A notícia é: “Prefeitura lança app para concorrer com Uber e 99”. Eu ia começar este post lembrando do aplicativo de táxis lançado pela prefeitura de São Paulo em 2018, quando Doria era ainda prefeito da cidade. Alguém viu algum aplicativo de táxi por aí? Pois é…
Mas antes de começar a escrever, fui pesquisar quanto a prefeitura está desembolsando nessa estrovenga. Achei o edital e, surpresa! A prefeitura não está pagando nada! O app ganhador do certame foi aquele que ofereceu o menor desconto para os motoristas, ponto para o qual a reportagem chamou a atenção.
Mas aí, pensei: diacho, por que afinal uma empresa precisa ganhar alguma licitação da prefeitura para oferecer um app de transporte? O Uber ganhou alguma licitação? 99? IFood? Não, nenhum desses apps ganhou licitação alguma. Simplesmente chegaram e fizeram seus apps acontecerem. Então, qual o sentido de participar de uma licitação desse tipo? O que faria uma empresa perder tempo com licitações, se poderia lançar um app exatamente com as mesmas características de maneira independente?
Poderia ser porque a Prefeitura se comprometeria com todo o suporte de marketing, investindo para tornar o app popular na cidade. Mas não. O item 2.11 do edital específica que “A CONTRATANTE, com o objetivo de universalizar a utilização do sistema, deverá proporcionar a divulgação da ferramenta ao público, utilizando-se de seus espaços de mídias digitais, publicidade em canais de rádio, televisão e material impresso para veiculação de propaganda institucional da MUNICIPALIDADE”. Ou seja, faz parte dos encargos do vencedor do certame a publicidade do app.
Então, qual a vantagem? Desconfio que o pulo do gato esteja no item 2.7 do edital: “Adicionalmente ao disposto no subitem 2.5 deste instrumento, desde que não onere a MUNICIPALIDADE, a CONTRATADA poderá, pela presente contratação, diversificar as suas fontes de receita com a exploração de receitas alternativas à atividade principal do empreendimento (receitas não tarifárias diretas, ou acessórias) de modo a viabilizar o projeto de investimento”.
Ou seja, o vencedor da licitação pode explorar outras fontes de receita. Mas qualquer empreendedor no Brasil sempre pode explorar outras fontes de receita. Afinal, a livre empresa é um dos princípios basilares da nossa Constituição. Só faz sentido esse item se estiver conjugado com serviços que NECESSITEM do aval da prefeitura para serem realizados. O ganhador do app, portanto, teria facilitada a permissão da prefeitura para explorar outras atividades, algo tão aberto e impreciso quanto “receitas alternativas à atividade principal do empreendimento”.
Corta para o resultado da licitação.
Segundo a ata da licitação, somente um consórcio se habilitou para o certame. O consórcio 3C é formado pelas empresas CLD – Construtora, Laços Detetores e Eletrônica Ltda, Consilux Consultoria e Construções Elétricas Ltda e CSX Inovação S/A. Será que as duas primeiras têm outros interesses junto à prefeitura de São Paulo, que seriam de alguma forma facilitados pela cláusula 2.7 desse edital? Se não, por que essas empresas não se uniram antes para fazer um app de compartilhamento? O que as impediu?
Mas vamos nos concentrar na terceira empresa. Com um pouco de pesquisa, descobrimos que a CSX foi fundada em maio de 2021, em Curitiba. Sua especialidade? Equipamentos para rastreamento de veículos e monitoramento de trânsito. Parece não ter muita experiência com apps de compartilhamento de transporte. Mas aí entra o item 2.17 do edital: “Mediante a presente contratação propiciará a cidade de SÃO PAULO no âmbito da Política de Desenvolvimento Urbano, o monitoramento e a observação das condições locais de mobilidade urbana, possibilitando a identificação de lacunas e sobreposições e proposição de novos arranjos, os quais contribuirão com a MUNICIPALIDADE para que futuras atualizações no Plano Diretor Estratégico do MUNICÍPIO de SÃO PAULO”. Faz parte das entregas do consórcio um “Portal Gestão da Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito – SMT”. Ou seja, a prefeitura contará com uma central de monitoramento do serviço. É basicamente isso o que distingue esse serviço do Uber/99: o serviço será gerenciado pelo Estado, e não por uma empresa particular. O app será desenvolvido por uma empresa privada, mas o gerenciamento será de responsabilidade da prefeitura.
Nem vou aqui entrar no mérito da segurança dos dados, assumindo que estarão tão seguros na prefeitura quanto estão no Uber. O único ponto que faço é a eficiência do serviço. Imagine você tentando reclamar de algo. Se já é difícil no Uber, imagine em um serviço gerenciado pela prefeitura…
Então, ficamos assim:
– Um consórcio formado por empresas sem experiência com desenvolvimento de aplicativos vai desenvolver um para competir com Uber/99
– Esse consórcio receberá remuneração menor do que recebem Uber/99, e poderá compensar essa baixa remuneração com “outras fontes de receita” não especificadas.
– o gerenciamento do app ficará a cargo da prefeitura.
Qual o risco disso dar certo? A prefeitura, que não consegue sequer ter um sistema de bilhete eletrônico que funcione decentemente, quer concorrer com o Uber. O prazo para implantação do serviço é de 5 anos (!) após a assinatura do contrato. Nesse prazo, talvez esqueçamos o assunto.
PS.: o jornalismo profissional faria um serviço melhor se entrasse nesses meandros, ao invés de somente publicar press release da prefeitura.