Four hours at the Capitol

Desde o início de outubro, o TSE abriu todos os procedimentos do processo eleitoral para quem estivesse interessado em verificar a lisura das urnas eletrônicas. Até o momento, só se ouve o ruído bucólico dos grilos.

Ao que parece, não há realmente interesse em auditar. O que interessa é criar uma narrativa conspiracionista. Para tanto, os fatos são dispensáveis. Basta que exista uma verdade a priori, diante da qual toda a realidade se curva, como diante de um campo magnético.

A ausência de interesse pela auditoria das urnas eletrônicas vem bem a calhar para introduzir o tema deste post: o documentário Four Hours At The Capitol, disponível na HBO, e que narra a invasão do Congresso americano em 6 de janeiro último.

O documentário não tem um narrador. Trata-se de uma mescla entre as imagens feitas pelos próprios invasores e a narração dos principais personagens que aparecem nessas imagens. São entrevistados vários dos invasores, além de parlamentares, funcionários do Capitólio e policiais. É simplesmente chocante.

Uma das coisas que mais chamam a atenção é a devoção religiosa a Trump, que transparece em várias entrevistas. O documentário faz um cuidadoso retrospecto minuto a minuto daquele dia, de modo que ficamos sabendo que, apenas 19 minutos após o início do discurso de Trump, um pequeno grupo de manifestantes já se dirige ao Capitólio, pois entende ser essa a ordem do ainda então presidente. Ao longo das horas seguintes, outros grupos se juntam ao primeiro, formando a multidão ensandecida que proporcionou o espetáculo que todos viram. Dizer que Trump não teve nada a ver com isso é distorcer a realidade dos fatos.

(Aliás, só um parêntese. Em várias cenas, os policiais classificam os invasores de terroristas. É interessante como, quando há quebra-quebra em manifestações de esquerda, há sempre, com razão, a crítica a quem chama esses vândalos de “manifestantes”. Pois bem, parece ser igualmente inadequado chamar de “manifestantes” esses vândalos que invadiram o Capitólio. Fecha parêntese).

Mas o que realmente chamou-me a atenção no documentário foi o non sense da coisa toda. Não havia realmente um plano. Os primeiros que entraram ficaram perdidos. E agora, o que fazemos? O “plano” passou a ser invadir o plenário e “obrigar” os senadores a não reconhecer o resultado das eleições. Como se isso fosse um plano. Digamos que tivessem sucesso: o que aconteceria depois? Uma resolução do Congresso tirada debaixo da força física teria alguma força de lei? Esses mesmos senadores continuariam docilmente em seus lugares depois dessa pantomima? Um non sense completo.

O único curso de ação que faria algum sentido foi levantado por um senador, que aventou a hipótese de Trump, ainda presidente, aproveitar a ausência de todos os parlamentares (que estavam sendo evacuados) para decretar lei marcial e assumir poderes ditatoriais. Não sei quão factível seria isso, mas serve para chamar a atenção para um ponto importantíssimo: em qualquer regime político, seja ele revolucionário ou não, é preciso que uma elite política assuma o poder. A turba em si não resolve nada, torna-se um quebra-quebra sem sentido. O que esses invasores queriam era uma ditadura de Donald Trump.

Alguns dirão que não, que o desejo da turba era ter eleições limpas. E, por eleições limpas, entenda-se eleições em que Trump fosse eleito. Aqui voltamos à questão da urna eletrônica. No início do ano, escrevi um artigo refutando uma longa série de acusações de fraudes nas eleições americanas. Todas as acusações não tinham fundamento. Mas isso pouco importava para a tese central da teoria da conspiração: as eleições foram roubadas de Donald Trump de forma sistemática. Este sentimento de injustiça é um poderoso estopim para a revolta da população. E Trump (assim como Bolsonaro) sabe disso.

Um dos gritos de guerra dos manifestantes, enquanto se encaminhavam para o Capitólio, era que aquela era a Casa do Povo, a “nossa casa”. Eles simplesmente estariam retomando a casa deles, como se eles representassem todo o povo americano. A democracia é justamente o regime que permite que todo o povo esteja representado na Casa do Povo, e não apenas os representantes de si mesmos. Se esta representação está distorcida, se os representantes não são dignos, esse é outro problema. O que não existe é uma multidão invadir o Congresso e declarar que, agora, a Casa do Povo pertence ao povo. Não. Normalmente, quando isso acontece, a Casa do Povo acaba sendo dominada por um ditador, que se comunica diretamente com o povo sem a necessidade de intermediários.

A democracia é o pior regime, com exceção de todos outros, dizia Churchill. Que nossas instituições democráticas precisam ser aperfeiçoadas, parece não haver dúvidas. Que o caminho não é invadir o Congresso ou o STF na base da força, também. Mesmo porque, o resultado pós baderna costuma ser pífio, vide as manifestações de 2013. A história mostra que as revoluções que derrubaram regimes resultaram em regimes mais opressivos ainda. O povo sempre será massa de manobra das elites políticas. Na democracia, pelo menos, temos a oportunidade de fazer um rodízio de nossas elites políticas. Não é pouca coisa.

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