O radicalismo bipartidário

Só agora consegui um tempo para analisar uma questão que vem me incomodando há alguns dias: a deposição do presidente da Câmara dos EUA, o republicano Kevin McCarthy. E vem me incomodando porque a cobertura da imprensa, sem exceção, vem classificando o episódio como uma vitória dos “radicais trumpistas do partido republicano”.

Antes, um pouco de contexto. McCarthy teve o seu cargo colocado em cheque quando chegou a um acordo provisório com os democratas para evitar o shutdown do governo Biden. Este shutdown é a consequência do limite de endividamento do governo. Sim, nos EUA existe limite de endividamento, que deve ser elevado pela Câmara toda vez que é alcançado, sob pena de paralisia total do governo. Não deixa de ser sintomático que, para continuar funcionando, o governo americano precisa continuar se endividando, mas esse é um papo para outra ocasião.

A “moção de remoção” foi apresentada por um aliado de Trump na Flórida, o deputado Matt Gaetz, que, ironicamente, se aproveitou de uma mudança de regra regimental aprovada pelo próprio McCarthy no início do seu termo como presidente, e que permitiu a moção apresentada por apenas um deputado.

A questão que me incomoda na versão sendo contada pela imprensa é justamente os números da votação. O tal “radicalismo republicano” se limitou a meros 8 votos, de uma bancada de 221 deputados, ou 3,6% da base. Ok, alguém irá dizer, mas é o suficiente para desequilibrar o jogo em uma Câmara com divisão muito apertada, como foi o caso. Peraí, desequilibrar em favor de quem? Dos democratas? Quer dizer que os 3,6% de radicais republicanos irão punir seu próprio partido votando em pautas democratas? Claramente não faz sentido. Se há algo que os radicais fazem é radicalizar, e isso não orna com pautas democratas. Simplesmente não faz sentido.

Mas a falta de lógica não para por aí. E o que dizer dos “democratas moderados”? McCarthy costurou um acordo para salvar o governo Biden, e recebeu em troca 208 votos democratas pela sua saída. Ou seja, nenhum mísero deputado democrata conseguiu se desvencilhar de sua filiação partidária e apoiar a permanência de um republicano moderado na presidência da Casa. Preferiram ver o circo pegar fogo, e se arriscar a ter um presidente mais radical, que tornará a vida do governo Biden ainda mais dura. Pergunto: os radicais estão apenas do lado republicano? Pelo resultado da votação, o correto seria dizer que toda a bancada democrata é formada por radicais.

Vou dizer uma coisa óbvia: para haver polarização é necessário ter dois lados opostos. A imprensa adora chamar Trump e seus seguidores de radicais, ok. Mas os democratas não ficam atrás, como ficou demonstrado por essa votação. Se houvesse bom senso do lado democrata, seria mais fácil isolar Trump. Mas parece que a maioria democrata aposta que o caos trará maiores dividendos políticos. A disfuncionalidade da política americana é obra de muitas mãos.

O que Trump e Lula têm em comum?

Editorial do Estadão reflete a perplexidade liberal (no sentido americano do termo) diante do favoritismo de Donald Trump pela indicação de seu partido e como o mais competitivo dos candidatos diante de seu oponente democrata.

Em determinado trecho, o editorialista pergunta como pode um sujeito ameaçado de prisão em vários processos, ainda assim, receber a preferência da maioria de seus correligionários. Eu tenho uma hipótese, que deriva não da observação do cenário americano, mas de algo muito mais próximo: a candidatura Lula.

Lula viveu uma situação ainda pior que Trump. O atual presidente não estava ameaçado por processos, ele foi de fato processado, condenado e preso. Viveu seu exílio em Curitiba durante quase dois anos, até ter seus processos anulados por um problema de CEP dó juiz que o condenou em primeira instância. A confirmação da sentença por três desembargadores e a revisão do processo pelo STJ, do ponto de vista judicial, não valeram nada. No entanto, do ponto de vista político, deveriam significar a morte política de Lula. Não só não significaram, como Lula se reelegeu. Esse fato pode nos ajudar a entender porque Trump ainda é, apesar de tudo, o favorito dos republicanos.

Podemos dividir os eleitores de Lula em três categorias: 1) aqueles que acham que ele foi vítima de uma armação, 2) aqueles que sabem que ele cometeu crimes, mas seria um mal menor para o país e 3) aqueles que nem sabem direito o que aconteceu, mas gostam do Lula pai dos pobres. Assim, explica-se como alguém que “violou escandalosamente diversas leis no exercício da presidência”, no dizer do editorialista, consegue se eleger presidente da República. Os republicanos também se dividem nessas três categorias, sendo que, na última, podemos substituir “pai dos pobres” por “make America great again”.

Costuma-se, com razão, comparar Bolsonaro com Trump, com base na posição dentro do espectro político. Mas, do ponto de vista de sobrevivência política mesmo enfrentando processos e cadeia, é Lula o modelo para entender os eleitores de Trump.

Four hours at the Capitol

Desde o início de outubro, o TSE abriu todos os procedimentos do processo eleitoral para quem estivesse interessado em verificar a lisura das urnas eletrônicas. Até o momento, só se ouve o ruído bucólico dos grilos.

Ao que parece, não há realmente interesse em auditar. O que interessa é criar uma narrativa conspiracionista. Para tanto, os fatos são dispensáveis. Basta que exista uma verdade a priori, diante da qual toda a realidade se curva, como diante de um campo magnético.

A ausência de interesse pela auditoria das urnas eletrônicas vem bem a calhar para introduzir o tema deste post: o documentário Four Hours At The Capitol, disponível na HBO, e que narra a invasão do Congresso americano em 6 de janeiro último.

O documentário não tem um narrador. Trata-se de uma mescla entre as imagens feitas pelos próprios invasores e a narração dos principais personagens que aparecem nessas imagens. São entrevistados vários dos invasores, além de parlamentares, funcionários do Capitólio e policiais. É simplesmente chocante.

Uma das coisas que mais chamam a atenção é a devoção religiosa a Trump, que transparece em várias entrevistas. O documentário faz um cuidadoso retrospecto minuto a minuto daquele dia, de modo que ficamos sabendo que, apenas 19 minutos após o início do discurso de Trump, um pequeno grupo de manifestantes já se dirige ao Capitólio, pois entende ser essa a ordem do ainda então presidente. Ao longo das horas seguintes, outros grupos se juntam ao primeiro, formando a multidão ensandecida que proporcionou o espetáculo que todos viram. Dizer que Trump não teve nada a ver com isso é distorcer a realidade dos fatos.

(Aliás, só um parêntese. Em várias cenas, os policiais classificam os invasores de terroristas. É interessante como, quando há quebra-quebra em manifestações de esquerda, há sempre, com razão, a crítica a quem chama esses vândalos de “manifestantes”. Pois bem, parece ser igualmente inadequado chamar de “manifestantes” esses vândalos que invadiram o Capitólio. Fecha parêntese).

Mas o que realmente chamou-me a atenção no documentário foi o non sense da coisa toda. Não havia realmente um plano. Os primeiros que entraram ficaram perdidos. E agora, o que fazemos? O “plano” passou a ser invadir o plenário e “obrigar” os senadores a não reconhecer o resultado das eleições. Como se isso fosse um plano. Digamos que tivessem sucesso: o que aconteceria depois? Uma resolução do Congresso tirada debaixo da força física teria alguma força de lei? Esses mesmos senadores continuariam docilmente em seus lugares depois dessa pantomima? Um non sense completo.

O único curso de ação que faria algum sentido foi levantado por um senador, que aventou a hipótese de Trump, ainda presidente, aproveitar a ausência de todos os parlamentares (que estavam sendo evacuados) para decretar lei marcial e assumir poderes ditatoriais. Não sei quão factível seria isso, mas serve para chamar a atenção para um ponto importantíssimo: em qualquer regime político, seja ele revolucionário ou não, é preciso que uma elite política assuma o poder. A turba em si não resolve nada, torna-se um quebra-quebra sem sentido. O que esses invasores queriam era uma ditadura de Donald Trump.

Alguns dirão que não, que o desejo da turba era ter eleições limpas. E, por eleições limpas, entenda-se eleições em que Trump fosse eleito. Aqui voltamos à questão da urna eletrônica. No início do ano, escrevi um artigo refutando uma longa série de acusações de fraudes nas eleições americanas. Todas as acusações não tinham fundamento. Mas isso pouco importava para a tese central da teoria da conspiração: as eleições foram roubadas de Donald Trump de forma sistemática. Este sentimento de injustiça é um poderoso estopim para a revolta da população. E Trump (assim como Bolsonaro) sabe disso.

Um dos gritos de guerra dos manifestantes, enquanto se encaminhavam para o Capitólio, era que aquela era a Casa do Povo, a “nossa casa”. Eles simplesmente estariam retomando a casa deles, como se eles representassem todo o povo americano. A democracia é justamente o regime que permite que todo o povo esteja representado na Casa do Povo, e não apenas os representantes de si mesmos. Se esta representação está distorcida, se os representantes não são dignos, esse é outro problema. O que não existe é uma multidão invadir o Congresso e declarar que, agora, a Casa do Povo pertence ao povo. Não. Normalmente, quando isso acontece, a Casa do Povo acaba sendo dominada por um ditador, que se comunica diretamente com o povo sem a necessidade de intermediários.

A democracia é o pior regime, com exceção de todos outros, dizia Churchill. Que nossas instituições democráticas precisam ser aperfeiçoadas, parece não haver dúvidas. Que o caminho não é invadir o Congresso ou o STF na base da força, também. Mesmo porque, o resultado pós baderna costuma ser pífio, vide as manifestações de 2013. A história mostra que as revoluções que derrubaram regimes resultaram em regimes mais opressivos ainda. O povo sempre será massa de manobra das elites políticas. Na democracia, pelo menos, temos a oportunidade de fazer um rodízio de nossas elites políticas. Não é pouca coisa.

A maior ameaça à democracia

Luíz Sérgio Henriques, um dos organizadores da obra de Gramsci no Brasil, escreve o 54.897o artigo sobre a ameaça às democracias representada pela “ultradireita” (“extrema-direita”, pelo visto, já não é um termo suficiente). Dá como exemplo a reação de Trump, Netanyahu e Keiko Fujimori às suas respectivas derrotas eleitorais, colocando em dúvida a lisura do processo, o mesmo que já vem ocorrendo no Brasil.

Acho ridículo o “whataboutism”, que consiste em apontar os defeitos do contrário para tirar importância aos próprios. A frase que imortalizou o “whataboutism” no Brasil foi “e o petê?”, que serve como coringa para qualquer crítica ao governo Bolsonaro.

No entanto, correndo o risco de ser acusado de “whataboutism”, senti falta, no artigo, da menção a regimes que verdadeiramente suprimiram a democracia em seus países, como a Cuba de Miguel Diaz-Canel, a Venezuela de Nicolas Maduro e a Nicarágua de Daniel Ortega. O articulista prefere lembrar a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, exemplos de quase um século atrás, e convenientemente esquece o que está acontecendo aqui e agora. Trump e Netanyahu podem ter tumultuado o processo, mas entregaram o poder. Diaz-Canel, Maduro e Ortega foram um pouco além do tumulto.

Henriques termina o artigo convocando “uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo”, o que certamente inclui Lula e o PT. O mesmo Lula e o mesmo PT que apoiam abertamente regimes liberticidas como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua. O mesmo Lula que, outro dia, em entrevista a um jornal chinês, elogiou o sistema de partido único e forte do país. São estes que vão defender a democracia brasileira?

Cada um, de acordo com sua própria escala de valores, vai avaliar qual dessas duas forças é mais deletéria para o sistema democrático e votar de acordo com sua própria consciência. O que não dá é, como faz o articulista, apontar Bolsonaro como a única ameaça às instituições democráticas do país.

Curiosamente, Henriques termina o artigo dando uma pista sobre qual é o maior perigo à democracia, ao afirmar que a tarefa de afastar a ameaça é relativamente simples, pois Bolsonaro “não disfarça e nem oculta seus truques”. Sem querer, o articulista mostra que gente como Trump e Bolsonaro são menos perigosos, por serem caricatos, golpistas de manual. Muito mais perigosa é a ameaça insidiosa, que se aproxima sem que se perceba. Um estudioso de Gramsci certamente sabe do que se trata.

A maldade como acidente de percurso

Trump era malvado, como sabemos. Era muito ruim mesmo, um crápula.

Entre muitas de suas maldades, Trump enchia aviões com brasileiros ilegais e os deportava de volta para casa.

Biden é um anjo bom, como sabemos. Um sujeito virtuoso, muito bom mesmo.

Entre muitas de suas bondades, Biden tem a intenção de acabar com esses voos de deportados. Mas, sabe como é, são tantas bondades a serem feitas antes para neutralizar as maldades de Trump, que os brasileiros ficaram para o fim da fila. Assim, nosso compatriotas vieram algemados e com correntes nos pés durante todo o voo, além de serem maltratados na migração.

Trata-se claramente de uma herança maldita de Trump, para a qual Biden vai dar um jeito quando tiver um tempo. Da mesma forma que, por exemplo, Obama deu cabo da prisão de Guantánamo, herança maldita de outro malvado de carteirinha, George Bush. Ah não, putz, não deu tempo, eram também muitas bondades a serem feitas, essa ficou para depois.

Moral da história: quando se é muito bom, as maldades são só um acidente de percurso.

Redes Sociais e poder político

Peço perdão aos leitores, mas este artigo acabou ficando muito longo. Trata-se de um assunto (ou vários assuntos, na verdade) muito delicado e controverso, e que, penso, não dá para tratar com palavras de ordem e raciocínios prontos. Esse artigo, na verdade, foi escrito enquanto eu mesmo pensava sobre o assunto, procurando fazer um todo que fizesse sentido para mim mesmo. Meu objetivo é fazer pensar, mais do que defender pontos de vista. Você pode não concordar com as premissas ou com as conclusões. Mas espero que, pelo menos, tenha paciência em me acompanhar nessa jornada.

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Confesso que tenho “mixed feelings” com relação à decisão de bloqueio da conta pessoal do (ainda) presidente dos EUA, Donald Trump, pelas redes sociais Facebook e Twitter (a que depois se juntaram Apple, Google e Amazon, ao banir o Parler, uma rede social usada alternativamente por Trump).

“Mixed feelings” porque são muitas e diversificadas as dimensões e implicações dessa decisão. Envolve liberdade de expressão, proteção às instituições democráticas e poder dos gigantes de tecnologia. Até a ordem em que esses assuntos são abordados denuncia o viés de quem está fazendo a análise. Se eu começar a falar que a liberdade de expressão é importante, mas só até o ponto em que não coloca em risco as instituições, é óbvio que estou relativizando a liberdade de expressão. Por outro lado, se digo que é muito importante preservar as instituições, desde que a liberdade de expressão seja preservada, as instituições é que foram relativizadas.

Para tentar fugir dessa armadilha, vou procurar extrair uma regra geral observando o que acontece em qualquer lugar do mundo a qualquer tempo, sem juízo de valor (por enquanto).

Regimes políticos

Antes de começar, vamos procurar definir o que é um regime político. Regime político é o arranjo de instituições que permite o exercício do poder. Em qualquer sociedade civilizada, em que não prevalece a lei do mais forte de indivíduos sobre outros indivíduos, há um certo arranjo que permite tomar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. Isso vale para regimes totalitários, autoritários ou democráticos: a sociedade se organiza de tal forma a legitimar decisões que terão influência sobre a sociedade como um todo. É o que chamamos de “regras do jogo”.

Há dois tipos de oposição possíveis de serem feitas contra quem detém o poder: dentro das regras do jogo e fora das regras do jogo. Há regimes políticos em que a oposição dentro das regras do jogo é interditada. Portanto, somente resta a oposição fora das regras. Na verdade, há somente um regime que permite a oposição aberta dentro das regras do jogo: o regime democrático. Mas este ponto não nos interessa, por enquanto. Interessa-nos o caso de oposição fora das regras do jogo. Neste caso, todos os regimes, inclusive o democrático, se protegem. Sem exceção.

Qualquer tentativa de mudar o regime ou de desafiá-lo por fora das instituições é rechaçado por qualquer regime, de qualquer coloração a qualquer tempo. E o regime democrático não é exceção. É o que chamamos de “golpe de Estado”. Esta é a regra geral.

Claro que nada é preto no branco. Há um limite tênue, uma zona cinzenta, entre as regras do jogo e o uso que se faz dessas regras. O PT, por exemplo, insiste na tese do “golpe” por considerar que as regras foram usadas de maneira inadequada, no que seria um “golpe parlamentar”. Por outro lado, Maduro teria conquistado espaços de poder, a rigor, dentro das regras do regime: eleições e decisões judiciais. Nem o primeiro descumpriu qualquer preceito do Estado Democrático de Direito e nem o segundo é um exemplo de conformidade com as regras do jogo. No entanto, são exemplos de quão difícil é definir estes conceitos de maneira uniforme e que possam ser universalmente aceitos.

De qualquer modo, a regra geral continua valendo, mesmo que enfrentemos dificuldades em aplicá-la a casos particulares: qualquer regime usará de sua força para se auto proteger, mesmo o regime democrático. Esta é uma regra importante, pois justifica a limitação de direitos. Vamos ao caso da democracia, o regime campeão na defesa dos direitos humanos.

A limitação da liberdade de expressão no regime democrático

Não se pode usar dos direitos humanos garantidos pela democracia em atos fora das regras do jogo democrático. Em outras palavras: o regime democrático é regido por certas regras, e qualquer ato deve respeitar essas regras.

Um dos direitos humanos guardados pela democracia é a liberdade de expressão. A qualquer ser humano é lhe observado o direito de falar o que bem entender. Mas não se trata de um direito absoluto. Este direito está limitado por algumas regras. Não posso, por exemplo, caluniar ou difamar uma pessoa. Ou incitar um crime. O meu direito de expressar-me termina onde começa o direito de outra pessoa à sua imagem pública, ao seu patrimônio ou à sua própria vida.

Tendo estabelecido essas duas premissas – 1. As instituições do regime democrático irão reagir a qualquer tentativa de burlar as regras do jogo e 2. O direito à liberdade de expressão é limitada pelo direito do outro – vamos enfrentar o caso em tela. E, como dissemos acima, não é nada fácil.

O caso Donald Trump

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer se Trump ameaçou o regime democrático. Somente neste caso, como vimos, se justificaria a limitação à sua liberdade de expressão, por ameaçar as bases do regime pactuado pela sociedade americana.

Donald Trump colocou em dúvida a lisura das eleições. Mais do que isso: quando todas as instâncias às quais ele poderia recorrer negaram provimento às suas alegações, armou um comício em frente ao Capitólio, onde se daria um ato protocolar: o reconhecimento, por parte dos deputados e senadores, dos resultados das eleições nos diversos Estados. O objetivo de Trump era convencer os congressistas a não reconhecer os resultados, o que provocaria um impasse inédito no processo eleitoral americano. Vale lembrar que os resultados de alguns Estados já haviam sido objeto de contestação por parte de Trump, sem sucesso.

Apenas como registro histórico, desde que o procedimento atual foi adotado, em 1887, somente em duas ocasiões, em 1969 e 2005, os senadores e deputados, nessa seção conjunta, aceitaram discutir pedidos de revisão de votos. Eram casos muito específicos, e em nenhum dos dois casos os votos foram invalidados. Em 2001, Al Gore, então presidente do Senado (por ser o então vice-presidente) e candidato derrotado à presidência por uma mísera margem de votos na Flórida, descartou revisar esses votos nessa seção conjunta.

O que Donald Trump (nada menos que o presidente dos EUA, não convém esquecer) estava pedindo naquele comício em frente ao Capitólio, era que os deputados e senadores não reconhecessem o resultado das eleições em alguns Estados. Terá sido um ato antidemocrático, fora das regras do jogo? (Calma, já chegarei na invasão do Capitólio).

Entendo que o problema está mais no espírito do que na forma. Se existe essa sessão conjunta no Congresso, e se está previsto na Lei que essa sessão conjunta pode receber e acatar pedidos de revisão de votos, o pedido de Trump se deu conforme as regras do jogo. O problema, entendo, está no chamado “abuso de forma”.

É um pouco como se a noiva ou noivo, no altar, ao invés de dizer “sim”, dissesse “não”. Claro, formalmente falando, é possível dizer “não” ali. Mas aquele é um momento de celebração, todas as questões já foram (ou, pelo menos, deveriam ter sido) sanadas, de modo que a formalidade cerimonial é apenas isso, uma formalidade. Dizer “não” é um “abuso de forma”, ou seja, usa-se uma prerrogativa que formalmente até existe, mas não é para ser usada. É, em outras palavras, uma atitude que não faz parte do ritual do casamento, apesar de, formalmente, ser possível.

Donald Trump abusou da forma, em uma atitude que não faz parte do ritual democrático. Tanto é assim, que seu vice-presidente se recusou a participar da pantomima. Neste momento, entendo que o presidente Donald Trump não guardou a liturgia do cargo para o qual foi eleito, e atentou contra o regime democrático.

Note que não entrei na discussão sobre a invasão ao Capitólio. Este é o evento que, de fato, captou a atenção do público e deu origem a toda essa reação ao presidente. Mas, entendo que, mesmo que não houvesse ocorrido a invasão, o presidente abusou da forma, jogando fora das regras.

A invasão ao Capitólio, apesar de chocante, foi apenas a cereja do bolo de um processo. Foi útil, se é que podemos dizer assim, para materializar de alguma forma o que já era, per se, um ataque às instituições democráticas. Entrou pelos olhos, não restou dúvida do que se tratava. Resta ocioso discutir se Donald Trump incitou ou não a multidão naquele momento. A invasão foi apenas uma consequência natural de todo o processo, a metáfora que ilustra a tese.

No dia do evento, Donald Trump estava fazendo um comício em frente ao Capitólio. Se a invasão tivesse sido incitada apenas por este comício, não faria sentido que as redes sociais silenciassem o presidente. Se o fizeram, é porque entenderam que suas plataformas serviram para que ele jogasse fora das regras do jogo democrático mesmo antes do comício e, potencialmente, poderia continuar a fazê-lo depois. A questão que nos cabe agora analisar é justamente essa: sob qual justificativa as redes sociais podem silenciar uma pessoa?

As redes sociais no papel de agentes políticos

Em primeiro lugar, já vimos que a liberdade de expressão tem limites. No caso, o limite dado pela preservação do regime político. E, neste caso, tanto faz se o regime é de força ou democrático: não é permitido usar as prerrogativas dadas pelo regime para jogar fora das regras do regime.

Claro, sempre se pode tentar substituir o regime político. São muitos os exemplos que a história nos mostra. Mas há que ficar claro que nenhum regime, nem mesmo o democrático, permitirá o uso da liberdade de expressão para derrubá-lo. O regime democrático, pelo menos, tem a vantagem de proporcionar um espaço oficial para o contraditório, onde, aí sim, a liberdade de expressão é absoluta. Saindo desse cercadinho oficial, não há que se falar de liberdade de expressão.

Pois bem. Vimos que Donald Trump saiu do cercadinho democrático. Portanto, era necessário cercear a sua liberdade de expressão, para proteger o regime. O ponto complicado dessa história, no entanto, é o agente do cerceamento.

Normalmente, por estarmos nos referindo a um regime político, são os agentes políticos os responsáveis pelo cerceamento à liberdade de expressão. No caso, entretanto, um agente privado assumiu o papel de cerceamento e proteção do regime. Trata-se de um caso inédito, e que demanda uma análise mais detida.

A natureza das redes sociais

Em primeiro lugar, as redes sociais são um tipo de empresa que, apesar de lidar com informações públicas, não requerem autorização pública para funcionar. Empresas de TV e radiodifusão necessitam de uma concessão pública. Mas isto acontece por uma questão física: a limitação das ondas eletromagnéticas disponíveis para a transmissão, que precisa ser regulado pelo poder público para evitar interferências. Jornais e revistas, por exemplo, também lidam com informações públicas e, nem por isso, precisam de autorização governamental para funcionar. (Claro, estamos aqui falando do regime democrático).

Quando eu estava na faculdade, havia um jornalzinho editado pelo Centro Acadêmico. O jornalzinho era, na verdade, uma grande seção de cartas dos leitores. Todo o espaço era ocupado por artigos escritos pelos próprios alunos. Não eram matérias jornalísticas, eram pura opinião. Eu escrevia regularmente, mas nem sempre os meus artigos eram publicados. Como havia uma limitação de espaço (o jornal era impresso, não havia internet), os editores escolhiam o que seria publicado e o que seria jogado fora. Qual era o critério? Qualquer que fosse, era uma prerrogativa do Centro Acadêmico, cujos diretores eram eleitos pelo voto dos próprios alunos. Eles tinham legitimidade para escolher o que bem entendessem. Não estava satisfeito? Simples: criasse o seu próprio jornal.

TVs, rádios e jornais já têm outra lógica: não são cartas dos leitores que são publicadas, mas matérias escritas por jornalistas profissionais. No entanto, o critério editorial continua sendo dado por quem tem legitimidade para tal: o dono do veículo de comunicação. Não está satisfeito? Faça o seu próprio jornal ou TV!

As redes sociais são mais parecidas com o jornalzinho do Centro Acadêmico do que com os veículos tradicionais de imprensa. Com uma diferença fundamental: não há editor. Tudo o que você coloca é publicado em seu mural. Cada indivíduo passa a ter o seu próprio jornal. Aquela história de fazer o próprio jornal caso não estivesse satisfeito tornou-se realidade!

Mais ou menos.

Há um editor. Na verdade, há dois: um implícito e outro explícito.

O editor implícito é o algoritmo. Você até pode colocar o que quiser em sua timeline, mas nada garante que outros irão ver. Tudo depende do tal “algoritmo”. De que adianta você poder falar o que quiser em uma sala vazia? A comunicação somente ocorre quando há um receptor. Se o poderoso algoritmo decidir que ninguém vai ouvir o que você tem a dizer, nada feito.

Mas o que nos interessa mais de perto aqui é o editor explícito. As redes sociais contam com regras. As regras do Facebook, por exemplo, estão todas aqui. Não se comportou conforme essas regras, está fora da comunidade e impedido de usar a rede social para divulgar suas ideias. Na verdade, ocorre aqui o que ocorre em qualquer jogo com regras: existem as regras gerais e existe o árbitro que aplica as regras ao caso concreto. Tanto as regras quanto o árbitro são de responsabilidade do Facebook, aka, Mark Zuckerberg. Zucka, para os íntimos.

A rigor, Zucka nem precisaria elaborar regras. Ele tem o poder de tirar e colocar o que ele quiser, porque a rede é dele. A legitimidade, que no caso do jornalzinho do Centro Acadêmico era dada pela eleição dos membros da diretoria, no caso do FB é dado pela propriedade: Zucka, assim como os donos dos veículos de comunicação, é o dono, é ele quem define o padrão editorial. Ou, no caso, quem publica ou deixa de publicar.

Mas, se é assim, porque raios Zucka perdeu seu precioso tempo para elaborar regras, e emprega milhares de pessoas para servirem como juízes na aplicação dessas regras? Acredito que seja por uma questão de exercício de “soft power”. Os pais em casa têm o poder de determinar as regras. Nem por isso essas regras são aleatórias e aplicadas sem critério. Para o bem do relacionamento entre pais e filhos, ou entre a rede e seus usuários, é bom que haja critérios minimamente conhecidos e que façam algum sentido.

Tudo isso é mais ou menos aceitável quando se trata de indivíduos falando de cachorros, ou de doenças ou de religião. A coisa muda de patamar, no entanto, quando se trata da esfera política. Neste caso, estamos tratando do pacto social em torno do exercício do poder. A interferência na vida das pessoas é potencializada. Quando um indivíduo fala sobre política, está influenciando o potencial voto de outros, além de poder incitar comportamentos que atacam as bases mesmas do regime político. Mas o alcance desse indivíduo é limitado pelo tamanho de sua rede de relacionamentos e pelo algoritmo. No entanto, quando se trata de um agente político de uma certa importância, essa influência passa a ser mais decisiva.

O que dizer, então, da influência do presidente dos Estados Unidos da América? Se fosse apenas a influência institucional do cargo, já seria muito. Mas, no caso, trata-se de um líder popular, com influência sobre milhões de seguidores, não em razão de seu cargo, mas de seu carisma e de sua mensagem. Quando um líder desse porte usa as redes sociais para atacar as bases mesmas do regime político, o papel desse “mural neutro” passa a ser questionado.

Antes de avançar, vamos parar um pouco para observar mais detidamente este fenômeno. Antes do advento das redes sociais, o que tínhamos? TVs, jornais, revistas e outros meios de comunicação dominados pelos seus respectivos editores. No nível pessoal, a liberdade de expressão era exercida em círculos muito limitados: a sua opinião era conhecida por algumas poucas pessoas, às quais você tinha acesso pessoalmente. Se você quisesse alargar este círculo, precisaria cavar uma vaga em algum meio de comunicação ou escrever um livro. Nestes dois casos, ficaria submetido ao critério do editor e, mais importante, ao alcance de cada um desses meios.

Com o advento da popularização da internet, abriu-se um mundo de possibilidades. Blogs se popularizaram, cada um podendo se tornar o seu próprio editor. Mas nada é tão simples, não é mesmo? Quem já tentou escrever seu próprio blog conhece as dificuldades técnicas e o esforço para ser descoberto na rede. Não é nada fácil.

As redes sociais vieram para facilitar esse trabalho. Basta criar uma conta e sair publicando! Simples, rápido e funcional. O problema de ser descoberto é endereçado pela interação com outros membros da rede: se seu conteúdo tem valor, será elogiado (curtido) e compartilhado, através de ferramentas disponibilizadas pela própria rede. Está criado o ecossistema que permite que qualquer um aumente o alcance de suas ideias. É o nirvana da liberdade de expressão.

Claro que a criação desse “nirvana” supõe o investimento de milhões de dólares, além de envolver alguns dos mais brilhantes cérebros do Vale do Silício. Ou seja, não é de graça. E, como sabemos que não há almoço de graça, esse nirvana vem com um preço. O preço mais óbvio é a utilização dos dados dos usuários para fins de publicidade. Mas isso não é o objeto deste artigo. Um preço menos óbvio apareceu agora: o poder do Zucka de decidir quem pode e quem não pode publicar em sua rede.

Fiz esta pequena digressão para chamar a atenção para o fato de que, se temos redes sociais e podemos usufruir de seus benefícios, é porque muito dinheiro e inteligência foi investido nisso. Nada mais natural que se cobre o preço por esse trabalho, e Zucka tem todo o direito de fazê-lo. Ponto.

A questão ganha uma complexidade inédita porque imbrica o direito do Zucka de editar a sua própria rede e a questão do regime político, fruto de um pacto social. Como disse a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, “a liberdade de expressão é um direito fundamental de vital importância, que até pode ser restringido, mas somente de acordo com leis e dentro de um quadro definido pelo legislador” (grifo meu). Ou seja, Merkel considera que a liberdade de expressão pode sim ser limitada, mas é o próprio regime que deve definir isso, e não uma empresa privada.

O interessante é que este tipo de colocação não se aplica a outros meios de comunicação. Digamos que Frau Merkel quisesse publicar um artigo em um jornal alemão mas, por algum motivo, este jornal recusasse a publicá-lo. Não imagino Merkel afirmando que o jornal deveria obedecer um lei que definisse o que pode ou não pode ser publicado no jornal. Isto seria censura, nem mais nem menos.

Ora, se a ação estatal sobre a propriedade privada da comunicação é normalmente considerada censura, porque Merkel, uma democrata de quatro costados, defende que uma lei deve reger o que Zucka pode ou não pode deixar publicar em sua rede? Onde está a diferença?

O poder das redes sociais

Anteriormente, eu havia dito que o jornal difere de uma rede social por ter seu conteúdo produzido por jornalistas profissionais. Isso é assim, mas um jornal é mais do que isso. Existem as colunas de jornalistas ou personalidades. Neste caso, o jornal funciona como o Facebook: quando um jornal publica um artigo de um colunista, este artigo costuma ser de responsabilidade deste colunista, “não refletindo a opinião deste jornal”, como normalmente está escrito ao final do artigo. Se não estiver satisfeito, o editor do jornal pode dispensar o colunista, mas não pode influenciar o conteúdo do que é produzido. Há pouco tivemos o caso envolvendo Monica De Bolle. A economista foi dispensada do papel de colunista do Estadão, por algum motivo particular ao editor do jornal e que não foi divulgado. Não há um conjunto de regras públicas sobre o que pode e o que não pode publicar, como no caso do Facebook. Trata-se de uma decisão discricionária do jornal. A ninguém ocorre dizer que houve cerceamento da liberdade de expressão da economista, que pode continuar falando por outros meios.

No caso das redes sociais, isso não é verdade. Mesmo para a mais poderosa personalidade do planeta, o presidente dos EUA, não há alternativas à altura para que continue falando para os seus seguidores. Neste caso, houve uma efetiva limitação da sua liberdade de expressão.

A rigor, não existe diferença conceitual entre um jornal dispensar uma colunista e uma rede social bloquear uma determinada pessoa. Eu, pelo menos, não consigo identificar. O que existe é uma diferença de tamanho e potência. O maior jornal do mundo, o Yomiuri Shimbum, tem 9,1 milhões de exemplares circulando diariamente. Nos EUA, o maior jornal é o USA Today, com circulação diária de 4,1 milhões de exemplares. Bem, o Facebook tem nada menos que 2 BILHÕES de usuários. No Brasil, são 130 milhões, contra uma audiência média do Jornal Nacional, o mais popular do país, de aproximadamente 25 milhões de telespectadores (considerando audiência de 35 pontos e 700 mil pessoas por ponto).

O poder muda o conceito? Zucka agora está pagando o preço por ter criado algo tão grande e poderoso? Em que circunstâncias deve haver uma regulamentação estatal para a liberdade de o empreendedor decidir o que é mais conveniente para o seu negócio? Estas perguntas, para mim, ainda estão em aberto. O fato é que, quando estamos lidando com os fundamentos mesmo do regime político vigente, o encontro de um imenso poder de comunicação com o maior poder humano, que é o poder político, traz consequências imprevisíveis. Ainda muito se escreverá a respeito.

À guisa de conclusão

Resumindo o que vimos até aqui:

  1. Qualquer regime político lutará para manter as suas bases intactas, mesmo o regime democrático.
  2. Donald Trump desafiou as bases da democracia americana e, por extensão, do modelo de democracia liberal representativa, que é o regime político vigente nas principais potências mundiais.
  3. A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Antes, é limitado pelo direito dos outros de não terem suas vidas ameaçadas. É limitado também pelas regras do regime político vigente.
  4. Redes sociais são propriedade privada, e podem editar o que quiserem. No entanto, seu imenso poder de comunicação, inigualável na história, pode trazer consequências imprevisíveis para os regimes políticos, arena, por natureza, pública.

Enfim, desculpem-me novamente pela extensão do artigo e pela falta de uma conclusão “preto no branco”. Como disse, meu objetivo era mais ajudar a pensar do que defender um determinado ponto de vista. Espero tê-lo alcançado.

Ideias perigosas

Estes são tuítes do nosso chanceler, Ernesto Araújo, o rosto de nossa diplomacia. Escolhi esses três, mas poderia ter escolhido quaisquer outros para ilustrar meu ponto.

Vamos ao primeiro. Ninguém diz que é um “atentado à democracia” quando há críticas ao legislativo e judiciário. Críticas todos fazemos a tudo o tempo inteiro. Isso é uma coisa. Outra coisa bem diferente é pedir o fechamento do Congresso e do STF ou, como no caso em foco, invadir o Congresso para fazer justiça com as próprias mãos. Assim como seria retirar o presidente do seu posto à força. É óbvio que o chanceler usa o direito de criticar, que é universal, para justificar atos que nada tem a ver com críticas.

O segundo tuíte é mais ardiloso. Começa com uma condenação dos atos, ok. A seguir, no entanto, vem o “mas”. Qualquer um com algum treino de interpretação de texto sabe que essa conjunção adversativa guarda para o final a verdadeira convicção do orador, a prioridade número 1 em sua ordem de prioridades, a cláusula inegociável. Tente mudar a ordem e veja o efeito. “Sou contra o aborto, mas…”, por exemplo, trás depois do “mas” as exceções à regra geral ou a verdadeira convicção do autor da frase. No caso, o chanceler justifica a invasão como reação ao “desrespeito ao povo”.

Já o terceiro é o mais perigoso de todos. Opõe o “povo” às instituições democráticas. Quem é o “povo”? Quem fala em nome do “povo”? Em uma democracia representativa liberal, o “povo” fala através das instituições democráticas, executivo, legislativo e judiciário, com seus pesos e contrapesos. Ernesto Araújo quer nos fazer crer que essas instituições passaram por cima da vontade do “povo”. E quem fala pelo “povo” se não forem essas instituições? Só pode ser o líder ungido. No caso, Trump. Ernesto Araújo, o chanceler brasileiro, está sugerindo que o líder popular é a encarnação da vontade do “povo”, justificando, assim, que as instituições da democracia representativa sejam ultrapassadas. Trump com o “povo”, sem mais nada. Bem, não vou aqui listar todas as experiências pelas quais a humanidade passou com esse tipo de arranjo político.

Na época do PT, passei muita vergonha com o nosso chanceler Celso Amorim, e seu alinhamento automático a figuras como Fidel, Chávez e Maduro. Mesmo as coisas mais abjetas eram recebidas com um “mas”, justificando, na prática, o alinhamento. Bem, o mesmo nível de vergonha sinto agora do nosso chanceler Ernesto Araújo.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump

O que estamos vendo acontecer no Congresso norte-americano é inaceitável. Donald Trump passou de qualquer limite do razoável em seu direito de contestar os resultados eleitorais. Trump perdeu em todas as instâncias políticas e jurídicas possíveis e imagináveis sobre suas alegações de fraude eleitoral. As instituições americanas falaram. Trump e seus seguidores mais fanáticos fizeram questão de não ouvir. Isso é mais do que uma vergonha. Isso é um desafio à mais antiga e estável democracia do planeta.

A democracia americana passou, nos últimos 230 anos, por 44 transmissões de poder, das quais 24 entre presidentes de partidos diferentes. Todas elas de maneira pacífica, servindo de farol para o mundo livre. Esta seria a 45a transmissão de poder, e a 25a entre presidentes de partidos diferentes. Trump quebrou essa tradição, em nome de sabe-se lá o que.

Donald Trump dirá que não tem nada a ver com a invasão do Capitólio. Claro, ele não deu a ordem direta. Mas fez comício colocando gasolina na fogueira. Esperava o quê?

Alguns dirão que, se não for assim, não se mudará o tal “sistema”. Cada um tem uma ideia de um “mundo melhor”. Sabemos como terminam as experiências de imposição de um “mundo melhor” por meio da força.

Os EUA são a prova histórica e palpável de que a democracia representativa, com todos os seus defeitos evidentes, é o melhor sistema para conciliar visões diferentes do que vem a ser o tal “mundo melhor”. Ou, como dizia Churchill, o pior sistema, com exceção de todos os outros.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump.

Aceitando a derrota

Os apoiadores de Donald Trump têm lembrado a injunção que Al Gore fez na Suprema Corte para a recontagem dos votos na Flórida, responsável pela apertadíssima margem da vitória de George Bush no ano 2000. Trump estaria apenas exercendo o seu direito de espernear, como Gore fez em 2000 e Aécio fez em 2014, quando também pediu auditoria dos votos.

Não concordo.

Trump está fazendo algo completamente diferente. O presidente dos EUA está colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral inteiro, ao usar a palavra “fraude”. Gore e Aécio pediram recontagem e auditoria em pleitos muito apertados. A diferença na Flórida foi de apenas 537 votos! Trump vem dizendo que o próprio processo eleitoral estaria viciado criminosamente pelo partido adversário. E vem dizendo isso mesmo antes do pleito começar.

Ir em busca de direitos é prerrogativa de qualquer cidadão que se sinta prejudicado. Isso é uma coisa. Outra coisa é envenenar o ambiente democrático, colocando em dúvida a lisura do próprio processo.

Al Gore aceitou a determinação da Suprema Corte pela não recontagem dos votos. Não saiu da disputa dizendo que havia sido vítima de uma fraude. Vamos ver se Trump acusará a Suprema Corte de conivência com uma fraude eleitoral.