O sal da vida

Para ter chegado à pauta de um jornal, é que a coisa tomou alguma proporção. No caso, pais e mães que se metem na vida escolar dos filhos na faculdade. É de cair o bu da cunda.

Isso me faz lembrar uma vez em que estávamos em processo de contratação de um estagiário, e uma mãe nos ligou para saber se o seu filho seria contratado. Não há limites para país superprotetores.

A reportagem repete, em mais de um trecho, a avaliação de que esta geração suporta menos as adversidades. Pudera! Com país que tiram satisfação da faculdade pelas notas dos filhos, não há que esperar outra coisa.

Costumo dizer que a vida é uma mar de adversidades pontilhada com algumas ilhas de satisfação. Se os pais e mães mantém seus filhos presos nessas pequenas ilhas de satisfação, evitando a todo custo que sofram as consequências de seus atos, eles vão ficar presos nesse mundinho e cada vez mais insatisfeitos. Nunca experimentarão o gosto de ter vencido a adversidade, que é o que dá o sal da vida.

Ilha da Fantasia

O ministro da Casa Civil, Rui Costa, chamou Brasília de “Ilha da Fantasia”, pois, segundo o ex-governador da Bahia, os políticos não conheceriam a realidade brasileira. Isso porque, no caminho que vai de suas casas até o Congresso, não existiria “gente pedindo comida e gente desempregada”.

O Estadão hoje, no melhor estilo fact checking, desmentiu Costa: há sim “vulneráveis” no caminho entre as residências dos congressistas e a Praça dos Três Poderes. Portanto, Rui Costa não teria sido preciso em sua fala.

Já tive oportunidade de criticar aqui as agências de fact checking, que se atém à superfície da fala e perdem o “big picture”, o real significado do que se está dizendo. Fazem uma análise literal, quando a mensagem principal, na maioria das vezes, está nas camadas subliminares. O resultado, via de regra, é patético, como é o caso aqui.

A escrotidão da mensagem de Rui Costa independe de ter ou não gente pedindo esmola no caminho entre a casa do deputado e seu escritório. O que o petista quis dizer todos nós sabemos: eles têm o monopólio da sensibilidade social, só eles conhecem a realidade dos pobres, só eles buscam o bem dos mais pobres. Tanto faz se todos nós, incluindo os deputados e senadores, tropeçamos com miseráveis todos os dias. A Ilha da Fantasia de Rui Costa é metafórica: todos nós, não petistas, vivemos em uma Ilha da Fantasia e, portanto, não temos “sensibilidade social”. Esse é o sentido da fala do ministro.

Claro que os políticos se revoltaram. Assim como nós, os políticos se revoltam com essa narrativa (para usar a palavra da moda), enquanto veem Lula querendo trocar o avião presidencial por um que possa ter uma cama de casal e o máximo conforto para 100 convidados. A vanguarda do proletariado se trata bem, e já passou muito do tempo em que esse discursinho de comiseração pelos pobres enganava alguém, a não ser os trouxas de sempre.

Um fact checking da fala de Rui Costa deveria checar se o governo do PT realmente olha para os pobres, ou se distribui migalhas enquanto protege os de sempre. Aliás, nesse sentido, a fala do ministro é verdadeira. A Ilha da Fantasia, para quem não se lembra, era uma ilha em que os sonhos das pessoas que ali pousavam se transformavam em realidade. Brasília é isso: empresários pousam em Brasília com seus sonhos, que se tornam realidade. Para ficar completo, falta só o Tatoo anunciando o avião a cada pouso.

A popularidade de Lula

Aproveitei a pesquisa do IPEC para atualizar o gráfico de popularidade do presidente com as outras pesquisas que foram publicadas nos últimos meses. De maneira geral, a popularidade líquida de Lula saiu do patamar de 15 positivos no 1o trimestre para algo um pouco abaixo de 10 agora no 2o trimestre. O IPEC está dando +9, a Paraná deu +7 no mês passado, então deve estar por aí.

Há análises para todos os gostos para esse número. Podemos, por exemplo, dizer que Lula está em uma posição bem abaixo da média dos seus primeiros dois mandatos, em que valores abaixo de +10 ocorreram apenas durante 6 meses em seus 8 anos na presidência. Por outro lado, também podemos dizer que Lula está muito acima da média de Bolsonaro, que ficou acima de +10 apenas durante o 1o trimestre de seu mandato. Por fim, podemos dizer que Lula tem hoje mais ou menos a mesma popularidade que Bolsonaro tinha no 2o trimestre do seu mandato.

O que esperar daqui para frente? Do ponto de vista da atividade econômica, a economia está desacelerando menos do que o previsto pelo mercado, e daqui a pouco o BC começa a cortar os juros, o que pode dar um alento. Então, do ponto de vista da economia, parece que as coisas, de modo geral, não vão piorar muito no curto prazo (próximos 12 meses). Já do ponto de vista de, digamos, “iniciativas asininas”, Lula já provou que está pronto para nos surpreender. Juntando essas duas partes, acho mais provável uma acomodação da popularidade nesse atual patamar, pelo menos por enquanto. Aliás, diga-se de passagem, patamar arriscado para o incumbente que vai tentar a reeleição. Mas estamos muito longe de 2026 ainda.

Reforma política para quem, cara pálida?

Lula está enfrentando dificuldades no Congresso. A solução? Uma reforma política! É o que propõe a sempre criativa Eliane Cantanhêde, que não desiste de suas ideias, mesmo depois de ter protagonizado o mais épico “cala boca, Magda!” da história da imprensa brasileira, ao sugerir que Lula deveria assumir uma candidatura de vice-presidente da República.

Curioso que a mesma Cantanhêde via no Congresso um muro de contenção aos arroubos autoritários do governo Bolsonaro. Esse mesmo Congresso, agora, está atrapalhando a vida de Lula. Questão de perspectiva.

Uma reforma política é ruim? De maneira alguma! Estamos precisando de uma para ontem, de modo a melhorar a representatividade dos congressistas, principalmente com a adoção do voto distrital. No entanto, o problema, como sempre, está nas boas intenções, das quais o inferno está cheio.

Quando Cantanhêde propõe um “Comitê de Notáveis” (ideia de Tarso Genro, vai vendo), a questão sempre vai estar em quem vai escolher esses notáveis. A escolha de Cristiano Zanin para a vaga de ministro do STF dá uma boa noção do que Lula entende por “notável”. Essa ideia de um comitê apartidário somente com sumidades parte do pressuposto de que há pessoas por aí que são praticamente assexuadas, imunes a paixões, incluindo as políticas. Obviamente, não existem. Além disso, como disse acima, há a questão da escolha desse comitê, um assunto sempre delicado. Por isso existem eleições, de modo a que os eleitos contem com a legitimidade do voto popular para exercer o poder. Comitê de Notáveis à margem do Congresso é das ideias mais antidemocráticas que circulam na praça.

Temos a ilusão de que uma Grande e Profunda Reforma Política resolverá todos os nossos problemas. Não resolverá. É mais provável que seja sequestrada pelos interesses das maiorias conjunturais. É preferível avançar aos poucos, na direção correta, como foi o caso do fim das coligações em eleições proporcionais e da cláusula de barreira. Algum grau de voto distrital poderia ser o próximo passo. Mas, claro, nada disso resolverá o problema de Lula, que pretende exercer o poder de maneira hegemônica. Nesse caso, o problema não é o sistema de representação. O problema é a existência da própria democracia.

As ideias “certas” e a legitimidade popular

No início do governo Bolsonaro, quando o então presidente ainda estava em sua fase “eu e as ruas”, cansei de escrever aqui que o Congresso tinha (e tem) tanta legitimidade popular quanto o presidente. Em minha timeline, bolsonaristas esfregavam na minha cara os quase 58 milhões de votos conquistados pelo ex-capitão, contra o esquálido número de votos do demônio da vez, Rodrigo Maia, então presidente da Câmara. A matemática, no entanto, era outra: os deputados do PSL, então partido do presidente e, supostamente, sua base no parlamento, tinham conquistado apenas uma fração dos votos totais. Em número de cabeças, eram 52 deputados (10% do Congresso), menos até do que a bancada do PT, que havia eleito 54 deputados. Agora em 2022 ocorreu o inverso: o PL, partido do ex-presidente, elegeu 99 deputados, contra 68 do partido de Lula.

Agora que Lula está no comando, os artistas fazem o papel dos bolsonaristas de 4 anos trás: pedem que o presidente ignore o Congresso e governe com base na força das ideias. Das ideias “certas”, que fique claro. É a negação da legitimidade dos congressistas e do próprio regime democrático representativo.

Lula, a exemplo de Bolsonaro no início de seu mandato, levou várias bolas debaixo das pernas no Congresso por negar-se a fazer política. Comportamento que se entendia por parte de Bolsonaro, que representava o antissistema, mas difícil de entender por parte de Lula, supostamente alguém calejado nos meandros de Brasília. Mas tem sido assim, por algum estranho motivo. Os artistas deveriam estar cobrando Lula não por um veto (um expediente de enfrentamento que não costuma acabar bem para o presidente), mas para que assuma seu lugar como articulador político. E antes que me informem que “política”, no Brasil, significa “toma lá, da cá”, não percam seu tempo. Eu sei disso, mas essa é a regra do jogo. A alternativa é ficar brandindo as “ideias certas”, enquanto o Congresso governa de fato o país.

Não mexa no meu queijo

Entrevista do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, a respeito da reforma tributária. Como todos os que vão perder com a reforma, Nunes é a favor da reforma, mas não DESTA reforma.

Aliás, fica difícil entender porque Nunes é a favor da reforma, dado que seu suposto efeito positivo (o crescimento econômico) é rechaçado pelo prefeito como uma “conversa fiada”. Para ilustrar seu ponto, Nunes cita a Argentina como contra-exemplo, confundindo falaciosamente condição necessária com suficiente e insultando a inteligência de seu interlocutor. A sorte dele é que, do outro lado da disputa pela prefeitura no ano que vem, estará Guilherme Boulos. Caso contrário, meu voto iria para o seu adversário.

Nunes afirma que São Paulo perderá R$ 15 bilhões com a reforma, o que é mentira, dado que a arrecadação do IVA será distribuída aos entes subnacionais de acordo com as arrecadações atuais. O que os prefeitos perderão (e Nunes não tem pejo de admitir), é um instrumento de benefício fiscal (“ações que tornam seus municípios atrativos para investimento”, nas palavras do prefeito). Pois são justamente essas “ações”, em todas as esferas de poder, que tornam nosso sistema tributário um nightmare de complexidade e litígios legais. São Paulo não vai perder R$ 15 bilhões. Será Nunes e os prefeitos que perderão discricionariedade sobre o ISS para, por exemplo, financiar o estádio do Corinthians, como foi o caso.

Essa situação me faz lembrar dos bancos estaduais, instrumentos usados para “ações que tornavam os estados atrativos para investimentos”. Foi necessário chegarmos à hiperinflação para que esse instrumento fosse retirado das mãos dos governadores. Mas, para tanto, foram precisos a convicção e o foco do então presidente da República, pois não se tratou de tarefa trivial.

A reforma tributária é difícil porque mexe com os pequenos poderes espalhados pela República. Todos são a favor da reforma, desde que não mexam em seu queijo. Aqui, como no Plano Real, é preciso um presidente da República com convicção e foco. Acho que Arthur Lira possui essas qualidades, estou otimista.

A melhor escolha, com certeza

Ainda não havia comentado sobre a indicação de Lula para a vaga no Supremo Tribunal Federal. Demorei porque não poderia ser ligeiro e leviano ao comentar uma indicação de tamanha importância. Trata-se, afinal, de uma das 11 vagas no Tribunal mais importante do país, aquele que tem a última palavra, e diante do qual os outros dois poderes baixam a cabeça. Dizem, assim deve acontecer em um país onde as instituições funcionam.

Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que não tenho envergadura intelectual para tecer comentários. A excelsa Corte do país é algo que está muito acima de minha limitada compreensão, de modo que preferi ouvir pessoas doutas e capazes a respeito do assunto. Nada melhor do que começar por aqueles que fizeram por merecer uma daquelas 11 vagas no Olimpo, os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal.

O ilustríssimo ministro Luis Roberto Barroso, por exemplo, afirmou: “É um advogado que desempenhou de forma admirável o seu trabalho quando tudo parecia perdido. Não se pode penalizar alguém por ter trabalho bem”. E completou: “Não vejo, se vier a ser o Cristiano Zanin, nenhum conflito ético, nem moral, nem de violação da impessoalidade”.

Já o excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, saudou a escolha: “É alvissareira a notícia de que o nome do brilhante advogado Cristiano Zanin foi encaminhado à apreciação do Senado Federal. O Dr. Zanin sempre demonstrou elevado tirocínio jurídico em sua trajetória profissional”.

O magnificente agora ex-juiz Ricardo Lewandowski, que não perdeu a sua excelência pelo fato de ter se aposentado, pontuou: “Cristiano Zanin é um experiente e combativo advogado que preenche todos os requisitos constitucionais para ocupar uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Será, com certeza, um magistrado competente e imparcial.”

Tão doutas opiniões certamente precisam ser consideradas. Mas é o Senado o Poder constitucionalmente responsável pela aprovação do nome indicado pelo presidente da República. Os senadores, cônscios de seu dever, certamente serão duros e austeros em sua sabatina, de modo que aos brasileiros não reste dúvida, uma vez aprovado o nome, de que se trata da escolha correta e perfeita.

Com o tirocínio do presidente da República, que indicou o nome, as opiniões favoráveis dos ilibados magistrados do Supremo Tribunal Federal, e a aprovação dos Senadores da República, podemos estar certos e convencidos e tranquilos de que o nome de Cristiano Zanin é o ideal para ocupar a vaga na Suprema Corte do País. Descansem, pois, os espíritos timoratos, pois as instituições do País estão funcionando na mais perfeita ordem. Se Cristiano Zanin chegar lá, será porque é o melhor para nós, brasileiros.

Circo de pulgas

O tamanho do programa do “carro popular” ficou em R$ 500 milhões para automóveis e R$ 1 bilhão para ônibus e caminhões. O que isso significa?

No caso dos automóveis, considerando um bônus médio de R$ 5 mil, estamos falando de 100 mil carros comprados através do programa. O total de automóveis vendidos em 2022 foi de aproximadamente 2 milhões. Tudo o mais constante, o programa representaria um aumento de 5% nas vendas em relação ao ano passado. No entanto, é preciso separar o que é efeito do programa do que é tendência natural do mercado. Até maio, haviam sido vendidos 750 mil automóveis, 10% a mais do que no mesmo período de 2022. Ou seja, o mercado já estava crescendo 10%. Se chegarmos ao fim do ano com crescimento abaixo de 15% (10% do crescimento natural e 5% do programa) dará para desconfiar da eficácia dos descontos.

A pergunta é: 5% de desconto (R$ 5 mil sobre um preço médio de R$ 100 mil) será suficiente para deslocar a curva de demanda de maneira permanente? Ou, de outra forma, não teremos apenas a antecipação do consumo, assim como tivemos seu atraso à espera do bônus? Um desconto de 5% será o suficiente para atrair o novo comprador, aquele que não estava pensando em trocar de carro any time soon? No meu caso, por exemplo, que estava planejando trocar de carro somente daqui a um ano, a conta é a seguinte: é melhor gastar R$ 95 mil hoje ou deixar esse dinheiro rendendo a, digamos, 10% ao ano, para trocar o carro com R$ 104.500 daqui a um ano? Se o carro aumentar menos de 4,5% em 12 meses, terá sido melhor esperar. De qualquer forma, trata-se de uma antecipação de consumo, não da atração de novos consumidores. Para isso, seria necessário que ocorresse um deslocamento permanente da curva de demanda, fruto, por exemplo, de um aumento de renda da população. Se eu comprar meu carro este ano, estarei subtraindo consumo de 2024, a soma será zero.

Já o programa para ônibus e caminhões tem uma pegada ESG: os beneficiários precisarão sucatear seus veículos usados. Pergunto: quem, com um ônibus ou caminhão em estado de sucateamento, tem dinheiro para comprar um veículo 0km, mesmo com algum desconto? Não conheço esse mercado, mas parece um pouco puxado.

O mais curioso é que quem vai custear esse programa serão os próprios donos de veículos a diesel, que terão o desconto do imposto cancelado antecipadamente. Tira de um bolso e coloca no outro. A não ser, claro, que a Petrobras dê uma mãozinha, e segure o aumento do combustível no peito. Assim, o desconto será pago pela minha, pela sua, pela nossa Petrobras. Enquanto isso, continuam faltando R$ 150 bilhões para que o governo consiga atingir sua meta de resultado primário.

Por fim, esse programa vai em linha com o estilo circo de pulgas desse governo: programas minúsculos anunciados como o maior espetáculo da Terra.

Negócio da China

O Estadão nos traz a tradução de uma reportagem da AP, sobre as dívidas de países pobres com a China. Não é a primeira matéria que leio sobre o assunto. O foco é no garrote chinês, que se utiliza de métodos escusos, como empresas de fachada, para esconder uma parte da dívida. Mas gostaria de chamar a atenção para o outro lado da questão, os países que tomaram a decisão de se endividarem.

Invariavelmente, as dívidas foram tomadas para a construção de infraestrutura. A reportagem cita portos, aeroportos, ferrovias. É o típico investimento que os economistas desenvolvimentistas amam de paixão, pois, em tese, formam a base para o crescimento futuro da economia. No entanto, por algum estranho motivo, o crescimento não veio, e sobraram os juros e a amortização da dívida. Com isso, alguns países tiveram, inclusive, que parar de pagar salários dos funcionários públicos e aposentadorias.

O que aconteceu? A reportagem nos dá algumas pistas. Por exemplo, um aeroporto construído em Sri Lanka, na cidade do presidente, está às moscas, com a sua pista de pousa tomada por elefantes. Este é um caso prosaico, mas longe de ser único. Representa a malversação de recursos em obras de infraestrutura sem base em lógica econômica, apenas para atender necessidades políticas. Alô refinaria Abreu e Lima, aquele abraço!

Esses países foram sequestrados por elites extrativistas, que revestem suas ambições pessoais com a capa de “investimentos para o desenvolvimento econômico”. O resultado são empreendimentos sem a mínima lógica econômica, com o objetivo de faturarem politicamente a construção de “grandes obras” e se locupletarem através de esquemas de corrupção. A matéria não chega a citar esse último aspecto, que certamente está presente.

Investimentos estatais em infraestrutura são sempre ruins? De maneira alguma. Está aí Itaipu como contraexemplo. Mas, para cada Itaipu, há dez Transamazônicas que sugam recursos sem a correspondente contribuição para o crescimento econômico. O resultado é estagnação econômica, um roteiro que conhecemos bem.

Hoje, o Brasil sofre sob o peso de sua dívida. Não há recursos para nada, a não ser para pagar aposentadorias, funcionários públicos e juros da dívida. No entanto, ao contrário dos países reféns da China, o Brasil é refém dos seus próprios “rentistas”, o que pode passar a falsa impressão de que está em uma situação melhor. Isso é uma ilusão. Credor é credor, qualquer que seja a sua cor. O fato de dever em sua própria moeda não alivia em nada, a não ser pela alternativa de poder dar calote via inflação.

O que restou das manifestação de junho

O que faz as pessoas se levantarem de suas poltronas, onde poderiam muito bem estar assistindo à sua série favorita, para sairem às ruas? Este mês de junho marca os 10 anos em que as pessoas saíram as ruas sem uma pauta definida, o que causa perplexidade até hoje.

Entendo que o denominador comum dos manifestantes era a qualidade dos serviços públicos. O estopim foram os R$ 0,20, mas logo ficou claro que não era pelos R$ 0,20, mas pelos R$ 3,20 cobrados da população sem um serviço condizente. Extrapolando, serviços públicos péssimos em troca de nossos impostos. Mas o fundamental dessas manifestações foi a hostilidade a toda classe política. Bandeiras de partidos eram arrancadas, para deixar claro que os partidos eram parte do problema.

Mas, ao contrário de algumas análises que li por aí, minha avaliação é de que não se tratava necessariamente de manifestações anti-institucionais. A hostilidade aos políticos significava simplesmente que os políticos estavam do outro lado da mesa. Mas havia uma mesa, e havia o outro lado. Não estava em pauta uma virada de mesa.

O mesmo podemos dizer sobre as manifestações pelo impeachment, um instituto baseado em lei, por dentro das instituições. A narrativa de “golpe” se restringe aos petistas, estes sim, não muito afeitos à institucionalidade.

Já as manifestações em apoio a Bolsonaro tinham o espírito da virada de mesa. Bolsonaro ocupou o vácuo político deixado pela falta de resposta dos partidos políticos aos manifestantes de junho de 2013. Aquelas jornadas foram um aviso não correspondido, e que desembocou em Bolsonaro e seu discurso antissistema. Mesmo depois do capitão ter sentado no colo de Ciro Nogueira e Valdemar da Costa Neto, seus seguidores continuaram acreditando que aquilo se tratava de tática de curto prazo, com o grande objetivo de virar a mesa. Os eventos de 8 de janeiro foram uma tentativa tardia de “empurrar a história” nessa direção.

10 anos depois, os motivos que levaram às jornadas de junho continuam aí, intactos. 10 anos depois, os manifestantes estão mais céticos, mais cínicos. Talvez seja necessária uma nova geração de brasileiros, que não sofreram a decepção de verificar que a realidade não se move, independentemente do número de pessoas que saem às ruas, para que tenhamos manifestações semelhantes. Até lá, só nos resta escrever textões no Facebook.