A relação do voto em Bolsonaro com as mortes por Covid

O professor Rodrigo Zeidan publicou um curto artigo na Folha, citando uma série de artigos acadêmicos que embasariam o desastre do governo Bolsonaro na administração da pandemia no país.

À parte o tom virulento do artigo, que o torna mais um panfleto partidário do que uma análise fria da situação, as citações do professor Zeidan são de difícil localização. Quer dizer, deve ser minha falta de jeito para procurar artigos acadêmicos. Dos artigos citados, só consegui achar um até o momento, More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic, de Ajzenman, Cavalcanti, Da Mata, analisando o efeito do discurso do presidente Bolsonaro em 15/03/2020 sobre o distanciamento social, achando um menor distanciamento após o discurso nos municípios onde Bolsonaro havia recebido mais votos.

Eu já conhecia este paper, e o seu problema, como todos os outros citados pelo autor do artigo, é ligar este fato (falta de distanciamento ou discursos do presidente) com o real aumento dos óbitos. Há, mais entre os bolsonaristas do que em outros grupos da população, dúvidas sobre a real eficácia do distanciamento social, do uso de máscaras e de vacinas como medidas para o combate à transmissão do vírus da Covid-19. Ligar o Bolsonarismo à não adoção de distanciamento social, ou da máscara ou de vacinas, portanto, é chover no molhado. O que realmente importa, no final do dia, é se morreram mais pessoas por conta deste fato. Ainda não vi nenhum artigo que fizesse essa ligação direta. Estamos em julho de 2022, já nos estertores da pandemia, e temos dados mais do que suficientes para fazer este tipo de estudo. Resolvi então, eu mesmo, armado de uma poderosa planilha Excel, tentar concluir algo com os dados até o momento.

A pergunta que este despretensioso artigo tem o objetivo de responder é a seguinte: teriam os bolsonaristas chegado a óbito em maior número do que a média da população durante a pandemia? Notem que não vamos entrar no mérito sobre medidas de prevenção, vacinas, discursos do presidente. Nada disso. A coisa é a mais simples possível: analisando o perfil dos óbitos, é possível tirar alguma conclusão?

Metodologia

Para identificar os bolsonaristas, usarei a mesma metodologia do paper citado acima: verificarei, município por município, a votação de Bolsonaro. Temos dados de óbitos por município, temos as suas populações e temos a votação. Basta procurar identificar se há alguma correlação positiva entre essas votações e o número de óbitos por Covid-19 nesses municípios.

Vamos a um exemplo numérico teórico para entender o conceito. Digamos que tenhamos 3 municípios com os seguintes números de óbitos acumulados até o momento (por milhão de habitantes):

  • Município A: 2.000
  • Município B: 2.375
  • Município C: 3.625

Agora, vamos verificar a votação dos 4 principais candidatos nestes 3 municípios:

Para compatibilizar esta tabela de votação com os óbitos dos municípios, precisamos estimar coeficientes que expliquem os óbitos (nossa variável dependente) com as votações recebidas pelos candidatos (nossas variáveis independentes). Podemos representar essa estimação pela equação a seguir:

Óbitos = a(votos Ciro) + b(votos Alckmin) + c(votos Haddad) + d(votos Bolsonaro)

As nossas incógnitas são os coeficientes a, b, c e d, que serão estimadas por uma regressão linear (mínimos quadrados) no Excel. Em nosso exemplo, para que a conta feche, os valores dos coeficientes devem ser os seguintes: a=30, b=15, c=5 e d=50. Veja:

  • Município A: 30 x 20 + 15 x 10 + 5 x 50 + 50 x 20 = 2.000 óbitos
  • Município B: 30 x 15 + 15 x 15 + 5 x 40 + 50 x 30 = 2.375 óbitos
  • Município C: 30 x 15 + 15 x 5 + 5 x 20 + 50 x 60 = 3.625 óbitos

Note que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro representou 50 óbitos/milhão, enquanto cada ponto percentual de voto em Haddad representou apenas 5 óbitos/milhão. Este é apenas um exemplo teórico, montado para a conta dar exata. Mas veremos que seus resultados não são somente teóricos.

Base de Dados

Para fazer esse exercício, vamos usar a base de dados da Covid-19 do Ministério da Saúde e, para a votação nos municípios, vamos usar a base de dados do TSE. Além disso, como vamos controlar pelo PIB/Capita dos municípios, vamos usar também a base de dados do IBGE.

Resultados

A primeira regressão, usando o total de óbitos de cada município e a votação dos 4 principais candidatos no 1º turno, resultou nos seguintes coeficientes (aproximados):

  • Ciro: 30
  • Alckmin: 16
  • Haddad: 7
  • Bolsonaro: 48

Rodei a regressão forçando o intercepto a zero, para repetir, da maneira mais fidedigna possível, o exemplo dado acima.

Para os econometristas de plantão, estes resultados têm p-value próximo de zero. Ou seja, são robustos, dentro dos limites do método utilizado. No final, vou sugerir alguns ajustes que não faço aqui por falta de instrumentos.

O resultado é muito próximo quando se controla pelo PIB/capita dos municípios. Tomei esse cuidado porque houve claramente uma clivagem de renda nas eleições de 2018, e talvez a regressão pudesse estar contaminada por esta clivagem.

Podemos observar que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro resultou em 48 óbitos durante a pandemia, contra apenas 7 no caso de votos em Haddad. Ou, cada ponto percentual de votos em Bolsonaro significou 7 vezes mais óbitos, em cada município, do que cada ponto percentual de voto em Haddad.

Vamos à interpretação correta desse resultado: na média, considerando todos os municípios do Brasil, aqueles que tiveram mais óbitos foram aqueles com maior votação em Bolsonaro. O número em si NÃO SIGNIFICA que as pessoas morreram PORQUE votaram em Bolsonaro. Não há aqui nenhuma relação de causalidade, há apenas uma correlação. Vamos, mais à frente, gastar um tempo investigando possíveis interpretações para este resultado. Antes disso, vamos explorar algumas variações desse resultado.

Uma outra forma de vermos o mesmo resultado é rodarmos duas regressões separadas, uma com a votação de Bolsonaro e outra com a de Haddad, obteremos os seguintes resultados:

Agora não forçamos o intercepto a zero. Os números acima representam o seguinte: no caso da votação de Bolsonaro, o número-base de óbitos, na média, começa em 1.038/milhão, e cada ponto de voto em Bolsonaro significa 38 óbitos/milhão adicionais. Já no caso de Haddad, o número de óbitos começa em 3.907/milhão, e diminui em 34 óbitos/milhão a cada ponto percentual de voto em Haddad.

É interessante fazer recortes temporais e geográficos neste número.

Para um recorte temporal, segmentei esse coeficiente de Bolsonaro em semestres, conforme a tabela a seguir:

Podemos observar que a influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos começa a ganhar força a partir de 2021. Para entender melhor, vamos comparar com a segmentação temporal do número de óbitos na pandemia.

Na última coluna da tabela, podemos observar que, em 2020, ocorreu 29% do total de óbitos até o momento na pandemia. No entanto, apenas 13% dos óbitos relacionados com o voto em Bolsonaro ocorreu em 2020. Algo começa a ocorrer a partir de 2021 para acelerar esse processo. E esse algo, na minha opinião, é a vacina. Mas vamos deixar as conclusões para a sessão de conclusões.

Do ponto de vista geográfico, também é interessante observar que os números de Bolsonaro diferem de estado para estado. É o que podemos ver na tabela abaixo, em que apresentamos o coeficiente de Bolsonaro DENTRO de cada estado:

Observe que em estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o coeficiente do Bolsonaro é muito menor que o da média nacional, indicando que, nesses estados, não houve tanta influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos. Por outro lado, em estados como Goiás, Minas Gerais, Ceará e Bahia, o coeficiente é bem maior, indicando uma influência maior do voto no número de óbitos. Difícil explicar por que isso acontece. Tentei fazer alguma correlação com a votação de Bolsonaro em cada estado (terceira coluna) ou o desvio-padrão da votação entre os municípios do estado (quarta coluna), mas não há como se concluir nada.

Conclusões

Todos os estudos citados pelo professor Rodrigo Zeidan no início deste post procuram, de alguma maneira, ligar o presidente Bolsonaro a comportamentos supostamente deletérios para o controle da pandemia. Na minha opinião, trata-se de uma abordagem fraca, por dois motivos:

  1. Apesar de praticamente haver unanimidade científica em relação à efetividade de certos comportamentos (distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo) para evitar a piora das condições epidemiológicas, esta não é uma unanimidade social. Há, principalmente entre os bolsonaristas, mas não somente entre eles, sérias dúvidas sobre este tipo de conduta. Relacionar a falta dessas condutas ao aumento de óbitos é um passo não aceito por todos.
  2. Ligar as falas e atitudes do presidente ao comportamento de seus eleitores é algo que necessita de um aparato econométrico de difícil obtenção. O paper citado no início tem o seu mérito nesse sentido, mas ainda se trata de um pre-print sem revisão de pares, mesmo dois anos depois de sua primeira publicação, o que demonstra a dificuldade.

Por tudo isso, acho muito mais simples simplesmente ligar o número de óbitos diretamente à votação de Bolsonaro (e dos outros candidatos) nas eleições. Essa metodologia ultrapassa as duas dificuldades colocadas acima:

  1. Estamos analisando diretamente o número de óbitos por Covid-19, independentemente do que levou à sua ocorrência, se foi falta de distanciamento, máscara, vacina, ou nenhuma dessas hipóteses. A morte é o resultado menos desejado por todos, bolsonaristas ou não, de modo que se trata de algo inconteste. E, com relação ao sempre citado problema da sub ou supernotificação (a depender de que lado se está), isto é irrelevante para este estudo, dado que estamos comparando Brasil com Brasil. A não ser que suponhamos que cidades mais bolsonaristas superestimaram o número de óbitos, o que não orna com a narrativa geral do próprio presidente e seus seguidores.
  2. Não precisamos estabelecer relação causal entre as falas e atitudes do presidente com certos comportamentos de seus seguidores. Não importa o comportamento, o fato objetivo é que morreram mais pessoas em municípios que votaram mais em Bolsonaro.

É neste ponto que vem a parte mais importante deste post. Preste atenção.

Até o momento, o que fizemos foi um exercício de econometria básica. Não há, de maneira alguma, com base nesse exercício, como estabelecer relação de causalidade entre as falas e atitudes do presidente com o comportamento de seus eleitores. A única relação que se estabeleceu foi entre o voto em si e os óbitos posteriores. Pode ser que os eleitores de Bolsonaro sigam cegamente o que ele fala, mas há outra hipótese.

Em econometria, chamamos de variável oculta uma que não conseguimos medir, mas que influencia os resultados das variáveis que estamos medindo. Assim, encontramos uma relação entre as variáveis que estamos medindo, mas uma não causa necessariamente a outra. Há uma variável oculta que influencia o comportamento das duas. A hipótese aqui é que o eleitor de Bolsonaro escolheu Bolsonaro pelo mesmo motivo que escolheu adotar outros comportamentos que, no final, levaram ao óbito mais pessoas durante a pandemia. Existe um mindset por trás dessas escolhas, uma mistura, talvez (e aqui, assumo, já estou extrapolando as linhas desse pequeno estudo) de teorias da conspiração, desconfiança da mídia tradicional e da ordem institucional que tão bem caracterizam Bolsonaro e seu entorno. O ponto é que não precisava Bolsonaro ter falado em máscaras, distanciamento social ou vacinas. Estes foram temas recorrentes para este tipo de mindset, e Bolsonaro, digamos, foi apenas um catalisador dessa corrente. Serviu como um reforço pelo cargo que ocupa, mas longe de ser a origem do problema.

Enquanto se tratava de máscaras e distanciamento, a coisa estava mais para folclore do que algo realmente decisivo para os rumos da pandemia. O jogo começou a virar com a vacina. Aqui temos o erro fundamental de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Como vimos na tabela 3 acima, os coeficientes que relacionam a votação de Bolsonaro aos óbitos são negligíveis em 2020. Ou seja, aparentemente não houve, neste primeiro ano, realmente nenhuma influência de seu discurso sobre o que interessa, o número de óbitos. A partir de 2021, no entanto, a coisa muda de figura. E a grande virada chama-se VACINA.

Aqui não se trata somente do discurso do presidente, aquela história de “liberdade” e “não vamos obrigar ninguém a tomar uma vacina experimental”. É que esse discurso encontrou uma forma peculiar de ver o mundo por parte dos seus eleitores mais fieis. É possível que, entre os eleitores de Bolsonaro, esteja a maioria dos que se recusaram, no início, a tomar a vacina. Pelo menos, é o que se deduz dos números acima. Assim, o discurso do presidente não prejudicou o país como um todo, mas somente aqueles que já pensavam como o presidente.

Bolsonaro fez exatamente o que seus eleitores mais fiéis esperavam que ele fizesse. De uma coisa não se pode acusar o presidente, de não ser fiel ao seu modo de pensar o mundo, compartilhado com seus eleitores. O triste é que, no caso das vacinas, isso aparentemente custou vidas.

Um esclarecimento final: quando comecei o exercício acima, não sabia o que ia encontrar. Estabeleci um compromisso comigo mesmo de publicar o que encontrasse, fosse o que fosse. Aí está.

Post Scriptum

Reconheço que este é um estudo limitado, produzido com as ferramentas disponíveis no Excel. Seria interessante que alguém que entenda de econometria pudesse pegar esses dados e fazer algo mais refinado em um software dedicado, tomando cuidados técnicos como efeitos fixos de municípios e estados, além de usar outras metodologias que não o de mínimos quadrados, que não é das mais robustas.

O índice de sofrimento e as chances de Bolsonaro

O economista Arthur Okun criou um índice muito simples mas poderoso para medir o humor da população. Trata-se do “Misery Index”, que você vai ver por aí traduzido como “Índice da Miséria”, mas que eu prefiro traduzir como “Índice do Sofrimento”.

O Índice do Sofrimento nada mais é do que o resultado da soma do índice de desemprego com a inflação acumulada nos últimos 12 meses. A idéia é medir o quanto o povo está sofrendo do ponto de vista da atividade econômica e da inflação, as duas principais variáveis macroeconômicas que influenciam o dia a dia do cidadão. O gráfico abaixo mostra o Índice do Sofrimento calculado desde o ano 2000 até fevereiro de 2022, quando temos os últimos dados de inflação e desemprego.

A linha vermelha mostra uma previsão deste índice, considerando as projeções para a inflação e para o desemprego segundo o relatório Focus do Banco Central. Além disso, destaco os meses das eleições e o do impeachment de Dilma Rousseff.

Em primeiro lugar, podemos observar que, nas três eleições em que houve continuidade do partido incumbente (2006, 2010 e 2014), o Índice do Sofrimento estava abaixo de 14. Por outro lado, nos dois casos em que houve troca de partido (2002 e 2018), o Índice estava acima de 16. Por ocasião do impeachment, estava acima de 20.

Pois bem. Hoje, o Índice do Sofrimento está acima de 22, em pior situação do que na época do impeachment. Não é à toa que a popularidade do presidente está em baixa. A boa notícia para Bolsonaro é que o índice tende a cair ao longo do ano, chegando nas eleições um pouco acima de 18. A má notícia é que, neste nível, o partido incumbente não conseguiu fazer o sucessor em 2002. Ou seja, a considerar esta estatística, a popularidade do presidente vai melhorar ao longo do ano, mas não na velocidade e intensidade suficientes para lhe dar um novo mandato.

Claro que esta é uma interpretação unidimensional da realidade, e baseada em poucos pontos, dado que o histórico é curto. Mas, sem dúvida, é um alerta para a campanha do presidente, que precisará de muito mais esforço do que o normal para conseguir se reeleger.

A volta dos que não foram

Passeando por alguns posts antigos, redescobri esta pérola. Faltando pouco menos de um ano para as eleições de 2018, o então pré-candidato do PSDB à presidência, Geraldo Alckmin, coloca para fora todas as suas convicções sobre o capitalismo, em um evento patrocinado por uma ala do partido chamada “Esquerda Pra Valer”.

A estratégia era, segundo a reportagem, tentar herdar os votos de Lula, caso o então pré-candidato do PT e já condenado em 1a instância fosse impedido de concorrer.

Como se viu, a estratégia não deu lá muito certo. Mesmo tendo um latifúndio de tempo de TV e o apoio de 279 partidos, Alckmin mal ultrapassou 5% dos votos, a menor votação do PSDB desde a redemocratização. Enquanto isso, um candidato que prometia privatizar tudo quase papou a eleição no 1o turno. Sua estratégia não era herdar os votos de Lula. Era herdar os votos das viúvas do PSDB, abandonadas por um partido que insistia em ser o lado B do PT.

Hoje, o responsável pela tal “Esquerda Pra Valer” foi expulso do partido, enquanto Alckmin se auto expulsou. O PSDB, sob o comando de João Doria, quer ocupar um espaço mais à direita no espectro político. É o popular “muito pouco, muito tarde”. O PSDB perdeu o trem da história, e agora virou um coadjuvante no cenário da disputa presidencial.

Estelionato eleitoral

Entre o final de setembro e o início de outubro de 2018, na reta final da campanha eleitoral, o Posto Ipiranga deu com a língua nos dentes e avisou que estava pensando em um imposto com rabo de CPMF, focinho de CPMF e boca de CPMF, mas não era a CPMF, taokey?

Como o então candidato do PSL sabia do teor tóxico da proposta, a negou veementemente. Lembro que todas as páginas bolsonaristas saíram em defesa do candidato, classificando a notícia como “fake news”. No máximo, havia sido uma “trapalhada” do Posto Ipiranga, que confundira IVA com CPMF. Muito compreensível.

Obviamente, olhando em perspectiva, fica claro que a única proposta tributária do Posto Ipiranga sempre foi a CPMF. É o samba de um imposto só. Marcos Cintra foi convidado para ser o secretário da Receita com um único objetivo: a implantação do seu projeto de vida, o imposto único.

Não consigo dizer se isto estava claro para Bolsonaro desde o início, ou se o Posto Ipiranga contava com o tempo para convencê-lo do seu projeto. O fato é que, hoje, Bolsonaro quer emplacar a CPMF, mesmo sendo um claro estelionato eleitoral.

Em sua mensagem na abertura dos trabalhos do Congresso em 2016, a então presidente Dilma Rousseff defendeu a aprovação da CPMF. Foi o único momento durante aquele discurso em que foi vaiada. Certamente o então deputado Jair Bolsonaro engrossou o coro.

Diz o governo que não vai aumentar a carga tributária, vai apenas substituir os impostos sobre a folha de pagamentos pela CPMF. Bem, o mesmo efeito poderia ser atingido pelo aumento da alíquota do futuro IVA, que vai substituir outros impostos. Por que não o faz? Ora, porque a alíquota do IVA já é grotescamente alta, e aumentá-la ainda mais é inviável. Então, vamos inventar um novo imposto com alíquota pequena pra fazer de conta que não estamos cobrando nada. É a confissão de que é preciso continuar escondendo a derrama a que é submetido o cidadão brasileiro.

E qual teria que ser o tamanho da alíquota? Vamos lá. Em 2007, último ano de cobrança da CPMF, a arrecadação foi de R$ 37 bilhões, o que daria, a valor corrigidos, R$ 73 bilhões. Isso com uma alíquota de 0,38%. O orçamento recém-enviado pelo governo prevê uma arrecadação de INSS (principal imposto sobre a folha) de R$ 417 bilhões, grande parte paga pelo empregador. Só para compensar este imposto, a alíquota teria que ser de 2,17%. Isso com uma taxa de juros de 2%. Uma alíquota de 0,38% pagaria cerca de 1/5 das despesas com INSS. Faltariam o FGTS e o PIS/PASEP. Dá para perceber que a coisa não é tão simples.

Na época da eleição, escrevi aqui um post em que lembrava que eu havia testemunhado o nascimento de muitos impostos e contribuições, mas a morte de somente dois: a CPMF em 2007 e o imposto sindical em 2017. Os dois são, para mim, linhas vermelhas. Voto no Cabo Daciolo, mas não voto no cidadão que recriar um desses dois impostos. Está avisado.

A bandeira do anti-petismo

Em seu artigo semanal, Guzzo toca em um ponto que discuti ad nauseam durante as eleições: a ridícula estratégia de Alckmin durante a campanha. Em uma eleição quase plebiscitária, onde se estava decidindo se o PT deveria ou não voltar ao poder, Alckmin atacava Bolsonaro usando justamente as bandeiras do PT, chamando-o de homofóbico e misógino, ao invés de tentar se colocar como “O” candidato anti-PT. E não adiantava (como não adiantou) dizer que seria o único capaz de bater o PT no 2o turno. Afinal, de que servia ter um candidato como Alckmin no 2o turno, se ele não era um “antipetista de verdade”?

(Só um parênteses: pesava também contra Alckmin o fato de ter uma base de partidos do chamado “centrão” a apoiá-lo, em uma eleição “anti-sistema”. Então, mesmo que tivesse se travestido de “o anti-petista”, acho que não chegaria ao 2o turno. Mas, provavelmente, teria mais do que os 5% de votos que teve. Fecha parênteses).

Não é à toa que Bolsonaro elegeu Witzel e, num segundo plano, Doria, como seus inimigos mortais. As suas diatribes contra os governadores têm, na verdade, esses dois como alvos. Ao contrário de Alckmin, Witzel e Doria, principalmente o primeiro, têm irrefutáveis credenciais anti-petistas. Em uma eleição, disputariam o mesmo eleitor. Huck, por outro lado, representa essa elite de consciência pesada (o que Guzzo chama de “banqueiro de esquerda”) que não vai a lugar algum, como Alckmin não foi.

Mas (e esse mas é importante) ainda estamos a pouco menos de 3 anos das eleições. É uma eternidade. Teremos que ver se o sentimento anti-petista será o principal fator de decisão do eleitor em 2022. Se não for mais, os termos da eleição mudam. Por isso, o Supremo (ao revogar a prisão após condenação em 2a instância), o Papa, a prefeita de Paris e júri do Oscar vêm prestando um grande serviço ao bolsonarismo, ao manter a chama do anti-petismo acesa. Só falta, como cereja do bolo, o Supremo liberar a candidatura do não-proprietário do triplex. Desconfio de que este seja o sonho secreto de Bolsonaro.

A voz do povo

Um dos argumentos mais utilizados pelos apoiadores de Bolsonaro é o número de votos que recebeu. O Congresso estaria obrigado a obedecer a “voz do povo”, traduzido em mais de 58 milhões de votos no 2o turno.

Pois bem, fiz um levantamento da “voz do povo” traduzido no número de votos recebidos pelos congressistas. Para tanto, dividi o Congresso grosseiramente em 4 grandes blocos: Governo (PSL), Centrão (PSD, PP, MDB, PL, PRB, DEM, PTB e SD), Oposição (PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB, Rede, PCB, PSTU e PCO) e Independentes (todo o restante).

Os votos recebidos pelos deputados (considerando todos os votos, mesmo daqueles que não foram eleitos), foram os seguintes:

  • Centrão: 35.443.197 (36,0%)
  • Independentes: 26.346.424 (26,8%)
  • Oposição: 25.069.407 (25,5%)
  • Governo: 11.458.238 (11,7%)

Considerando-se apenas os votos daqueles que foram eleitos, o resultado seria:

  • Centrão: 21.819.375 (41,7%)
  • Oposição: 13.916.617 (26,6%)
  • Independentes: 9.023.974 (17,2%)
  • Governo: 7.517.669 (14,4%)

Ou seja, o partido do governo (PSL) recebeu apenas 11,5 milhões de votos. Todo o restante foi para outros partidos. A “voz do povo”, que se fez ouvir com muito vigor na eleição majoritária, foi apenas um sussurro quando se tratou de eleger os deputados. Mesmo considerando-se somente os deputados que estão no Congresso, os votos dados ao partido do governo representam apenas 14,4% do total.

Cada congressista deve satisfação ao seu próprio eleitor, não ao eleitor de Bolsonaro. Os partidos do chamado Centrão, por sinal, receberam o maior número de votos. Portanto, “a voz do povo” foi muito clara: Bolsonaro presidente, mas Congresso diversificado e sem apoio automático.

Nas próximas eleições, se quiserem um Congresso que apoie sem condições as iniciativas do presidente, é necessário votar nos candidatos do partido do presidente. Caso contrário, a negociação para formar uma base de apoio é condição sine qua non para governar.

Arrependimento

Arrependo-me do meu voto no 2o turno? Não. Do outro lado estava o PT. Teríamos saudades do dólar a R$4.

Não posso criticar por ter votado em Bolsonaro? Posso. Não fui o responsável por termos no 2o turno a escolha entre a panela e a frigideira.

Só poderia criticar se tivesse anulado meu voto? Não. Quem anulou o voto apenas deixou a decisão para os outros. Ajudou a eleger o coiso do mesmo jeito.

Mesmo sabendo o que já sabemos, teria votado novamente? Sim. Do outro lado estava o PT.

Tenha sempre em mente: Bolsonaro é obra do lulopetismo.

Muito estranho!

Sabe aqueles grupos de zapzap que criaram só pra fazer campanha pro Bolsonaro? Esqueceram de desativar, e agora não para de chegar mensagens de Feliz Natal no meu telefone. Só pode ser coisa de uma grande central manipuladora. Afinal, é muito estranho mensagem de Feliz Natal no dia 24 de dezembro. Aí tem!!!!

Feliz Natal para todos os meus amigos!

O erro de Alckmin

Quem me acompanha já leu isso aí em algum lugar.

De qualquer forma, olhando com a perspectiva privilegiada de saber tudo o que aconteceu, parece-me que um discurso raivosamente anti-PT na boca de Alckmin soaria falso. Por um único motivo: pareceria tática eleitoral e não algo sincero, vital. O povo sente isso.

Quando Doria surpreendeu o mundo político ao citar Lula em seu primeiro discurso como prefeito, estava claro que ali surgia uma potencial candidatura presidencial. Ninguém nunca havia ouvido Alckmin desancar Lula daquele jeito. Um discurso desses às vésperas da eleição soaria tremendamente artificial.

Então, olhando para trás, o erro não foi da campanha de Alckmin. O erro foi do próprio Alckmin e do PSDB, que escolheram o candidato errado. O sentimento era o antipetismo e João Doria era quem mais autenticamente encarnava esse sentimento dentro do partido. Pode ser que não ganhasse a eleição, pois o PSDB seria um peso difícil demais para carregar. Mas não tenho dúvida de que seria um candidato bem mais difícil do que Alckmin.