A dificuldade de lidar com números

Eu entendo que o pessoal de “humanas” tenha alguma dificuldade com números e raciocínio lógico, mas às vezes dá a impressão de que vale tudo para colocar uma pauta, mesmo que a coisa não esteja amparada pelos fatos objetivos. É o que intuo que tenha acontecido nessa reportagem sobre a bilheteria dos cinemas no Brasil em 2023, que ainda não atingiu o nível pré-pandemia. A tese central é de que a retomada passa pela “maior presença de filmes nacionais no circuito de cinema brasileiro”(!).

Vamos lá. A venda de ingressos foi 34% menor em 2023 em relação a 2019, pré-pandemia. Ao mesmo tempo, houve uma perda de participação do cinema nacional em relação ao pré-pandemia, de 13,3% do total de ingressos para meros 3,2%. Daí que, imagina-se, se a participação do cinema nacional voltar ao patamar anterior, deverá haver um aumento do número de ingressos vendidos. Inclusive, há um depoimento afirmando que “os países que têm uma cinematografia forte, tendem a ter mais gente na sala de cinema”. E é aqui que a coisa entorta.

Para demonstrar a tese, o jornalista afirma que a bilheteria em 2023 nos EUA foi de US$ 9 bilhões, maior número desde a pandemia, enquanto na França, houve um crescimento de 18,9% na bilheteria entre 2022 e 2023. Estes números seriam ótimos se provassem o ponto. O problema é que provam o inverso.

Vamos começar pelo mais fácil. A bilheteria na França cresceu 18,9% no ano passado. Mas no Brasil, esse crescimento foi de 19,4%, número que está na própria reportagem! Ou seja, a França, que tem uma “cinematografia forte”, apresentou crescimento mais ou menos igual ao Brasil.

Agora, os EUA. Aqui precisamos fazer um pouco de pesquisa. Em 2019, o faturamento das salas norte-americanas foi de US$ 11,4 bilhões. Ajustando pela inflação dos últimos 4 anos, temos algo como US$ 13,6 bilhões. Comparando com os US$ 9 bilhões de 2023, temos uma queda de 34%, exatamente igual à queda da bilheteria brasileira. Ou seja, mesmo tendo “cinematografia forte”, os norte-americanos foram menos ao cinema na mesma proporção que os brasileiros.

Tudo isso prova que a queda da bilheteria não tem correlação com uma “cinematografia forte”, e nem com a queda da participação dos filmes nacionais, no caso da bilheteria brasileira. Ou seja, os brasileiros estão indo ao cinema tanto quanto os franceses e os estadunidenses, mas estão preferindo outras “cinematografias”. Os motivos levantados vão desde o boicote do governo Bolsonaro à Ancine até a morte de Paulo Gustavo. De qualquer forma, a “retomada” do cinema nacional provavelmente não levará mais pessoas ao cinema, haverá apenas uma troca de mix. As pessoas decidem ir ao cinema e depois escolhem o filme. Pelo menos, é isso o que os números mostram.

Alguém sempre está pagando pelas políticas públicas

O Senado decidiu não incluir cotas para filmes nacionais nos cinemas. O projeto em tramitação na Casa discutirá cotas apenas para a TV paga. Matéria no Estadão volta a discutir essa questão.

Cinema é uma diversão cara. Uma única meia-entrada custa uma mensalidade do Netflix. Por isso, as pessoas pensam muito bem antes de escolher onde vão gastar o seu rico e suado dinheirinho. E como é tomada essa decisão? O consumidor forma a sua opinião com base em alguns elementos: “hype” (todo mundo está falando), grandiosidade da produção, interesse pelo tema etc.

Mas, antes de mais nada, é preciso que o filme seja conhecido de alguma forma. O consumidor comum não é um cinéfilo especializado, que acompanha a indústria e seus festivais. De maneira geral, o filme que ocupa as salas é acompanhado de uma grande campanha de marketing, que procura convencer o consumidor de que vale a pena assistir àquele filme no cinema e não esperar pelo streaming. Para isso, é preciso ter verba de publicidade.

É a isso que se refere o representante das salas Multiplex. A decisão de colocar um filme em uma sala envolve risco. Uma sala vazia é prejuízo. Uma boa estratégia para minimizar esse risco é justamente acompanhar as campanhas de marketing em torno dos filmes. Quanto maior a campanha, maior a chance de ocupar a sala.

Por outro lado, o especialista em cinema defende uma certa “liberdade de escolha”. Estabelecer cotas para filmes brasileiros seria uma forma de garantir essa liberdade ao consumidor. O problema desse raciocínio está em definir quem paga por essa liberdade. Sim, porque alguém precisa pagar pelas salas ocupadas apenas por cinéfilos especializados, que assistem a filmes com baixa verba de publicidade. As cotas transferem esse custo de marketing para os exibidores, que substituem, com o seu prejuízo, a verba inexistente de publicidade. Como os exibidores não conseguem sobreviver com o prejuízo, o custo é repassado para o preço dos ingressos, elitizando ainda mais o divertimento.

Não sou a favor nem contra cotas para filmes brasileiros. Cada sociedade deve definir suas prioridades. A única observação que faço é que não existe política pública “de graça”. Alguém sempre está pagando, mesmo sem perceber.

Reserva de mercado para o cinema nacional

Tem um mimimi rolando sobre o número de salas exibindo o mais novo filme da Marvel. Parece que são 80% das salas ou algo assim.

Fui tentar comprar para o meu filho ontem, domingo, para o próximo sábado (6 dias de antecedência, portanto), e só havia lugar carne-de-pescoço. Ele falou pra comprar assim mesmo, que ia assistir nem que fosse sentado no chão.

Vamos supor que houvesse uma lei impondo uma cota para filmes nacionais. Por exemplo, 50% das salas. Portanto, Vingadores somente poderia ocupar os outros 50%. Uma redução de 37,5%. O que aconteceria?

Provavelmente duas coisas:

1. O tempo de exibição de Vingadores seria aumentado em 60%, para compensar a redução e acolher todos os que desejam ver o filme. O efeito final seria o mesmo.

2. Os exibidores teriam prejuízo, pois provavelmente os restantes 50% permaneceriam vazios por mais tempo. Para compensar esse prejuízo, os preços dos ingressos provavelmente seriam majorados, o que diminuiria ainda mais o fluxo de visitantes nos cinemas para os filmes nacionais.

Então, meu conselho para os produtores e artistas do cinema nacional é o seguinte: aceitem a lei da oferta e demanda, dói menos. Qualquer tentativa de criar demanda artificial sempre tem consequências não intencionais que acabam prejudicando os próprios interessados.