo. Sem entrar no mérito da benemerência desse tipo de investimento, o que é indiscutível, a questão é que a matemática do PIB continua a mesma independentemente das boas intenções do governo. E quanto às externalidades positivas, trata-se de algo extremamente difícil de quantificar. No caso, pessoas com boa moradia tendem a ser mais produtivas, sem dúvida, mas a questão é quanto outros fatores que forçam a produtividade para baixo não predominam, fazendo com que um teórico ganho de produtividade não compense o subsídio a esse tipo de empreendimento.

Em resumo: o governo pode (ou até, talvez, deva) subsidiar moradias populares. Afinal, nossos impostos devem servir para distribuir renda. Isso é uma coisa. Outra coisa é esperar que esse tipo de iniciativa vá “aquecer a economia”. Não vai. Pelo contrário. O aumento da carga tributária ou da dívida pública para financiar esse tipo de iniciativa fará com que, no final, a economia se desacelere, como vimos nos últimos anos do PT. Não há mágica. Se investimentos públicos a fundo perdido fizessem a economia crescer, teríamos inventado o moto-perpétuo. E esse mecanismo mágico, meu caro Boulos, infelizmente, não existe.

Mentiras sinceras não me interessam

Pela primeira vez leio que o racional por trás do pedido de “waiver” para furar o teto de gastos é manter, em 2023, despesas no mesmo percentual do PIB de 2022. Ou seja, 19% do PIB.

O mercado compraria de olhos fechados uma regra como essa. Em todo ano, daqui para frente, faça chuva ou faça sol, o governo só vai gastar 19% do PIB. O único detalhe é que trata-se de uma regra horrivelmente pró-cíclica, e sua credibilidade é próxima de zero. Explico.

Tudo funciona bem quando o PIB está crescendo. Neste caso, as despesas aumentam junto com o PIB e todo mundo fica feliz. O problema será quando a economia entrar em uma recessão. Neste caso, as despesas precisarão diminuir, justamente em um momento em que a sociedade brasileira estará clamando por ajuda do governo para sair do buraco. Esta é a característica pró-cíclica da regra: as despesas aumentam com a expansão do PIB e diminuem com a sua retração. Qual a chance disso acontecer?

(A regra do teto é o justo oposto: como o limite não acompanha as variações do PIB, quando há expansão a relação despesas/PIB diminui, e quando há retração, a relação dívida/PIB aumenta. Trata-se de uma regra anti-cíclica, como deve ser.)

A escolha de um percentual do PIB como regra para os gastos é meramente oportunista, assim como foi, no governo Bolsonaro, a mudança do critério de cálculo da inflação para calcular o limite do teto. A regra que vale, a cada momento, é aquela que permite maximizar os gastos. A existência de uma regra, qualquer que seja, permite que todos desfilem em Brasília como defensores da austeridade fiscal, enquanto, de verdade, não estão nem aí para o problema. Neste aspecto, não deixa de ser notável o discurso de Lula, dando uma banana para a disciplina fiscal. Pelo menos foi sincero.

Ninguém mexe no queijo de ninguém

O Estado brasileiro é uma máquina de concentração de renda. Por trás das discussões sobre o pagamento do Auxílio Brasil, encontra-se uma miríade de interesses privados, dos quais três exemplos estão nas notinhas abaixo.

Qualquer regra fiscal sempre baterá de frente com as demandas infinitas de lobbies e corporações, sempre dispostos a defender com unhas e dentes suas causas justas. Agora ainda mais, em uma república formada por sindicalistas e desenvolvimentistas.

Isso sem falar, claro, mas cláusulas pétreas da Constituição cidadã, que impede uma gestão de pessoas minimamente racional e que protege os mais abastados com regras generosas de previdência.

O teto de gastos é apenas o bode expiatório perfeito para se culpar pela “falta de recursos para pagar o auxílio para os pobres”. Enquanto isso, ninguém mexe no queijo de ninguém.