Breves notas sobre as eleições

1) Os institutos de pesquisa são os grandes perdedores dessa eleição. As consideradas “padrão ouro” se provaram “padrão estrume”. Ainda vou fazer um levantamento mais sistemático dos erros, mas não precisa ser estatístico para isso, são visíveis a olho nu. A conclusão é de que talvez seja melhor mesmo contar motos em motociatas do que olhar os números das pesquisas.

2) Fernando Gabeira, na Globo News, com sua usual honestidade intelectual, reconheceu que o conservadorismo é uma força política a ser considerada na equação da democracia brasileira. Ele confessou que subestimou essa força em suas análises.

3) Bolsonaro chega ao 2o turno com moral muito mais elevado do que seu adversário. Isso, no entanto, não torna sua vida mais fácil. Faltaram apenas 1,7% dos votos para Lula ganhar no 1o turno. Ele ficou muito perto da vitória. Bolsonaro, para ganhar, precisa virar votos do próprio Lula, não basta conquistar os eleitores de Ciro e Tebet. Não é uma missão impossível, mas é bem difícil.

4) Janaína Paschoal teve 450 mil votos, menos de 1/4 do que obteve em 2018. Quando escrevi aqui que ela errou completamente o timing de sua candidatura ao senado, muitos se revoltaram, afirmando que iriam votar na deputada. Infelizmente, Janaína perdeu o tempo da política.

5) Tiririca teve apenas 70 mil votos, uma sombra do que já teve no passado. Foi eleito pelo quociente eleitoral. Ele, que já foi puxador de votos, dessa vez foi puxado.

As palavras têm sentido

Dois candidatos de partidos não tradicionais farão o 2o turno no Chile. À direita dos liberais de Piñera temos Jose Antonio Kast, à esquerda dos socialistas de Bachelet temos Gabriel Boric.

Apesar de os dois serem classificados como “radicais” logo no início da reportagem, por algum misterioso motivo o candidato à direita é classificado, na manchete, como “ultradireita”, enquanto o candidato à esquerda é classificado simplesmente como “esquerda”. Por algum misterioso motivo, não foi chamado de “extrema-esquerda”, muito menos de “ultraesquerda”.

Não sei o que significa exatamente “ultradireita”, mas desconfio que esteja ainda mais à direita do que “extrema-direita”. Qual seria a próxima gradação? Mega-blaster direita?

Para justificar a nomenclatura “esquerda” para o candidato da esquerda, em determinado momento a reportagem diz que Bachelet é de “centro-esquerda”. Piñera não seria, então, de “centro-direita” para justificar uma simples classificação de “direita” para o candidato da direita?

Enfim, sempre fico confuso com essas nomenclaturas do espectro ideológico-politico. Mas uma coisa me parece clara: as palavras têm sentido e não são escolhidas aleatoriamente.

Perdendo a hegemonia cultural

O colunista Pedro Doria traz as conclusões de estudos que demonstrariam que conteúdos “de direita” viralizam mais do que os “de esquerda”. E mais: que pessoas “de direita” receberiam somente conteúdo “de direita” em suas timelines, enquanto pessoas “de esquerda” estariam expostas a conteúdos mais “diversificados”. Uau!

Não tive acesso a esses estudos, mas vou comprá-los a valor de face. Digamos que seja assim mesmo, ou seja, os algoritmos criam bolhas “de direita”, “radicalizando” (essa é a expressão usada pelo colunista) uma parcela da população. Como se pessoas “de esquerda” o fossem porque pensam por si próprias, e pessoas “de direita” fossem lobotomizadas para pensar do jeito que pensam.

Durante muitos anos, os poucos pensadores de direita apontaram a bolha de esquerda que as universidades representavam. Quem cursou humanas ou quem dá aulas em cursos de humanas nas universidades sabe do que estou falando. Ali, diversidade de pensamento é que nem mula sem cabeça, uma figura do folclore. Há um pensamento dominante, e ai de quem mija contra o vento. Gerações e gerações de brasileiros foram e são formados nessas bolhas.

Apesar de ser pública e notória, essa dominância sempre foi tratada pela esquerda como uma espécie de paranoia da direita. A universidade seria plural, todas as ideias seriam bem-vindas, e qualquer acusação em contrário era devida à mania de ver comunistas debaixo da cama.

Bem, agora é a hora da vingança da “direita”: essa acusação de que os algoritmos são “de direita” não passa de paranoia. As redes sociais são um lugar plural, onde todas as ideias têm livre circulação. Qualquer acusação em contrário é devida à mania de ver nazistas debaixo da cama.

É duro perder a hegemonia cultural.

Ultradireita

“Extrema-direita” já não é suficiente para adjetivar um partido de direita. À direita da extrema-direita temos a “ultradireita”.

Na medida em que o espectro político vai caminhando mais para a direita, os jornalistas vão precisar de outros prefixos. Vão aqui algumas sugestões:

Megadireita
Hiperdireita
Gigadireita
Arquidireita
Ultramegablasterdireita

Não custa lembrar que o termo “extrema-esquerda” é usado somente para grupos terroristas. Partidos políticos que jogam o jogo político democrático são de “centro-esquerda” ou simplesmente “esquerda”. PSOL, PSTU, PCdoB, são todos partidos de “esquerda”, nunca “extrema-esquerda”. “Ultraesquerda”, então, nem pensar.

As ideias dominam o mundo. A linguagem molda as ideias.

A direita de volta ao jogo

Os EUA contam com dois partidos principais, que dominam a vida política do país quase desde sempre: Republicanos e Democratas.

A Inglaterra conta com dois partidos principais, que dominam a vida política do país: Conservadores e Trabalhistas.

Assim ocorre, em maior ou menor grau, em países com vida democrática normal. Há mais partidos na França, na Alemanha, na Itália e no Japão, mas o espectro ideológico todo acaba tendo representação, da esquerda para a direita.

Nos países com dois partidos dominantes, como EUA e Inglaterra, os mais moderados e os mais radicais de ambos os espectros convivem dentro do partido. Assim, temos Bernie Sanders e Hillary Clinton dentro do Partido Democrata, e temos (ou tínhamos) John McCain e Trump dentro do Partido Republicano. Isso se repete no legislativo também, com todo o espectro ideológico mais ou menos representado.

No Brasil isso era verdade também. Antes de 1964, tínhamos desde o PCB de Prestes até a UDN de Carlos Lacerda. Todo o espectro ideológico dos cidadãos estava representado na política.

O golpe civil-militar de 64, sabiamente, manteve dois partidos: a Arena e o MDB. Genericamente, na Arena abrigavam-se os políticos de direita, enquanto para o MDB iam os políticos da oposição, de esquerda. Em ambos os partidos havia os moderados e os radicais, como ocorre em qualquer partido ocidental. Obviamente, por muitos anos tratou-se de uma pantomima para inglês ver, pois o poder era exercido, de fato, de maneira ditatorial pelas Forças Armadas. Mas foi esse arranjo que, por fim, conseguiu forçar a volta do funcionamento normal das instituições democráticas.

Com o fim do período ditatorial, a direita encolheu e tornou-se marginal. Ninguém queria ser identificado com os algozes daquele período. Os dois partidos que dominaram a política brasileira desde então foram o PT e o PSDB. O PT sempre foi o que podemos considerar a esquerda radical, enquanto o PSDB representava a esquerda moderada. Com o “amaciamento” do PT, principalmente depois da eleição de Lula em 2002, o PSDB foi “empurrado”, contra a sua vontade, para a direita, mas nunca assumiu, de fato, este papel. Esconder a herança liberal de FHC, por exemplo, foi um sintoma dessa má vontade do partido.

Ocorre que a sociedade brasileira continuou a mesma: as pessoas continuaram se dividindo entre esquerda e direita, alguns mais radicais, outros mais moderados. Curiosamente, esta distribuição ideológica não esteve representada politicamente nos últimos 30 anos. A consequência disso foi a criação de uma jabuticaba: se você não é petista, você é anti-petista. A direita passou a existir somente como uma referência negativa ao petismo.

Bolsonaro, por sorte ou por tirocínio, tanto faz, ocupou este espaço vazio. Além de aproveitar-se da má vontade geral com os políticos, que vem desde as manifestações de 2013 e foram agravadas com o petrolão, Bolsonaro também faz um discurso indubitavelmente à direita. Não à toa, o PSDB ficou sem discurso nessa eleição: seus próceres prefeririam ser identificados como esquerda moderada, mas o PT tomou esses espaço. A alternativa seria apresentar-se como direita moderada, mas não se faz isso de improviso, é preciso construir esta identidade ao longo do tempo, com atos, mais do que com palavras.

Assim, os órfãos da direita migraram em massa para o ex-capitão. Em política, não existe isso de Centro. Os moderados gostam de se ver e de se autodenominar de “centro”. Gostariam de se aproveitar do melhor dos dois mundos e, supostamente, angariar maioria eleitoral. O que conseguem, no entanto, é apenas serem vistos pelo “outro lado” como pusilânime.

Tudo indica que o PSDB será o grande perdedor dessa eleição. Mas a perda eleitoral é apenas um sintoma. O PT mostrou que perdas eleitorais são provisórias. O que importa é manter uma identidade coerente ao longo do tempo, o sucesso eleitoral vem a reboque. A grande perda do PSDB, principalmente em sua cidadela de São Paulo, já ocorreu: foi perder o eleitor de direita. Os tucanos descobrem, horrorizados, que recebiam votos por pura falta de outra opção melhor para os eleitores de direita.

Bolsonaro é um surfista da onda direitista no Brasil, que vai quebrar a cara mais à frente. Não terá a mínima condição de governabilidade. No entanto, tem o grande mérito de ter devolvido a direita ao espectro político. Daqui para frente, uma nova geração de políticos perderá o receio de serem estigmatizados por representarem a direita, e surgirão pessoas de melhor qualidade neste campo.

PS.: aos que acharem a análise acima muito “simplista”, vou dizer que concordo. Há muitas nuances envolvidas, as classificações “esquerda” e “direita” estão longe de esgotar a realidade. No entanto, acho que são úteis para a discussão do que está acontecendo. Se não esgotam a realidade, pelo menos dão algumas pistas.