A grande obra constituinte

O PGR enviou parecer ao STF, contestando a privatização de 100% dos Correios via projeto de lei. Segundo Aras, somente uma mudança na Constituição, através de uma PEC, permitiria a privatização total da estatal.

Fui dar uma olhada na Constituição. Desta vez, devo concordar com o PGR.

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Em seu artigo 21, sobre as atribuições da União, inciso X, a Carta Magna diz que o “serviço postal e o correio aéreo nacional” são competências da União. Poderíamos pensar (e foi a primeira coisa que pensei): “mas não está dizendo que precisa ter uma empresa para prestar esses serviços, a União poderia conceder para a iniciativa privada, mantendo a sua competência, como aliás acontece em vários outros ramos da economia”.

Sim, poderia haver essa interpretação, se os incisos seguintes, XI e XII, não existissem. O problema é que existem, e determinam justamente isso, que atividades de telecomunicações, energia, transportes etc podem ser concedidas para a iniciativa privada. Ora, se os serviços postais e de correio aéreo não foram incluídos nos incisos XI ou XII, é que o deputado constituinte não previu a concessão como uma das possibilidades de a União exercer a sua (in)competência na prestação desses serviços.

Então, para privatizar os Correios, o governo deve ter maioria constitucional. Não é impossível, mas é muito mais difícil do que aprovar um projeto de lei. Parabéns, deputados constituintes, vocês trabalharam direitinho para manter o povo brasileiro refém de serviços ruins.

A Constituição do brasileiro

Os mais jovens não devem saber, mas a Constituição de 1988 tinha um artigo que limitava os juros a 12% ao ano, dispositivo que foi revogado apenas em 1999 por meio de emenda constitucional. Os nobres deputados constituintes colocaram esse troço na Constituição mesmo depois do fragoroso fracasso do Plano Cruzado e do Plano Bresser nos dois anos anteriores, demonstrando a inutilidade de se congelar preços.

Este é apenas o exemplo mais saliente de uma Constituição que é o retrato do brasileiro médio, que espera tudo do Estado. Tudo deve estar na Constituição, de modo a que o Estado seja “obrigado” a cumprir a sua função social, qual seja, construir uma sociedade idílica, onde corre leite e mel. Um exemplo recente foi a tentativa de desconstitucionalizar as regras para a aposentadoria. Não passou. E não passou porque o brasileiro médio acha que seus “direitos” devem estar na Constituição, para que sejam “garantidos”. Mesmo que se trate de uma regra impossível de ser cumprida na vida real.

A Constituição é, portanto, a combinação de boas intenções com dispositivos bem específicos desenhados para proteger as corporações que sugam o Estado, a que chamamos genericamente de “máquina”.

Almir Pazzianoto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do TST defende, em artigo de hoje no Estadão, uma nova Constituição, muito mais enxuta e focada do que a atual. Os principais pontos estão no trecho que destaquei abaixo. Muito bom, assino embaixo desses pontos, mas não de uma nova Constituinte.

Como eu disse acima, a atual Constituição é a cara do povo brasileiro. Uma nova não teria porque ser diferente. Aliás, provavelmente seria pior, porque o nível da representação congressual hoje é muito pior do que em 1988, não dá nem para começar a comparar.

Pazzianoto defende que a Constituição seja escrita por uma equipe de constitucionalistas de reputação ilibada, e seja aprovada pelo povo em referendo popular. Resta a questão de como escolher esses “constitucionalistas de reputação ilibada”, cada um com seu viés próprio sobre como deveria ser o Estado brasileiro. É a ilusão da lei tecnocraticamente perfeita, que só existe em sociedades totalitárias. Fora a ilusão de um referendo sobre assunto tão complexo.

Parece-me que a via mais segura e eficaz é a que estamos trilhando: emendar a Constituição no que ela tem de mais absurdo, como foi o caso dos 12% de taxa máxima de juros e, mais recentemente, a falta de uma idade mínima para a aposentadoria. Óbvio que seria melhor não ter esses e outros dispositivos na Constituição. Mas essa é a MINHA opinião. A opinião do brasileiro médio é outra. Quer uma Constituição mais enxuta? Mude-se para os EUA.

Cláusula pétrea

O busílis está no inciso LVII (57, pra quem não curte algarismos romanos) do artigo 5o da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Bem, não está escrito “ninguém será PRESO até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Diz apenas que não será considerado culpado.

Resta saber se tem algum inciso dizendo que é possível prender alguém que não seja considerado culpado.

O inciso LXI (61) diz o seguinte: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,…”

Não está escrito “ninguém será preso antes que se prove culpado” ou “ninguém será preso antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Está escrito que basta a ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Senão, não seria possível a prisão provisória, por exemplo.

Bem, esta é a interpretação de um completo ignorante em matéria constitucional. No caso, eu. Comigo, estão 5 ministros do Supremo, o que, para mim, é o que basta.

Mas o ponto que queria tocar é outro.

O inciso LVII pertence ao artigo 5o, que se refere aos Direitos e Garantias Fundamentais. Estes Direitos e Garantias, segundo o parágrafo 4o do art. 60, são cláusula pétrea. Não podem ser modificadas nem com uma Proposta de Emenda Constitucional.

Em outras palavras: se os congressistas porventura aprovarem uma emenda estabelecendo a prisão após condenação em 2a instância, é bem provável que alguém entre com algum daqueles muitos instrumentos junto ao STF pedindo a inconstitucionalidade da medida. Adivinha o que vai acontecer.

Somos escravos de uma Constituição que consagra a impunidade como cláusula pétrea.

Republiqueta desordeira

Bolivar Lamounier escreve um bom artigo hoje no Estadão, a respeito dos caminhos que o novo presidente, qualquer que seja ele, deveria seguir para obter um mínimo de concórdia.

O primeiro é simplesmente a obediência à Constituição. O articulista enche a boca para dizer que não somos uma “republiqueta desordeira”, que temos uma norma que nos rege a todos enquanto Estado Democrático de Direito.

Lembrei imediatamente do “fatiamento” da pena imposta a Dilma Rousseff por ocasião do impeachment, quando o presidente do Congresso uniu-se ao presidente do Supremo para preservar os direitos políticos da presidente então cassada, em claro, claríssimo, desrespeito à letra da Constituição.

Naquela ocasião, o país presenciou, ao vivo e a cores, como as forças políticas podem rasgar a Santa Constituição, esteio da nossa sacrossanta democracia, assim, sem cerimônia. E nada aconteceu, o país continuou a viver como se Constituição houvesse.

Desculpe-me Bolívar, mas vou discordar: somos uma “republiqueta desordeira”. Se não fôssemos, nem Bolsonaro e nem o PT existiriam.