Meu eletrodoméstico, minha vida

A pedido de Lula, o ministério da Fazenda estuda uma nova rodada de subsídios, desta vez para a compra de eletrodomésticos.

Lembro de um artigo de Luciano Huck, lá pelos idos da pandemia, em que o apresentador da Globo conta a história de uma menina de uma comunidade do Rio, que tinha o desejo de ser bailarina. O problema é que, entre outras coisas, a família não tinha dinheiro sequer para as passagens de ônibus necessárias para levar a menina até o Teatro Municipal, onde se davam os ensaios. Huck, no entanto, notou que a cozinha da casa onde vivia a menina destoava de todo o resto: totalmente reformada e com eletrodomésticos novos e modernos. Aquilo tinha sido fruto do auxílio emergencial pago durante a pandemia, uma renda extra que foi usada na verdadeira prioridade da família.

Lula tem uma conexão especial com a alma brasileira. Ele sabe o que o povo realmente quer. Na primeira renda extra disponível, ou mesmo sem renda extra alguma, o povo prefere comprar uma geladeira nova a investir em educação. Não à toa, Lula agora quer patrocinar o programa “carnezinho gostoso”, pois é disso que o povo gosta. Muitas vezes culpamos os políticos pelas nossas mazelas. Mas os políticos, no final do dia, só refletem os desejos do povo. O destino do país está nas mãos do povo, sempre esteve. Não é justo culpar mais ninguém.

Grandes luxos, pequenos luxos

Muitos anos atrás, quando eu ainda era um jovenzinho em início de carreira, lembro de um diretor da empresa onde eu trabalhava comentando sobre o absurdo que era, no Brasil, pessoas andarem de Ferrari. Aquilo seria um acinte diante da pobreza da maioria dos brasileiros.

O que me chamava a atenção era que o próprio diretor dirigia um Toyota Camry novinho, carro equivalente a alguns anos do meu salário. Para ele, no entanto, o carro que ele dirigia era “normal”, o exagero seria a Ferrari.

Todos temos um estilo de vida mais ou menos compatível com a nossa renda. O jornalista André Trigueiro, por exemplo, quase certamente dirige um carro e mora em um apartamento compatíveis com a sua renda, que deve ser muito, mas muito superior ao que os brasileiros mais pobres poderão um dia sonhar em ter.

Mas isso não impede que o jornalista, assim como muitos outros burgueses com consciência social, condenem a “Ferrari” do momento: o churrasco “folheado a ouro” que os jogadores degustaram no Qatar. Seria uma ofensa, diante de tantos brasileiros que passam fome.

Se perguntados, esses críticos certamente diriam que, se eles próprios tivessem condições financeiras de comer o tal bife dourado, não o fariam, em respeito aos mais pobres. Não percebem que eles mesmos têm condições de fazer isso, aqui e agora. O seu estilo de vida está vários degraus acima do da maioria dos brasileiros, de modo que é fácil descer a escada e abrir mão daquilo que, para a os brasileiros mais pobres, não passa de luxos inalcançáveis. Sim, eu sei que não é fácil. Nos acostumamos com um certo padrão de vida, e achamos tudo muito necessário. O andar de cima é que tem luxos, nós não.

Condenar o “churrasco de ouro” serve para massagear a consciência social de uma classe média que se incomoda com o fato de ser classe média e que não consegue abrir mão de seus pequenos luxos. Os pobres mesmos, esses em nome dos quais a classe média bem-pensante aponta o dedo, provavelmente não estão nem aí para o que os jogadores estão comendo no Qatar. Aliás, é possível, até, que achem muito justo que profissionais que ganharam a sua fortuna honestamente tenham sim esses luxos. Afinal, fariam exatamente o mesmo se pudessem.

O consumidor quer só consumir

Reportagem sobre a cada vez mais onipresente Shein, que já ultrapassou a Amazon em número de downloads nos EUA. A matéria começa com a descrição de um verdadeiro “assalto” a uma loja da Shein no Texas, que me lembrou a liquidação anual da Magazine Luiza (ainda existe isso?)

Mas, claro, grande parte da matéria se dedica às “polêmicas” que cercam a loja chinesa: “remuneração justa”, “preservação do meio-ambiente”, “incentivo ao consumismo que degrada o planeta”.

No entanto, apesar de tudo isso, a Shein é um fenômeno. E é um fenômeno justamente junto àquela geração que, nos convenceram, está mais preocupada com o meio-ambiente, a geração Greta, aquela que vai mudar o mundo.

Esta aparente contradição, no entanto, pode ser facilmente explicada. O ponto é que a clivagem a respeito da pauta ambiental não é de idade, mas de renda. Somente as classes A e B, que já têm as suas necessidades de consumo mais ou menos resolvidas e podem gastar um pouco mais em “consumo consciente”, podem se dar ao luxo de se preocuparem com o meio-ambiente. Da classe C para baixo, que se preocupa em sobreviver, consumo consciente significa gastar o mínimo possível para morar, comer e se vestir. Qualquer que seja a idade. Para esse público, empresas como a Shein são uma benção.

Claro que os executivos da Shein são espertos. Ao longo da reportagem, são citados comunicados da empresa que fazem chegar ao grande público a preocupação da Shein com eventuais “desvios de conduta”. Como se fosse possível vender os produtos que vende pelo preço que vende sem atuar na fronteira do aceitável, ambiental e socialmente falando. Mas colocar-se como uma empresa “preocupada” não custa nada, a não ser alguns comunicados, que servem para deixar seus clientes com a consciência tranquila.

O incrível sucesso da Shein é prova cabal de que a preocupação com a sustentabilidade passa longe da maioria das pessoas, que simplesmente buscam os melhores produtos pelos menores preços. Achar que as empresas ou os governos podem liderar uma cruzada pela sustentabilidade sem considerar o consumidor na equação é auto-iludir-se.

Aqueles que “podem fazer escolhas”

Pedro Fernando Nery cai na provocação de Lula e se pergunta: será que nosso problema é que a “classe média” (definida pelo colunista como “aqueles que podem fazer escolhas”) consome demais?

Antes de começar, quero dizer que gosto dessa definição, aqueles que “podem fazer escolhas”. No mais miserável barraco da mais miserável favela brasileira você vai encontrar TV e celular. São escolhas, e essas pessoas entram na definição de Pedro Nery para a “classe média”. Sigamos.

Para início de conversa, é preciso reconhecer que, sem poupança não há investimento e, sem investimento, não há crescimento econômico. Este é o mais puro “supply side economy”, justamente o inverso do que Lula e sua camarilha econômica sempre propuseram, que o dinheiro “na mão do pobre” vira consumo e o consumo impulsiona o crescimento. Ciro Gomes pega bem essa contradição, ao chamar de “nacional-consumismo” o modelo econômico do PT, em contraponto ao seu “nacional-desenvolvimentismo”.

Mas voltemos à questão: o brasileiro “que pode fazer escolhas” consome demais? O que seria esse “consumir demais”? Lula refere-se à “ostentação” da classe média (vamos esquecer por um momento o relógio de R$80 mil que o pai dos pobres humildemente ostentava). Pedro Nery refere-se ao pouco gosto que “aqueles que podem fazer escolhas” têm pelo ato de poupar. Somos um país de consumistas.

Isso é verdade. Nosso nível de poupança é dos mais baixos do mundo. Mas o grande despoupador chama-se governo. No breve período de 15 anos em que fabricamos superávits primários (deve ter sido o único período na história do Brasil), usamos esta poupança para pagar os juros da dívida, fruto da despoupança dos anos anteriores. E, desde 2014, temos produzido novamente déficits primários. E de onde vem essa poupança que serve para pagar os juros da dívida e o déficit primário? Sim, vem da poupança dos que “podem fazer escolhas”.

O incentivo à poupança é baixo no Brasil. Temos uma história marcada por confisco e constantes surpresas inflacionárias. Assim, as pessoas que “podem fazer escolhas” escolhem consumir hoje a guardar o dinheiro para um amanhã que não sabem se vai chegar. Somos uma sociedade consumista, a começar do governo, o maior consumidor de todos.

Lula crítica a “ostentação” da classe média por motivos ideológicos. Ele mesmo deve achar esse discurso uma bobagem, mas falando aos seus, divide o mundo em “burguesia” e “proletariado”, sendo que seu partido é a vanguarda do proletariado. É permitida à vanguarda usar um relógio de R$80 mil, na medida em que está trabalhando para a libertação do proletariado de seus grilhões. “Ostentação” é uma categoria que se aplica somente à burguesia, que trabalha para a manutenção de seus privilégios. Pedro Nery toma esse discurso de Lula como uma chamada à poupança. Nada mais longe da realidade.

Redes sociais, a nova face do velho capitalismo

O professor Eugênio Bucci lançou um livro. Em entrevista ao Estadão (destaquei os trechos mais interessantes abaixo), nos conta um pouco do que vai por aquelas páginas. Ao lado de expressões como “a instância da imagem ao vivo é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço”, repetida pelo entrevistador com mal disfarçado enlevo, Bucci somente repete o seu fatwa sobre as redes sociais, o que já havia sido objeto de artigos do professor.

Segundo o professor da ECA, “nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”. Os seres humanos escravizados de todas as épocas, o que inclui os prisioneiros dos campos de concentração nazistas e das prisões do Gulag soviético, devem estar se revirando nos seus respectivos túmulos. Até mesmo os proletários de Marx, esses pobres explorados pelo capital, devem estar aliviados de não serem mais os líderes desse ranking da exploração. Agora, os mais explorados de todos os tempos somos nós, os usuários das redes sociais. U-lá-lá!

Bucci faz uma revelação aterradora: os usuários das redes sociais somos “mercadejados”! A palavra “mercadejar” traz uma carga negativa para esse tipo de intelectual, que vê no comércio algo sujo, impróprio da dignidade humana. Para esse pessoal, um outro mundo, com as pessoas trabalhando quanto puderem e consumindo quanto quiserem, é possível. Não à toa, o professor se refere à “ganância do capital” como a fonte de todos os nossos problemas. De fato, essa ganância que permitiu tirar bilhões de seres humanos da miséria e dobrar a expectativa de vida da humanidade ao longo dos últimos séculos é um problema a ser resolvido.

Mas voltemos à “revelação”: somos mercadorias! Uau! E eu achando que o Zucka nos fornecia essa plataforma de graça por ser um grande filantropo, interessado apenas em nos proporcionar alguma diversão. Estou perplecto.

O professor nos conta que há uma grande assimetria: enquanto os algoritmos nos conhecem profundamente, nós não conhecemos nada sobre os algoritmos. Fico pensando o que ganharíamos em conhecer os detalhes técnicos dos algoritmos. Deixaríamos de clicar onde clicamos? Deixaríamos de visitar as páginas que visitamos? Deixaríamos de usar as redes sociais? Na verdade, parece-me que hoje não há ninguém suficientemente ingênuo que não saiba que toda a sua navegação na Internet esteja sendo monitorada para nos vender coisas. O que mais exatamente precisamos saber?

Aliás, essa “assimetria” informacional não é privilégio das redes sociais. Toda empresa de bens de consumo conhece muito melhor o cliente, via pesquisas e imensos bancos de dados (que já existiam antes das redes sociais) do que o cliente conhece a empresa. As redes sociais e o Google somente alavancaram no poder da Internet para levar esse processo de conhecimento do cliente ao estado da arte. Não houve uma mudança de natureza, houve apenas um aumento da velocidade e da quantidade de dados disponíveis.

Bucci sugere como remédios “regulamentação democrática” e “quebra de monopólio”. Fico imaginando que tipo de regulamentação poderia impedir o uso de dados que os usuários topam compartilhar como preço pelo uso da ferramenta. E, caso haja proibição total de uso desses dados, fico imaginando como as redes sociais e os buscadores da Internet sobreviveriam. Na verdade, a própria Internet como a conhecemos ficaria inviabilizada. Voltaríamos a um mundo sem Internet. Conseguem imaginar?

Por fim, não poderia faltar o toque político: a democracia estaria ameaçada! Por quem? Nada mais, nada menos, que os bolsonaristas, que usam as redes sociais para espalhar o ódio e fake news. Como se outras forças políticas não pudessem usar as redes sociais por algum motivo. E como se as redes sociais fossem um fator determinante para abalar regimes democráticos. Não me consta que Hitler ou Stálin contassem com redes sociais.

Enfim, toda a análise do professor Eugênio Bucci está irremediavelmente contaminada pela sua visão anti-capitalista. As redes sociais são somente a mais conveniente e atual desculpa para apontar os males da sociedade consumista em que nos transformamos. O sonho dos Bucci da vida é o outro mundo possível, em que nos livremos da ganância do capital. Não deixa de ser irônico que os cubanos, que experimentaram esse outro mundo possível, estejam agora mesmo pedindo acesso livre às redes sociais.

O ambientalismo da Vila Madalena

Jeffrey Sachs, renomado economista americano e diretor de um departamento de sustentabilidade da ONU, concede longa entrevista hoje no Valor. São muitos as pérolas que poderiam ser destacadas, mas acho que o trecho abaixo resume bem a bolha onde esse pessoal vive.

Segundo Sachs, é questão de pouco tempo para que “as pessoas” se perguntem de onde está vindo o alimento que comem, e rejeitem soja que tenha vindo de áreas desmatadas da Amazônia.

Não vou nem entrar no mérito do que se considera “Amazônia” no critério da ONU. Deve ser tudo que estiver acima da Barra da Tijuca. A questão é outra: assumir que a imensa maioria da população global, que não tem onde cair morta, vai olhar para a embalagem do produto e verificar se é “desmatamento free”.

Nos mercados descoladas da Vila Madalena ou do Leblon, é comum encontrarmos produtos “orgânicos”, cultivados sem (ave-maria cruz-credo) agrotóxicos. Obviamente, muito mais caros do que os produtos “comuns”. Ora, se as pessoas, por pura limitação econômica, não se recusam a ingerir comida “envenenada”, que dirá sobre a preservação das árvores da Amazônia.

Esse pessoal vive na bolha dos 0,1% mais ricos da população, onde a comida é farta e pode ser escolhida com critérios “corretos”. No mundo real, a Índia está comemorando o fim da defecação a céu aberto, conforme notinha também reproduzida aqui.

Ambos os textos retirados do jornal O Estado de São Paulo

A China precisa alimentar mais de 1 bilhão de pessoas (e o Brasil mais de 200 milhões) do jeito que der. Quando todos os habitantes do planeta puderem consumir duas mil calorias por dia, daí talvez possamos começar uma discussão sobe “conscientização”. Aliás, os plantadores de soja conseguem fornecer proteínas para esse mundaréu de gente com um impacto ambiental bastante limitado, dado o tamanho do desafio.

Em outro ponto da entrevista, Sachs afirma que quem está contra as ações para conter as mudanças climáticas só está pensando no dinheiro. Pode ser. Mas eu diria que o grande problema dessas ações é combinar o jogo antes com aqueles que NÃO TEM dinheiro. Esses é que, no final do dia, teriam que pagar, com suas próprias vidas, pelas políticas ambientalistas.

Qual a opinião dos pais?

A história é a seguinte: o McDonalds promoveu, durante 18 dias de 2013, 35 shows em escolas, com a presença do Ronald McDonalds. Estes shows, segundo a empresa, eram educativos, com o roteiro previamente acertado com a direção das escolas, e sem propaganda direta, apenas a óbvia presença do grande M amarelo.

O Instituto Alana, que luta contra a publicidade dirigida ao público infantil, entrou na justiça e ganhou a ação contra a empresa. Mas o interessante vem agora.

Qual o fundamento da ação do instituto? A premissa de que “a publicidade faz com que a criança se sinta seduzida a entrar para o mercado de consumo”. E note que estamos falando de um palhaço aparecendo no palco, e que em momento algum diz “coma um Big Mac agora”.

Pois bem.

Bolsonaro vem sendo ridicularizado pela sua luta contra o chamado “kit gay”. Na verdade, trata-se de educação sexual para crianças, acoplada a uma “normalização” do comportamento homossexual, sob o pretexto (correto ou incorreto, não vou entrar no mérito) de combater o preconceito. Segundo o candidato do PSL, esse tipo de material teria o poder de “influenciar as crianças” em suas opções sexuais.

O movimento Escola Sem Partido também vem sendo ridicularizado por pretender que professores e materiais didáticos sejam neutros em matéria política. O movimento vem sendo combatido sob o pretexto (correto ou incorreto, não vou entrar no mérito) de defender o “debate democrático” em sala de aula, e a “conscientização dos jovens”. O que o Escola Sem Partido diz é que esse tipo de debate envolvendo professor e aluno, com óbvias diferenças de preparo e de autoridade, nada mais é do que doutrinação, tendo o poder de “influenciar as crianças” em suas opções políticas.

Não tenho como provar aqui, mas tenho uma forte desconfiança de que os mesmos que acham lindo ações como a do Instituto Alana, defendem a educação sexual nas escolas e são contra o Escola Sem Partido.

No fundo, a questão não está na “influência sobre as crianças”, mas QUAL é esta influência. O Instituto Alana está preocupado com a influência da publicidade. Não quer que as crianças se tornem “consumistas”. Ora, a publicidade é o coração do capitalismo, e o consumo, o seu motor. Ao lutar contra a publicidade infantil, no fundo o Instituto Alana coloca-se contra a influência do capitalismo sobre as crianças. Claro, se alguém perguntar, eles dirão que não são contra o capitalismo, mas apenas contra o consumismo, o que quer que isso signifique. Ter vontade de ir ao McDonalds torna-se um pecado mortal nessa nova religião, e devemos proteger nossas crianças contra isso.

Já a “educação contra o preconceito” e a “conscientização política” vão transformar o mundo em um lugar melhor. Assim, o Instituto Alana e outras tribos correlatas acham normal a educação sexual e o debate político nas escolas. Neste caso, a influência sobre as crianças é “do bem”.

Notaram como, nessa história toda, os pais não entraram em momento algum? Talvez fosse interessante perguntar aos pais, responsáveis últimos pela educação de seus filhos, o que acham disso tudo.