Mais uma reportagem sobre os “influenciadores digitais” de finanças. Parece que somos o número 1 do mundo nessa matéria, segundo a reportagem.
Já me disseram que, com meu conhecimento sobre investimentos e minha didática, eu poderia ser um bom “influenciador digital” nessa área. Até tenho um blog sobre o assunto, que está desativado, mas que não fez muito sucesso. Talvez porque eu não desse “dicas” de investimento, mas somente dissesse coisas chatas, como “você não vai ficar rico com investimentos” ou então “diversifique seus investimentos e vai cuidar da sua vida”. Reconheço que não é muito sexy. Mas não poderia fugir disso, pois não encaro investimentos como um cassino, onde o jogador fica atrás da próxima “dica quente” que vai deixá-lo milionário. Não, investir não é isso.
Todo dia, um esperto e um otário saem de casa, e a chance de se encontrarem é muito grande. Minha “dica” de hoje é: não seja o otário.
As criptomoedas estão quase se tornando uma moeda corrente! É a sensação que se tem ao ler reportagens como a que saiu hoje no Estadão.
Faz-me lembrar de matérias que de vez em quando saem no UOL, afirmando, por exemplo, que “está cada vez mais na moda homens usando saia”. Pois é, talvez seja mais fácil encontrar um homem usando saia do que uma empresa que aceite criptomoeda como forma de pagamento.
E atenção! Não me refiro a este engodo que a reportagem quer nos fazer passar como “uso de criptomoeda”. Isso que vai descrito é apenas uma interface para fazer o câmbio de criptomoedas por reais, a moeda que realmente vale. O proprietário de um dos estabelecimentos admite candidamente que a volatilidade da moeda é do cliente, não dele. O mesmo admite a prefeitura do Rio, que vai passar a “aceitar” criptomoedas para o pagamento do IPTU.
Vou tentar explicar melhor: tanto o preço da mercadoria quanto o IPTU do Rio continuarão sendo determinados EM REAIS. O feliz proprietário dos bitcoins, para usá-los para pagar a mercadoria e o IPTU, vai precisar antes converter seus bitcoins em reais. O que o estabelecimento e a prefeitura vão fazer é acoplar uma dessas empresas de câmbio de bitcoins aos seus sistemas, de modo que o dono dos bitcoins não precise fazer a operação de venda da moeda eletrônica antes de fazer o pagamento em reais. Seria o mesmo que as empresas ou a prefeitura aceitassem pagamento em, sei lá, carros usados, e contratassem agências de carros usados que fizessem a troca desses carros por reais. As agências entregam reais para as empresas e para a prefeitura e ficam com os carros usados. O risco da “cotação” do carro usado, obviamente, fica todo com o cliente. Carro usado foi apenas um exemplo, qualquer outra “moeda” poderia ser usada, o bitcoin não é nem melhor nem pior, só tem mais glamour.
Trata-se, apenas, de uma conveniência, não de uma revolução. Revolução mesmo seria a empresa e a prefeitura estabelecerem o preço EM BITCOINS, não em reais. Aí sim, estaríamos em outro sistema monetário. Mas, além de ser proibido por lei transacionar em outra moeda que não o real, ninguém ainda é louco o suficiente para atrelar suas receitas a uma “moeda” que tem o triplo da volatilidade da bolsa de valores. Criptomoeda serve para especulação, você compra esperando que haverá alguém lá na frente que compre de você mais caro. Só isso.
Pois é isso que alguns prefeitos em cidades americanas estão pensando em fazer: pagar os salários dos funcionários municipais em bitcoins. Do outro lado, também topariam receber impostos municipais em bitcoins. A matéria da Bloomberg discute essa possibilidade e coloca como grande vantagem de receber o salário em bitcoins a chance de ter um grande “aumento salarial” do dia para a noite. Claro que, em contrapartida, existe o risco de perder 25% do salário em poucos dias, como aconteceu na última semana.
O problema dessa argumentação, e que o jornalista provavelmente nem notou, é justamente esse conceito de “valorização/desvalorização” do salário. Para que possamos dizer que o salário vai se valorizar ou desvalorizar, precisamos usar uma referência. A referência usada é a velha moeda, o dólar. Em um mundo onde só houvesse criptomoedas, a valorização/desvalorização seria medida em função da cesta de produtos possíveis de serem comprados com a moeda. A isso chamamos de inflação, exatamente como medimos o poder de compra das moedas tradicionais. O salário de países com alta inflação se desvalorizam em relação ao dólar, assim como as criptomoedas se desvalorizaram na última semana.
O simples fato de se comparar as criptomoedas com o dólar demonstra que o que manda é o dólar. As pessoas que recebem seus salários em criptomoedas precisam vendê-las para fazer o supermercado. É o dólar a moeda em curso, não as criptomoedas. O que leva ao problema central da coisa toda: como estabelecer o valor do salário em criptomoedas? Se os municípios arrecadam dólares, estabelecer um valor de salário fixo em criptomoedas traz para o orçamento público uma volatilidade impossível de ser administrada. A não ser que os funcionários topem fixar o salário em dólares e recebam as criptomoedas pela cotação do dia. Mas, nesse caso, seria o mesmo que receber o salário em dólares e depois, aqueles que quisessem, comprariam criptomoedas. A coisa só faz sentido se o salário for fixado em número de criptomoedas.
As criptomoedas são uma inovação financeira interessante, boa para se especular. Mas, como moeda de troca, a ponto de substituir as moedas garantidas pelos governos, vai uma distância imensa. A própria natureza descentralizada do esquema conspira contra a sua adoção ilimitada. A moeda é, antes de tudo, uma construção social, e precisa, para funcionar como moeda de troca, de uma coordenação central. Esse é o grande problema para a adoção generalizada das criptomoedas como moeda de troca.
A saída clássica de qualquer governo quebrado é criar a sua própria moeda. A Venezuela nos deu o último exemplo ao criar o Petro, criptomoeda lastreada nas reservas de petróleo do país. A Venezuela continua quebrada, agora também em Petros.
Era assim no Brasil quando os entes federativos podiam lançar títulos de dívida próprios, alavancando o seu potencial de gastar como se não houvesse amanhã. O governo FHC acabou com a farra, monopolizando o poder de emitir dívida nas mãos do governo Federal. Assim, somente a União pode emitir moeda ou quasi-moeda.
Crivella quer usar o bitcoin como moeda para as transações da prefeitura. Precisa avisa-lo que, se o governo continuar gastando mais do que arrecadando, vai quebrar em qualquer moeda, seja em reais ou bitcoins.