A galinha dos ovos de ouro vai morrer novamente

É conhecida a fábula da galinha dos ovos de ouro. Em um vilarejo, um granjeiro cuidava de suas galinhas, quando descobriu que uma delas botou um ovo de ouro. Todo contente, foi contar à sua esposa, que também ficou muito feliz com a grande descoberta. Pegaram aquele ovo e foram até o vilarejo, onde venderam o ovo por uma grande quantia em dinheiro. “Ficamos ricos!”, pensaram.

O problema é que a galinha botava um ovo de ouro somente de tempos em tempos. O dinheiro acabou, e o casal começou a impacientar-se com aquela demora. Decidiram, então, acelerar o processo. Pensaram assim: por que se satisfazer com um ovo de ouro de quando em vez, quando poderiam obtê-los todos de uma vez? Bastaria abrir a barriga da galinha e arrancar os ovos de ouro todos de suas entranhas. E assim o fizeram, para descobrirem, horrorizados, que não havia nenhum ovo de ouro, apenas vísceras comuns. Por causa de sua ganância, ficaram com uma galinha morta, e sem os ovos de ouro.

Esta fábula é sobre fazer a coisa certa e esperar pelos resultados. Se os granjeiros tivessem continuado a alimentar a galinha e esperassem o resultado, continuariam ricos. A economia é uma especie de galinha dos ovos de ouro. É preciso fazer a coisa certa e aguardar os resultados. Ao longo do tempo, os ovos de ouro do crescimento econômico vêm.

O crescimento econômico é um processo lento, que se dá nas entranhas da economia sem sabermos muito bem como acontece. Só sabemos que é preciso alimentar a economia com aumento de produtividade. O PIB é a soma de todo o valor agregado na economia. Por isso, de nada adianta gastar por gastar. É preciso que esses gastos agreguem valor à economia. Um exemplo simples: uma estrada feita pelo governo somente agregará valor à economia se houver tráfego suficiente para compensar o dinheiro gasto. E por “tráfego suficiente” quero dizer valor agregado adicional por causa da existência daquela estrada. Obviamente, estradas inacabadas ou que servem ao haras de ministro não cumprem essa condição.

Há uma espécie de sofreguidão por gastar, como se isso, por si só, fosse fazer aumentar o PIB. Gastar por gastar é o equivalente a matar a galinha dos ovos de ouro, esperando conseguir todos os ovos de uma vez. Os desenvolvimentistas dirão que não se trata de “gastar por gastar”, mas de investir nos “projetos certos”, aqueles que vão agregar valor. Como se anos de gastos em projetos furados durante a era PT (não só da era PT, mas eles levaram a coisa ao estado da arte) não tivessem sido suficientes para demonstrar que escolher o “projeto certo” não é exatamente a especialidade de governos.

E lá vamos nós de novo, pegar dinheiro gerado por atividades produtivas e queimar em projetos para “fazer o país crescer”. A galinha dos ovos de ouro vai morrer novamente.

O lugar perfeito para Dilma

Dilma Rousseff foi escolhida para presidir o New Development Bank (NDB), o chamado “Banco dos BRICS”, com sede na China. Eu era um dos que achavam inadmissível que Dilma não tivesse uma posição de destaque no governo Lula, dada a sua larga experiência nessas políticas que o PT quer implementar. Finalmente foi feita justiça, e Dilma foi nomeada para um cargo chave para o futuro do País. As más línguas dirão que Lula escolheu a China para mandar Dilma porque ainda não há representação brasileira na Lua, então foi o ponto mais distante possível. Pura fofoca, a presidência do NDB é a cara da Dilma. Vejamos.

A ideia inicial do NDB foi lançada em 2012 e o seu início de operação se deu em 2015. Ou seja, dentro do governo Dilma. Seus fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) entraram com cotas iguais: US$ 2 bilhões em cash, totalizando US$ 10 bi. Além disso, o banco emitiu outros US$ 10,5 bi em bônus de dívida. Foram aprovados os seguintes montantes em projetos até 2021:

– Brasil: US$ 4,9 bi

– Rússia: US$ 4,5 bi

– Índia: US$ 7,1 bi

– China: US$ 7,4 bi

– África do Sul: US$ 5,3 bi

Tota: US$ 29, 2 bi

O total de volumes aprovados supera o de cash+dívida porque esses volumes foram aprovados mas ainda não desembolsados. Corrigindo pelos montantes já aprovados para projetos, cada um dos países têm um capital empatado no NDB até o momento de US$ 5,8 bi. Ou seja, o Brasil gastou (ou está devendo) um montante de US$ 5,8 bi e teve montante aprovado de projetos de US$ 4,9 bi. Portanto, nesses 6 anos, o Brasil gastou (ou vai gastar) liquidamente US$ 900 milhões com o NDB para financiar projetos na Índia e na China, os países superavitários da “parceria”. Belo negócio, a cara da Dilma.

Visto de outra forma: se esses projetos fossem financiados pelo BNDES, teríamos economizado US$ 900 milhões. Mas a criação de “bancos de desenvolvimento” está no DNA de pessoas como Dilma. Por isso, nenhum lugar melhor para a ex-presidenta.

Sociedades em bancos globais de desenvolvimento fazem sentido quando países ricos ajudam países pobres. Por exemplo, no Banco Mundial, segundo o balanço de junho/22, o Brasil entra com 6,9% do total de empréstimos e contribui com 2,1% do capital do banco. Isso acontece porque os maiores contribuidores são os países mais ricos. Qual o sentido de se associar com iguais e uns emprestarem dinheiro para os outros para, no final, todo mundo sair como entrou, a menos da estrutura montada para abrigar pessoas como Dilma?

Sim, Dilma está no lugar certo: longe do Brasil, perto de ideias que queimam o dinheiro do contribuinte.

Isso é tudo o que você precisa saber

“Desorganizaram a governança da economia, dos financiamentos públicos, do apoio às empresas, aos empreendedores e ao comércio externo. Dilapidaram as estatais e os bancos públicos; entregaram o patrimônio nacional. Os recursos do país foram rapinados para saciar a estupidez dos rentistas e de acionistas privados das empresas públicas.”

“Vamos retomar o Minha Casa Minha Vida e estruturar um novo PAC para gerar empregos na velocidade que o Brasil requer. Buscaremos financiamento e cooperação – nacional e internacional – para o investimento, para dinamizar e expandir o mercado interno de consumo, desenvolver o comércio, exportações, serviços, agricultura e a indústria. Os bancos públicos, especialmente o BNDES, e as empresas indutoras do crescimento e inovação, como a Petrobras, terão papel fundamental neste novo ciclo.”

“A roda da economia vai voltar a girar e o consumo popular terá papel central neste processo. Vamos retomar a política de valorização permanente do salário-mínimo.”

“Vamos dialogar, de forma tripartite – governo, centrais sindicais e empresariais – sobre uma nova legislação trabalhista.”

“Não faz sentido importar combustíveis, fertilizantes, plataformas de petróleo, microprocessadores, aeronaves e satélites. Temos capacidade técnica, capitais e mercado em grau suficiente para retomar a industrialização e a oferta de serviços em nível competitivo.”

Isso é tudo o que você precisa saber sobre o governo que hoje se inicia.

Prepare o seu coração

Abaixo, temos o parágrafo inicial do capítulo “Uma agenda econômica para resgatar o Brasil”, do livro “Economia pós-pandemia”. Dá uma lida antes de continuar.

O que tem de especial esse livro? Ele foi organizado pela futura ministra da gestão, Esther Dweck, e mais três economistas da Unicamp, dentre os quais Guilherme Mello, que provavelmente fará parte da equipe de Fernando Haddad.

Esther comandará uma pasta que foi desdobrada do Planejamento, que, por sua vez, foi desdobrada da Economia. O interessante é que esses desdobramentos não ocorreram para atender a interesses políticos, pois os ministérios criados foram, até o momento, entregues a pratas da casa. Trata-se, de fato, de um estilo de governo mais, digamos, balofo. Mas este não é o ponto do post.

A questão é que nomeação da economista da UFRJ é mais uma estaca nos coraçõezinhos sensíveis dos economistas tucanos e farialimers, que esperavam alguma responsabilidade no trato da economia. Resta, de alguma relevância, os nomes do ministro do Planejamento e dos secretários de Política Econômica e do Tesouro, subordinados ao ministro da Fazenda. Para aqueles que ainda esperam alguma luz, sugiro prepararem o coração.

O moto-perpétuo não existe

Meu caro Boulos, bom tarde!

Li em uma reportagem no Valor de hoje que você espera o aquecimento da economia via ”o investimento pesado na construção de moradias populares”.

Trata-se de erro muito comum, em que se confunde o curto com o longo prazo e, principalmente, não se entende a natureza do crescimento econômico. Não vou culpá-lo por isso, ainda mais sabendo quem são seus gurus nessa matéria. Mas permita-me, nessa missiva, mandar a real sobre o tema.

Para entender a questão, imagine por um momento que, ao invés de construir casas populares, o governo se dedicasse a contratar pessoas (milhões delas) para abrir buracos e fechá-los novamente. Essa atividade frenética certamente “aqueceria a economia”, não somente através do salário recebido pelos escavadores, como também pelo impulso a toda a cadeia de produção de pás. O problema é que nada disso contribui para o crescimento econômico no agregado da economia. Na verdade, há um decrescimento econômico. Para entender este ponto, é preciso lançar mão do conceito de “valor”.

O crescimento do PIB nada mais é do que a soma de todo o valor agregado da economia. Se eu produzo um filão de pão por R$ 1,00 e consigo vendê-lo por R$ 3,00, agreguei R$ 2,00 ao PIB do país. Isso porque alguém viu valor no pão que eu produzi, a tal ponto que ficou disposto a pagar R$ 3,00 por ele. Assim, agreguei R$ 2,00 de valor às matérias primas que comprei e aos salários que paguei para produzir aquele filão de pão. Do nada, com meu trabalho e engenho, criei valor. Isso é PIB.

Voltemos aos buracos do governo. Aquela atividade não criou valor. Pelo contrário, destruiu valor. O governo arrecadou impostos daqueles que criaram algum valor para a economia no passado, e literalmente enterrou-os. Tanto faz se os salários dos operários servirão para movimentar o comércio ou se a indústria de pás irá florescer. No agregado da economia, o que importa é que todo o dinheiro gasto em pás e salários saiu de algum lugar e não criou valor. Pelo contrário, foi literalmente enterrado.

Boulos, você deve estar se perguntando, ainda, se a atividade gerada pela indústria dos buracos, afinal, não agrega ao PIB. Sim, meu caro, agrega. Mas, a somatória desse valor criado com o valor destruído é negativa. Fica fácil de entender se colocamos alguns números aqui. Digamos que o governo gaste R$ 1.000 comprando pás e outros R$ 2.000 pagando os salários dos escavadores. O fabricante de pás gastou R$ 700 para produzi-las e, portanto, agregou R$ 300 de valor. Já os empregados vão gastar esses R$ 2.000 no comércio, que gastou R$ 1.500 em mercadorias. Portanto, o comércio agregou R$ 500. Comércio mais fabricantes de pás agregaram, portanto, R$ 800. O governo, por outro lado, tirou R$ 3.000 da economia para manter essa atividade sem criar nada. Portanto, destruiu um valor líquido de R$ 2.200. Não tem como essa conta fechar.

Claro que estamos falando de construção de imóveis, não de cavar buracos. Mas o raciocínio é rigorosamente o mesmo. Se os imóveis construídos não puderem ser vendidos por um preço acima do seu custo, o governo estará destruindo valor, da mesma forma que faria se estivesse cavando buracos inúteis. Do ponto de vista de crescimento econômico, é exatamente a mesma coisa.

Meu caro Boulos, já vejo você protestar contra esse exemplo, dado que construir imóveis populares é algo muito necessário e tem o seu mérito. Além disso, há ”externalidades positivas”, palavra bonita muito usada por seus mentores da Unicamp, e que justifica todo e qualquer investimento do governo. Sem entrar no mérito da benemerência desse tipo de investimento, o que é indiscutível, a questão é que a matemática do PIB continua a mesma independentemente das boas intenções do governo. E quanto às externalidades positivas, trata-se de algo extremamente difícil de quantificar. No caso, pessoas com boa moradia tendem a ser mais produtivas, sem dúvida, mas a questão é quanto outros fatores que forçam a produtividade para baixo não predominam, fazendo com que um teórico ganho de produtividade não compense o subsídio a esse tipo de empreendimento.

Em resumo: o governo pode (ou até, talvez, deva) subsidiar moradias populares. Afinal, nossos impostos devem servir para distribuir renda. Isso é uma coisa. Outra coisa é esperar que esse tipo de iniciativa vá “aquecer a economia”. Não vai. Pelo contrário. O aumento da carga tributária ou da dívida pública para financiar esse tipo de iniciativa fará com que, no final, a economia se desacelere, como vimos nos últimos anos do PT. Não há mágica. Se investimentos públicos a fundo perdido fizessem a economia crescer, teríamos inventado o moto-perpétuo. E esse mecanismo mágico, meu caro Boulos, infelizmente, não existe.

Discutindo a relação

A parte mais divertida das análises de economistas da chamada “escola desenvolvimentista” são as justificativas de porque determinada política econômica não funcionou como o previsto. O jornalista Pedro Cafardo, em sua coluna de hoje, nos brinda com um desses momentos.

Cafardo parte de uma dissertação de mestrado em sociologia (!) para descrever o que deu ruim na relação entre o setor industrial e um governo que, supostamente, patrocinou toda a agenda desenvolvimentista. Segundo a coluna, a participação da indústria no PIB era de 16,9% em 2003, caindo para 11,7% em 2016. Ou seja, a indústria continuou a encolher durante os governos do PT, mesmo com todos os incentivos “corretos”.

O diagnóstico dos industriais, levantado pela dissertação, é que de nada adianta incentivos se os juros e o câmbio estão “errados”. Juros altos e câmbio apreciado neutralizariam a “política industrial”, tornando-a inócua.

A parte mais, digamos, pitoresca da análise está na avaliação de que, talvez, os empresários industriais, por serem também rentistas na pessoa física, não se posicionaram contra os juros altos. Ou seja, haveria um conluio entre os industriais e o setor financeiro para manter os juros altos e, assim, matar a indústria. Essa vai para a minha caderneta.

Há um vício de origem em toda essa análise: o de que juros e câmbio podem ser determinados discricionariamente pelo governo. Só não o faz porque o setor financeiro domina tudo e falta “força e coragem” (no dizer do bravo colunista) ao setor industrial para impor a agenda do desenvolvimento.

Juros e câmbio são o preço do dinheiro. A taxa de juros é o preço do dinheiro para as transações domésticas, enquanto o câmbio é o preço do dinheiro para as transações com o exterior. Ambos os preços são formados pelas expectativas dos agentes econômicos com relação ao que o governo, que é o monopolista da emissão de moeda, vai fazer. Quanto mais o governo não for confiável e sinalizar que não respeita a própria moeda, mais cara fica a mercadoria.

No caso específico dos incentivos à indústria, todos eles, de alguma maneira, pesam sobre o orçamento público, o que força os juros para cima. A esperança dos desenvolvimentistas é que incentivos localizados em “setores dinâmicos” da economia podem impulsionar o crescimento econômico, aumentando a arrecadação e mais do que compensando o custo dessas políticas. Já vimos, nos governos do PT, principalmente durante a gestão Dilma Rousseff, que este moto-perpétuo econômico ainda não foi inventado.

Se o governo tentasse, artificialmente, manter os juros baixos e o câmbio depreciado, o resultado seria mais inflação, o que não é um equilíbrio sustentável a longo prazo. Aliás, qualquer controle artificial de preços leva a distorções que, mais cedo ou mais tarde, precisam ser corrigidos. Controlar juros e câmbio são, em última análise, controle de preços. Não se trata de “força e coragem”, mas de “oferta e demanda”.

A coluna acerta apenas quando afirma que essa discussão ganha importância na medida em que o PT pode voltar ao poder no ano que vem. De fato, todas as declarações de Lula, até o momento, apontam para os mesmos erros de política econômica que marcaram as gestões do PT até 2016. Pelo visto, o chão é o limite para a participação da indústria no PIB.

A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo

O economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e um dos mais famosos defensores de teorias desenvolvimentistas no mundo, escreve artigo publicado no Valor Econômico de 14/03, comemorando o novo acordo entre a Argentina e o FMI. O economista elogia a nova postura do FMI, que estaria privilegiando o crescimento econômico ao invés da costumeira austeridade para resolver o problema da dívida argentina. Segundo o artigo de Stiglitz, a austeridade se mostrou um veneno que somente piorou a vida do paciente. Agora, a nova abordagem tem muito mais chance de sucesso por não ignorar o componente político, pois atende às necessidades dos argentinos mais pobres.

Vamos começar pelo começo. Tanto economistas do mainstream quanto os desenvolvimentistas vão concordar que não é possível viver eternamente em déficit, a não ser que se encontre um financiador benévolo que cubra as necessidades de caixa sem contrapartidas. Ou, o que é mais comum, que se imprima dinheiro (orçamento monetário) para cobrir o déficit, gerando inflação. O que difere ortodoxos de heterodoxos é como resolver o problema do déficit eterno. Os ortodoxos defendem a redução de gastos. Já os desenvolvimentistas acreditam que o déficit deve ser coberto com as receitas geradas pelo crescimento econômico. E, para fomentar o crescimento econômico, é preciso gastar mais, não menos. Vamos explorar um pouco essa ideia.

Imagine que um país tenha um déficit primário (antes do pagamento dos juros) de 3% do PIB. Este déficit, por construção, não está sendo utilizado para fomentar o crescimento econômico pois, se estivesse, em tese, estaria gerando os recursos para o fechamento desse mesmo déficit. Como o déficit se repete ano após ano, claramente não está funcionando como indutor do crescimento. Se estivesse, repito, o déficit estaria fechando. Então, das duas uma: ou este déficit de 3% deveria ser usado para fomentar o crescimento econômico, ou o déficit deveria ser aumentado para fomentar o crescimento econômico. Manter o déficit em 3% significa retirar recursos de algum lugar para direcionar ao fomento do crescimento. Mas isso significa encontrar gastos estatais que podem ser cortados, o que normalmente esbarra na preservação de “direitos adquiridos” ou em cortes de programas sociais. Como isso geralmente é politicamente inviável, resta aumentar o déficit. Digamos, então, que o déficit seja aumentado de 3% para 4%, e esse 1% adicional seja usado em programas estatais de fomento ao crescimento. Estes programas teriam um “efeito multiplicador”, que gerariam para a sociedade mais do que os 1% investidos. No caso, teriam que gerar 4 vezes mais, para pagar o 1% de déficit adicional mais os 3% de déficit originais. Haja multiplicação dos pães! Poderíamos aumentar ainda mais o déficit, o que diminuiria o efeito multiplicador necessário para que o plano desse certo. Mas aí esbarraríamos em outra questão: a eficiência do investimento estatal.

Para que o esquema todo funcionasse, seria necessário que o governo investisse o déficit em empreendimentos com um retorno excepcional. Sabemos, no entanto, que a eficiência dos investimentos feitos por governos é prejudicada por escolhas políticas que se sobrepõem às escolhas técnicas, falta de agilidade em função das amarras típicas do uso do dinheiro público e corrupção. Portanto, e é essa experiência que temos de programas como o PAC, FIES, fomento da indústria naval e de sondas petrolíferas, campeões nacionais e uma longa lista de etceteras, o que normalmente temos é um multiplicador negativo. Em outras palavras, investimentos governamentais normalmente queimam dinheiro ao invés de multiplicarem dinheiro. Uma boa parte da recessão que nos assolou no biênio 2015/16 teve como origem os investimentos desenvolvimentistas dos anos anteriores, que cobraram o seu preço. Claro, os desenvolvimentistas dirão que o culpado pela recessão foram os esforços ortodoxos feitos em 2015, eliminando gastos que cortaram o oxigênio do crescimento econômico. Mas nem Dilma Rousseff, a rainha dos desenvolvimentistas, aguentou a cobrança dos credores que batiam à porta exigindo taxas de juros maiores se algo não fosse feito. Os credores não costumam entender a lógica do multiplicador. Sigamos.

Existe um pequeno elemento que normalmente é esquecido nas propostas dos desenvolvimentistas: a inflação. Stiglitz cita a inflação “en passant”, concedendo que “pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado”.

“Pode ser um problema”, vejam só.

A inflação, como sabemos, é o imposto mais perverso que existe, pois corrói a renda das pessoas na proporção inversa de sua riqueza. Não se trata somente do bom funcionamento dos mercados, que também é o caso. Trata-se de uma questão de justiça social, defendida com tanto denodo pelos desenvolvimentistas. Déficits são inflacionários, investimentos governamentais malfeitos são inflacionários. Não é à toa que a inflação seja invariavelmente o preço cobrado pelas políticas desenvolvimentistas. Mas este é somente um detalhe, tratado “en passant” nesse tipo de proposta. A Argentina tem a quarta maior inflação do mundo, cerca de 50% ao ano, perdendo somente para Venezuela (outra campeã de políticas desenvolvimentistas), Zimbabwe e Sudão.

Voltemos ao novo acordo com o FMI. Este acordo é resultado de uma renegociação do acordo fechado pelo ex-presidente Maurício Macri em 2018, que por sua vez foi fechado para cobrir os empréstimos tomados no exterior para fazer frente ao duplo déficit fiscal e de conta corrente do país, pois o governo Macri se recusou a usar os instrumentos heterodoxos (principalmente imprimir dinheiro) para fechar a conta. Como o programa de austeridade de Macri não funcionou (os desenvolvimentistas dirão que nunca funcionam, os ortodoxos dirão que foi muito pouco, muito tarde), Macri teve que recorrer ao FMI. E, agora, estamos em meio à renegociação dessa dívida. A Argentina pretende usar o dinheiro do novo acordo para pagar o serviço da dívida com o próprio FMI e cobrir o déficit fiscal. A novidade está nas condicionalidades, muito mais leves do que no acordo anterior. Por exemplo, no campo fiscal, existem metas de diminuição do déficit primário ao longo do tempo, mas garantindo um “crescimento real das despesas” de modo a permitir o investimento em infraestrutura e ciência e tecnologia (vide carta de intenções, item 12). São várias outras “condicionalidades” que condicionam pouco. E, como cereja do bolo, a inflação está sendo controlada pela assinatura de um acordo com mais de 150 empresas para garantir aumento de preços no máximo de 2% ao mês em produtos básicos (item 21 do mesmo documento). O FMI definitivamente não é mais o mesmo.

No dizer de Alejandro Werner, ex-diretor do FMI para o hemisfério ocidental, em artigo na Americas Quaterly crítico ao acordo, o problema da Argentina é a “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de um acordo de como financiá-lo”. Se isso não for resolvido, todo o resto é paliativo, e não há crescimento econômico que resolva. A questão é saber quanto tempo o FMI vai levar para descobrir que continua em uma barca furada. Stiglitz, em seu artigo, recomenda que o FMI tenha paciência com a Argentina e não desista ao primeiro sinal de “descarrilamento”, ou seja, de não cumprimento das metas de déficit. Afinal, segundo o prêmio Nobel, esse não cumprimento só pode ser devido a choques externos e não a dificuldades políticas domésticas, e o país não pode ser abandonado simplesmente por não ter cumprido metas que estão acima de sua capacidade. Este, afinal, é o sonho de todo desenvolvimentista: encontrar um financiador eterno, que não exige metas para continuar emprestando dinheiro ad aeternum. Ou até o efeito multiplicador funcionar.

Os economistas do lado errado da economia

Meu amigo Cleveland Prates, o economista comunista mais neoliberal que conheço, enviou-me o link da notícia abaixo: uma entrevista do economista Antonio Correa de Lacerda ao portal GGN, de Luís Nassif, que dispensa apresentações. Lacerda é o presidente do Cofecon, Conselho Federal de Economistas, e já tivemos oportunidade de analisar suas, digamos, ideias, nessa página.

A reclamação de Lacerda e dos outros economistas envolvidos na entrevista é a preponderância de economistas ligados ao setor financeiro no debate de políticas econômicas no país. A imprensa buscaria somente esses economistas, deixando de lado aqueles ligados ao “setor real” da economia, que teriam muito a contribuir para o debate.

O problema é que os economistas que se formam na faculdade têm quatro caminhos: 1) trabalhar no setor financeiro ou em consultorias que atendem ao setor financeiro; 2) trabalhar no “setor real” em outras áreas que não economia; 3) trabalhar no governo ou 4) seguir carreira acadêmica. As empresas do chamado “setor real” simplesmente não têm um “departamento de economia”, pois não é este o seu core business. Por isso, normalmente, essas empresas recorrem aos seus bancos ou, eventualmente, contratam uma consultoria financeira, para desenhar cenários sobre os quais trabalham. Assim, os economistas que vão para a iniciativa privada normalmente trabalham no setor financeiro, pois o core business desse setor é, justamente, desenhar cenários para investir melhor o dinheiro.

Na verdade, a reclamação de Lacerda e seus colegas não é bem essa. O que os incomoda é a preponderância de economistas que têm uma visão mais ortodoxa da economia, aquela que diz que é necessário ter responsabilidade fiscal e que o crescimento econômico não vem com políticas mágicas, mas construindo um ambiente que atraia investidores. Faltaria consultar economistas como ele, que acreditam que um mundo melhor é possível, onde basta vontade política para que os agentes econômicos se comportem de acordo com os seus próprios livros texto.

Existe mais um componente nesta birra: a preponderância do setor financeiro na economia brasileira como um todo. Sou um engenheiro que foi abduzido pelo setor financeiro, assim como muitos de meus colegas. Lacerda certamente lamenta que o talento dos engenheiros seja empregado em algo que “não produz riqueza”, enquanto poderia estar a serviço do “lado real da economia”. Sem aqui entrar no mérito dessa dicotomia burra e sem sentido, é fato que o setor financeiro tem uma participação desproporcional na economia. Um retrato disso é a composição da bolsa: nada menos do que 24% do Ibovespa é formado por papeis do setor financeiro, sendo o setor mais importante da bolsa local. No S&P500, por exemplo, o peso do setor financeiro é de apenas 10%, nível que mais ou menos se repete em outras bolsas de países desenvolvidos.

Para entender por que isso ocorre, nos será útil observar a notícia abaixo, em que o presidente da Argentina, Alberto Fernández, reclama com o seu colega russo sobre o FMI. Putin, com o poker face que Deus lhe deu, deve ter pensado consigo mesmo: “o que este cara quer, dinheiro emprestado?”

Esse lamento de Fernández é da mesma natureza da reclamação da dependência do setor financeiro no Brasil. Não quer depender do FMI ou do setor financeiro? Simples: pague a sua dívida. O setor financeiro é hipertrofiado no Brasil porque vivemos em um país que se endividou para financiar planos grandiosos de desenvolvimento e um estado de bem-estar social nórdico. Claro, não conseguimos nem uma coisa e nem outra, mas os credores não têm nada a ver com isso, eles querem o dinheiro de volta.

Alguns poderão dizer que países ricos também têm dívidas gigantescas, e nem por isso o setor financeiro é predominante. Aí entra o segundo ingrediente dessa receita indigesta: somos um país pouco sério no trato da nossa dívida. Sempre encontramos um jeitinho de tungar os credores. O último movimento foi a postergação do pagamento dos precatórios, mas está longe de ser o único. A nossa história é marcada por pequenas e grandes intervenções que minaram, ao longo do tempo, a nossa credibilidade. Sem mencionar a inflação, que é a tungada por definição.

A julgar pelo que vem acontecendo recentemente e pelos “planos” dos candidatos a presidente, podemos contar que os “economistas ligados ao setor financeiro” continuarão sendo ouvidos por ainda muito tempo. Para desgosto de Lacerda e seus companheiros do “setor real”.