O DNA Latino-Americano

Este domingo marca o início do processo constituinte do Chile. Depois dos protestos que varreram o país no ano passado, decidiu-se que o Chile precisava de uma Nova Constituição. A antiga, ainda do tempo daquele que não se pode nominar, não serve mais.

O Chile precisa de uma Constituição que, no dizer de uma cientista política, defina “garantias que levem a uma sociedade mais igualitária”, e que responda à questão de “até que ponto o Estado é responsável pelo mínimo social, para garantir uma vida digna e impedir que se morra de fome”.

Podemos ajudar nossos irmãos chilenos. Vivemos essa experiência pós um período ditatorial, em que o Brasil, prenhe de esperanças em um novo tempo, pariu a chamada “Constituição Cidadã”. Esta Nova Constituição estabeleceu uma sociedade mais igualitária, onde o Estado garante uma vida digna, de modo que ninguém mais morre de fome no país.

Só que não.

Abaixo, mostro o gráfico do crescimento do PIB/capita (conceito de Purchasing Power Parity) do Brasil e do Chile desde 1988, ano de nossa Constituinte. Em 1988, o PIB/capita do Brasil era 37% maior que o PIB/capita do Chile. Em 2019, a relação se inverteu: o PIB/capita do Chile é 63% maior que o PIB/capita brasileiro. De outra maneira: enquanto a renda brasileira cresceu 2,7% ao ano nos últimos 30 anos, a renda chilena cresceu o dobro: 5,4% ao ano.

Mas hão de dizer que crescimento econômico e de renda não quer dizer nada. O que importa é uma “sociedade igualitária”. Bem, ainda continuo achando que, em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão. Mas, vamos assumir que é assim mesmo, que não importa que todos sejam pobres, desde que todos sejam pobres igualmente.

Pois bem. Coloquei um segundo gráfico, com a evolução do índice de Gini dos dois países. O índice de Gini, como sabemos, mede a distribuição de renda de um país. Quanto menor, melhor a distribuição. Em 1988, a diferença do índice de Gini brasileiro para o chileno era de 4 pontos. Em 2019, essa diferença aumentou para nada menos do que 9 pontos. Ou seja, nesses 30 anos, a sociedade chilena distribuiu mais a renda do que a brasileira.

Mas não acaba por aí. Um consultor prevê, para os próximos anos, “um cenário de mais gastos e mais impostos no Chile”.

Não precisa ser um consultor para isso. Basta olhar o que aconteceu com a carga tributária brasileira desde a Constituição Cidadã: em 1988, o Estado precisava de 22% do PIB para ser financiado; hoje, precisa de 38% do PIB sendo que 35% de carga tributária e 3% de déficit primário.

O Chile era o país que parecia ter escapado da sina latino-americana de adoração da pobreza. Mas não. A carga do DNA falou mais forte. Não sei se estarei vivo daqui a 30 anos para escrever um post sobre a estagnação econômica e o aumento da desigualdade causados pela Constituição Cidadã chilena. Por isso, já deixo registrado aqui o que vai acontecer. E, claro, o culpado será o “modelo capitalista concentrador de renda”.

Tecnologia em controle de preços

Hahahahaha

Podemos exportar tecnologia para os chilenos. Tivemos 5 planos de controles de preços, somos experts mundiais no assunto.

Os chilenos não estão contentes em viver em um país onde as coisas funcionam, querem sentir na pele o que são prateleiras vazias. Cada um com seu gosto.

O populismo é insaciável

Quando houve as manifestações de 2013, o governo Dilma respondeu do jeito PT: uma lista de 5 grandes programas, dos quais 4 ficaram na promessa. O único que saiu do papel foi o Mais Médicos. Ou seja, Dilma aproveitou os protestos para tocar a sua própria agenda. A outra única concessão foi o município de São Paulo voltar atrás no aumento dos ônibus (o que havia sido o estopim dos protestos). O resultado é que hoje José Serra está tentando passar no Senado uma lei que permite aos municípios adiar o pagamento de precatórios, de modo a dar um fôlego para o caixa da cidade. Sim, aquele subsídio está sendo pago até hoje.

Piñera, no Chile, está indo muito além de cancelar o aumento dos transportes. Mexeu em pedágios, aumentou o salário mínimo e, agora, voltou atrás em uma isenção tributária para empresas, entre outras benesses. Mas os protestos não param. E não param por dois motivos.

Primeiro, porque são protestos políticos. Note que, nas reportagens do que está acontecendo no Chile, você sempre vai tropeçar com o nome de Pinochet. Piñera, nesse contexto, seria como que herdeiro das políticas da ditadura. Anteontem publiquei um post calculando a aposentadoria de uma chilena chamada Eugenia. Não descrevi naquele post o contexto, mas conto aqui: Eugenia é funcionária pública e estava chupando limões para compensar os efeitos do gás lacrimogêneo. Diz ela que estão na terra de Pinochet, então estão acostumados a chupar limões. I rest my case.

A segunda razão pela qual os protestos não param tem a ver com a insaciabilidade do ser humano. Por que um salário mínimo de X, e não de X+1? E por que de X+1 e não de X+2? Ao ceder rapidamente, Piñera mostrou fragilidade. É óbvio que vão querer mais, sempre mais. Como disse o cientista político da reportagem, se era assim tão fácil, por que demorou a fazê-lo? De onde se segue que, com um pouco mais de pressão, o governo cede mais.

Assim como as manifestações de 2013, estas também terminarão. E teriam terminado por esgotamento, com Piñera fazendo ou não concessões. As concessões feitas custarão caro ao povo chileno e não evitarão que Piñera perca o poder nas próximas eleições. Porque, se é para ter políticas populistas, melhor votar no original do que na imitação, não é mesmo?

Lei da Gravidade

“No Chile, tudo é regulado pelo mercado”.

É como dizer: “no Chile, a lei da gravidade vale para tudo”. Como se pudesse ser diferente.

A lei de mercado (ou de oferta e demanda) é a única lei econômica que existe. Há sociedades que se revoltam contra isso, mas nem por isso a lei de mercado deixa de funcionar. Trata-se de uma lei irrevogável.

A vida econômica é uma vida de trocas comerciais. Tudo é precificado de acordo com a oferta e demanda de produtos e serviços. Inclusive os bens mais essenciais. Se precisam ser produzidos, então também obedecerão à lei de mercado.

Se o Estado se mete a regular os preços sem considerar a lei de mercado, as distorções vão se acumulando até o castelo de cartas cair. Não preciso aqui listar os vários exemplos com que a História nos brinda.

Você pode se revoltar contra a lei da gravidade e se jogar pela janela, esperando que ela não funcione para você. Mas depois não reclame quando se espatifar no chão.

Apartheid

APARTHEID

O jornalista repete a palavra usada por um especialista na reportagem.

Ou os dois não sabem o que foi o apartheid, ou a reportagem quer imprimir um viés. Adivinha qual a alternativa correta.

No Chile, como em qualquer lugar do mundo, os mais ricos estudam nas melhores escolas privadas, enquanto os mais pobres estudam nas escolas públicas. O que diferencia os países é a qualidade da escola pública.

O Chile tem o melhor PISA da América Latina, o que demonstra a qualidade de suas escolas públicas em relação ao resto do continente. Mesmo assim, ainda não é suficiente para que os pobres cheguem no mesmo nível para disputar vagas nas melhores universidades.

A questão é: qual modelo o Chile deveria seguir para alcançar melhores resultados? Certamente não é adotando modelos que não deram certo em países como o Brasil. Se no Chile os pobres estão longe das universidades, no Brasil essa distância é ainda maior.

Há um esforço para caracterizar o modelo liberal do Chile como o pai de todos os males. Apontar um suposto “apartheid” educacional é somente mais um tijolo nessa construção. O Chile deveria abrir mão do modelo que lhe permitiu ter a melhor educação da América Latina, em nome de uma “igualdade” que não existe em lugar nenhum do mundo? Essa é a questão.

É uma questão de matemática

Reportagem do Estadão traz informações interessantes sobre as aposentadorias no Chile, apesar de não ter sido essa a intenção do jornalista. A matéria em si é totalmente enviesada, focando nas “agruras” dos aposentados chilenos. Enviesada porque não faz questão de contrapor estas informações com nenhum depoimento de algum economista, mostrando o custo de se pagar aposentadorias maiores. Fica tudo no nível da “injustiça” herdada do ditador Pinochet.

Mas, voltando ao ponto: achei a reportagem interessante porque traz alguns números, que podem ser vistos nos trechos destacados abaixo. O jornalista entrevista uma mulher chamada Eugenia López. Eugenia tem 56 anos, e vai se aposentar daqui a 4 anos, pois a idade mínima para aposentadoria é de 60 anos para mulheres no Chile. Eugenia ganha 500 mil pesos e contribui com 80 mil/mês para a sua conta-aposentadoria. A contribuição mínima é de 10%, mas Eugenia está contribuindo com 16% do seu salário. Mas a informação importante é quanto ela acumulou até o momento: 30 milhões de pesos após 25 anos de contribuição. Ou seja, Eugenia, por algum motivo, começou a poupar quando tinha 31 anos de idade. Talvez por isso esteja poupando mais do que 10% do seu salário, para compensar o tempo perdido. Por fim, temos a informação de que Eugenia vai se aposentar com 150 mil pesos/mês, o que, suponho, seja uma retirada vitalícia, ou seja, até falecer.

Planilhei esses dados, primeiro para tentar chegar nos 30 milhões de pesos hoje, e, mais importante, para estimar em quanto tempo este dinheiro terminaria. O gráfico está abaixo.

Considerando que as retiradas sejam atualizadas por uma inflação de 2% ao ano e as reservas sejam remuneradas por uma taxa de juros de 3% ao ano, esse dinheiro terminaria quando Eugenia tivesse 85 anos de idade, em 2048. Parece ok para uma renda vitalícia, em um país com expectativa de sobrevida para mulheres de 21,5 anos aos 65 anos de idade (dado da OECD).

Então, a conta é essa mesma. A questão que se coloca é se 150 mil pesos para um salário de 500 mil pesos são “justos” ou “suficientes”. 500 mil pesos equivalem a aproximadamente R$ 2.700 pelo câmbio atual, ou aproximadamente R$ 2.400 se considerarmos o mesmo poder de compra da moeda (conceito PPP). A aposentadoria no Brasil para este nível de salário, aos 60 anos de idade e 30 anos de contribuição é integral (leia aqui). Para ter este mesmo nível de reposição, a chilena deveria ter contribuído com o triplo do que contribuiu, ou 53% do seu salário. No Brasil, a contribuição é de 9% para o empregado e 20% para o empregador. Faltariam 14% de contribuição para ter o salário integral. Não é à toa que o sistema roda com déficit.

A questão não é de justiça, mas de matemática: para tirar o mesmo salário que tirava na ativa, Eugenia deveria ter contribuído (ou alguém no lugar dela) com o triplo do que contribuiu. A saída brasileira foi taxar o empresário. O efeito disso? Entre 1991 e 2018, a média do desemprego no Brasil foi de 10,9%, enquanto no Chile foi de 7,8% (dados do FMI). Escolhemos um desemprego estrutural 40% maior para financiar uma previdência “justa”. Valeu a pena?

Críticas ao vento

O trecho abaixo é da coluna de Vera Magalhães, hoje, no Estadão. Ela escreve sobre o exemplo do Chile, e que a equipe econômica liberal do governo Bolsonaro deveria ser, digamos, mais “sensível” à desigualdade de renda.

Destaquei o trecho acima para demonstrar que esse pessoal combate moinhos de vento. Quais seriam esses “próximos passos” depois da reforma da Previdência que vão “mexer numa rede de proteção social construída ao longo de sucessivos governos?”. Mistério.

Se há alguma coisa que mexeu em rede de proteção social, esta foi a reforma da Previdência. Mas não é disso que Verá trata, nem seria louca de fazê-lo, uma vez que está claro para todos que o modelo é insustentável. Então, ao que ela exatamente se refere? À reforma tributária, que pretende simplificar a vida de quem cria riqueza no País? À reforma do Estado, que pretende retirar privilégios de funcionários públicos para que sobre mais dinheiro para a “rede de proteção social”? Às privatizações e concessões, cujo dinheiro arrecadado também servirá para reforçar políticas sociais? Quais seriam esses “balões de ensaio” que revelam a maldade de Paulo Guedes e equipe? Vera Magalhães não se dá ao trabalho de esclarecer.

O artigo de Vera não é uma exceção, é a regra. Todas as críticas ao tal “modelo liberal” tem como denominador comum uma má-vontade política em relação ao governante de turno. Todos os governantes responsáveis fazem a mesma coisa quando falta dinheiro, mas alguns são “queridinhos”, enquanto outros são os “malvados”. Tudo se resume a quem faz, não ao que é feito.

Um milhão de pessoas nas ruas!

Agora sim, temos a classe média chilena pedindo o fim do governo Piñera, e não meia dúzia de narizes-sujos.

É o fim de Sebastian Piñera, assim como 2013 foi o fim de Dilma Rousseff. É só uma questão de tempo. Esse tanto de povo na rua é o fim de qualquer governo.

Piñera saudou a multidão em seu Twitter: “La multitudinaria, alegre y pacífica marcha hoy, donde los chilenos piden un Chile más justo y solidario, abre grandes caminos de futuro y esperanza”. Blá, blá, blá. Esse palavrório não significa nada. Ou melhor, significa. Significa que o governo vai abrir as burras para satisfazer os grupos de pressão que gritarem mais alto.

O Chile tem orçamento para que Piñera distribua bondades. Orçamento este construído em anos e anos de austeridade. Mas o povo é insaciável. As bondades distribuídas logo serão insuficientes, e outras se seguirão. Até o Estado quebrar, como aconteceu no Brasil, Argentina e Venezuela. E o Chile acabará como esses 3 países: quebrado, com uma distribuição de renda pior e o povo em pior situação. Esse é o destino de todo governo populista.

A dicotomia hoje não se dá entre liberalismo vs socialismo. A verdadeira dicotomia se dá entre populismo vs responsabilidade. Populismo que pode ser “de direita” ou “de esquerda”, tanto faz. O que importa é tirar dinheiro em silêncio de um dos bolsos do povo e devolver para o outro bolso do povo com o máximo estardalhaço possível. Será um governo “mais justo e solidário”. Assim é se assim lhe parece.