Fala impensada

Existem pessoas essencialmente boas e existem pessoas essencialmente más. As pessoas essencialmente boas, quando dizem coisas más, é porque “cometeram um deslize”, “uma gafe”, ou falaram “de maneira impensada”. A fala saiu omo um peido irreprimível, sem querer. Já as pessoas essencialmente más, quando dizem coisas más, estão essencialmente expressando o que vai em seus corações. A fala é de caso pensado, só confirmando o que todos já sabem.

Se um tipo como Bolsonaro, ou qualquer bolasonarista notório, tivesse sugerido um boicote a negócio de pretos ou indígenas, isso renderia horas de debates na Globo News e um inquérito aberto ex-oficio no STF. No entanto, como Genoíno é uma pessoa essencialmente boa (segundo Cantanhede, sua pena no Mensalão foi a mais injusta de todas), sua fala foi “impensada”. Quem me dera ser protegido de meus próprios erros dessa maneira.

O editorial do Estadão foi menos condescendente. Descartou a hipótese de “fala impensada”, uma vez que Genoíno, até o momento, não se retratou. O editorial foi além, dando ao boi o nome correto: antissemitismo.

Não, Genoíno não falou de maneira “impensada”. Ele somente verbalizou o que Lula, os petistas e a esquerda em geral pensam (quem tem dúvida, é só dar uma passeada nos perfis à sinistra do Xwitter): sob a capa de antissionismo (que é basicamente negar aos judeus o seu direito à autodeterminação), pulsa um antissemitismo secular que, em um mundo dividido entre opressores e oprimidos, identifica os judeus com o lado opressor de uma maneira muito mais ampla do que as escaramuças em Gaza fazem supor. A menção às “empresas de judeus” por parte de Genoíno não foi extemporânea; por trás dessa frase emerge a imagem do judeu rico, poderoso, que move os cordões do mundo, e contra os quais se insurge o proletariado. Os judeus estão do lado errado da História, e por isso merecem ser boicotados.

Genoíno está pagando o preço de falar em público o que a esquerda fala em privado. Nesse sentido, vou concordar com a Cantanhede: sua fala foi “impensada”, pois inadvertidamente abriu a tampa do esgoto do pensamento da esquerda.

Ainda bem que temos o PT para salvar nossa democracia

Quem diria que o PT, o baluarte e último refúgio da democracia brasileira, patrocinasse uma ação contra o jornalismo profissional. Mas, aparentemente, foi o que fizeram, no caso da chefe da sucursal de Brasília do Estadão, Andreza Matais, acusada de ter “fabricado” a matéria sobre a Dama do Tráfico intima dos ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos.

O roteiro foi o clássico. A coisa começou com uma “reportagem” do site “acima de qualquer suspeita” Fórum, com base em uma denúncia de supostos funcionários do Estadão, que acusavam Andreza de assédio moral com o objetivo escuso de fabricar uma matéria que prejudicasse as pretensões de Flávio Dino de ser apontado como próximo ministro do STF.

A partir dessa matéria, toda a máquina petista de moer reputações entrou em ação. Até Nelipe Feto deu a sua contribuição.

O único problema da “reportagem” do site é que os prints usados são da própria página de inserção das denúncias, como demonstrado por um print que eu mesmo fiz da mesma página, em branco. Note o “1o passo” acima da página, igual aos prints do site. Ou seja, somente seria possível tirar esses prints no momento em que a denúncia estivesse sendo escrita. E não há um número de protocolo sequer que prove que a denúncia foi efetivamente submetida.

Por que fizeram assim? Provavelmente porque uma mera entrevista com “funcionários” anônimos do Estadão seria mais fraco. Uma “denúncia” ao Ministério Público, isso sim, dá ares de oficialidade, algo muito mais sério e concreto. O fato de que o site tenha tido acesso à denúncia no mesmo momento em que estava sendo feita demonstra a armação tosca.

Como diz a notinha da ANJ, esses métodos “não se coadunam com valores democráticos” e são “uma prática de regimes autocráticos”.

Curiosamente, na mesma página, a inefável Eliane Cantanhêde aponta Javier Milei, ao lado de Bolsonaro e Trump, como um “trio contra a democracia”. Ainda bem que temos o PT para nos salvar.

O golpe do exército de Brancaleone

Foi ou não foi tentativa de golpe?

Espantalhos são úteis como palavras de ordem que aglutinam paixões, enquanto desviam o foco das questões realmente relevantes. O espantalho do “golpe de estado” é tão real (e tão útil) quanto o espantalho do “comunismo”. Vamos focar aqui no primeiro, que está na ordem do dia.

Cantanhêde, e boa parte da intelligentsia brasileira, parece acreditar piamente que escapamos por um triz de um golpe militar a la 1964. Seria cômico se não fosse trágico. Essa crença ignora a dinâmica do golpe de 64, em que todas as forças institucionais do país concorreram para a deposição de Jango, no contexto global da Guerra Fria. Os militares simplesmente compuseram com as instituições, em um movimento elogiado pelos grandes órgãos de imprensa. Sério que querem comparar aquilo com Bolsonaro e seus camisas pardas?

A frase “golpe nunca mais!” e as condenações do STF colocam a intelligentsia brasileira e os lunáticos de Bolsonaro no mesmo nível: ambos os lados realmente acreditam que estávamos à beira de um golpe de estado liderado pelos militares.

Os auto-intituladas democratas do país davam risada (e com razão) dos acampamentos em frente aos quartéis, geradores de abundantes memes. Afinal, aquilo era nada mais que folclórico. A diferença concreta dos acampamentos para os eventos de 08/01 é que as poltronas dos ministros do Supremo foram quebradas, o que mereceria pena de morte, se houvesse essa previsão em nosso ordenamento jurídico. Aqueles eventos não avançaram um milímetro na direção de um golpe militar, a não ser na cabeça da Cantanhêde e dos lunáticos. E esse ponto é importante.

Aquela multidão realmente achava que estava provocando a reação dos militares. São abundantes as referências a uma suposta “intervenção militar”. Aliás, não é de hoje. Faixas pedindo intervenção e com os dizeres “eu autorizo” eram frequentes nas manifestações em apoio a Bolsonaro. Os acampamentos em frente aos quartéis fazem parte desse quadro. Nesse sentido, a condenação se explica: afinal, não é a impossibilidade concreta de cometer um crime que absolve a tentativa. Os acampamentos e a invasão tinham como objetivo a intervenção militar, por mais doidivanas que possa parecer. Portanto, na cabeça daquelas pessoas, havia sim um crime tipificado sendo executado, e não foi só a depredação, o que justifica a condenação.

O tom patético da coisa se dá pelo auto-nivelamento da intelligentsia (STF incluído) com o bolsonarismo mais rasteiro, ambos acreditando piamente que um golpe de estado estava no forno. Os champions da democracia se regojizam, como se combater o bolsonarismo fosse o suprassumo da defesa do Estado Democrático de Direito. Infelizmente, não existe crime de imbecilidade, que seria a tipificação correta para o caso. Então, que seja pelo crime de atentado às instituições democráticas, que, de fato, era a intenção. Mas, pelo menos, poderiam nos poupar do ridículo de elevar o caso a uma questão de vida ou morte para a democracia brasileira.

PS.: parabéns para a Justiça brasileira, que mostrou uma celeridade exemplar neste caso. Espero que seja a nova norma para o trâmite dos processos que não envolvam a quebra das poltronas dos ministros do Supremo.

Jornalismo raso

A jornalista Eleiane Cantanhêde avisa: os bolsonaristas vão se arrepender de terem insistido na instalação da CPMI dos eventos de 08/01, que ela chama de “CPMI do golpe”. Toda a coluna de hoje serve para provar a tese, repetindo tudo o que já sabemos: a existência de uma “minuta do golpe” e as mensagens sobre a trama trocadas entre auxiliares próximos do ex-presidente.

Fico cá pensando com meus botões: o que faz o Estadão ainda manter entre seus colunistas alguém tão limitada como Eliane Cantanhêde? Sim, porque uma coisa é defender ideias com as quais pode-se não concordar, mas que contam com alguma lógica interna. Outra, é desfilar platitudes que ficam no térreo da análise, sem conseguir nem ao menos descer ao primeiro subsolo dos fatos, o nível mais óbvio de qualquer análise. Aliás, nem mesmo como “jornalista de bastidor” a colunista serve, pois é raro haver elementos de bastidor em suas colunas. É só análise rasa mesmo.

No caso em tela, todos os fatos listados pela jornalista já são de conhecimento público há muito tempo. O que uma CPMI mudaria exatamente? Por que esses mesmos fatos fariam os bolsonaristas se “arrependerem” da convocação da CPMI? Mistério.

Cantanhêde não desce ao primeiro subsolo mais óbvio: quem lutou com unhas e dentes pela não instalação da CPMI foi o governo, não os bolsonaristas. Só não conseguiram seu intento porque um vídeo comprometendo o ajudante de ordens de Lula vazou na CNN, tornando irresistível o movimento pela instalação. Aliás, há alguns dias, editorial do Estadão reclamava que, até o momento, os vídeos das invasões não foram liberadas pelo governo e pelo STF, apesar de ordem em contrário do próprio Alexandre de Moraes. Cabe a dúvida legítima: será que o governo não queria uma CPMI pois esta tem autoridade para requisitar todos os vídeos daquele dia? O quadro descrito por Cantanhêde já conhecemos. A pergunta é: o que não conhecemos?

O mundo é bem mais do que a luta entre o “bem” e o “mal”, fato que um bom comentarista político, verdadeiramente isento, deveria saber de cor. Que foram bolsonaristas os que invadiram as sedes dos poderes parece não haver dúvida. O que ainda está para ser esclarecido é o papel das autoridades do governo Lula nesse episódio. Um crime tem autoria, ocasião e beneficiário. As duas primeiras características estão mais ou menos claras. A CPMI poderá jogar luz na terceira.

Cantanhêde assumiu o compromisso, juntamente com outros jornalistas, de “defender a democracia”, o que se traduz em colocar Bolsonaro como o inimigo número 1 do país, mesmo que isso signifique repetir bovinamente fatos já conhecidos. Assim como um STF que “defende a democracia” faria melhor em defender a justiça, jornalistas prestariam um melhor serviço se esquecessem essa estória de “defender a democracia”, e simplesmente defendessem os fatos.

Reforma política para quem, cara pálida?

Lula está enfrentando dificuldades no Congresso. A solução? Uma reforma política! É o que propõe a sempre criativa Eliane Cantanhêde, que não desiste de suas ideias, mesmo depois de ter protagonizado o mais épico “cala boca, Magda!” da história da imprensa brasileira, ao sugerir que Lula deveria assumir uma candidatura de vice-presidente da República.

Curioso que a mesma Cantanhêde via no Congresso um muro de contenção aos arroubos autoritários do governo Bolsonaro. Esse mesmo Congresso, agora, está atrapalhando a vida de Lula. Questão de perspectiva.

Uma reforma política é ruim? De maneira alguma! Estamos precisando de uma para ontem, de modo a melhorar a representatividade dos congressistas, principalmente com a adoção do voto distrital. No entanto, o problema, como sempre, está nas boas intenções, das quais o inferno está cheio.

Quando Cantanhêde propõe um “Comitê de Notáveis” (ideia de Tarso Genro, vai vendo), a questão sempre vai estar em quem vai escolher esses notáveis. A escolha de Cristiano Zanin para a vaga de ministro do STF dá uma boa noção do que Lula entende por “notável”. Essa ideia de um comitê apartidário somente com sumidades parte do pressuposto de que há pessoas por aí que são praticamente assexuadas, imunes a paixões, incluindo as políticas. Obviamente, não existem. Além disso, como disse acima, há a questão da escolha desse comitê, um assunto sempre delicado. Por isso existem eleições, de modo a que os eleitos contem com a legitimidade do voto popular para exercer o poder. Comitê de Notáveis à margem do Congresso é das ideias mais antidemocráticas que circulam na praça.

Temos a ilusão de que uma Grande e Profunda Reforma Política resolverá todos os nossos problemas. Não resolverá. É mais provável que seja sequestrada pelos interesses das maiorias conjunturais. É preferível avançar aos poucos, na direção correta, como foi o caso do fim das coligações em eleições proporcionais e da cláusula de barreira. Algum grau de voto distrital poderia ser o próximo passo. Mas, claro, nada disso resolverá o problema de Lula, que pretende exercer o poder de maneira hegemônica. Nesse caso, o problema não é o sistema de representação. O problema é a existência da própria democracia.

Não se salva nada

Está se formando um consenso de que a parte geopolítica da viagem de Lula à China foi um desastre, ao confrontar, sem nenhuma necessidade, os Estados Unidos na questão do dólar, e o mundo ocidental democrático, na questão da Ucrânia. Até Eliane Cantanhêde, passadora de pano contumaz, chegou a essa conclusão.

Mas, pelo menos, a viagem serviu para aprofundar os laços comerciais, abrindo novas portas aos nossos empresários. Será?

O jornalista Lourival Sant’Anna levanta outro aspecto interessante das relações Brasil-China: a nossa dependência do gigante asiático. Em 2016, último ano do período PT no governo, o Brasil exportou US$ 35 bilhões para a China, ou 19,5% das nossas exportações. Seis anos depois, passados os governos Temer e Bolsonaro, o Brasil exportou, em 2022, US$ 89,4 bilhões, ou 26,8% das nossas exportações. A pergunta é: quanto mais nos interessa aumentar essa dependência? Do ponto de vista estratégico, não seria melhor Lula estar se dedicando a diversificar o destino de nossas exportações, ao invés de aprofundar ainda mais a nossa dependência da China?

Sob esse aspecto, a viagem de Lula também parece um equívoco. Ou seja, não se salva nada.

A demonização como modus operandi

Eliane Cantanhêde nos traz insights de uma conversa que teve com Haddad. Dois pontos me chamaram a atenção.

O primeiro foi o reconhecimento de que o PROER, um programa para resgatar bancos em dificuldades após o fim da hiperinflação, foi importante para a solidez atual do sistema bancário brasileiro. Na época, o PROER foi demonizado incansavelmente pelo PT. É bom ver um prócer do partido reconhecendo a importância do programa. Antes tarde do que nunca.

Aliás, a prática do PT é essa: demonizar políticas impopulares, mas colher os seus frutos sem conceder o mérito. Foi assim com o Plano Real, PROER, LRF, sistema de metas de inflação, BC independente. O teto de gastos era para ser mais uma dessas políticas, se não tivesse sido desmoralizado pelo governo Bolsonaro. É bem capaz de o “novo arcabouço fiscal” incluir uma regra mitigada de teto de gastos. Receberá outro nome, mas o princípio será o mesmo, de modo que o PT possa continuar a demonizar o teto sem deixar de colher seus frutos.

O segundo ponto da coluna que me chamou a atenção foi a máxima de que “o objetivo não é aumentar alíquotas, é fazer quem não paga passar a pagar”. Não pude deixar de sentir uma sensação de deja vu, lembrando de uma entrevista no Roda Viva do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, nas vésperas do lançamento do Plano Real, em que o xará do atual ministro diz exatamente a mesma coisa. O resultado, ao longo do governo FHC, foi o aumento da carga tributária. E, adivinha, quem ganha mais continua pagando menos.

A diplomacia de Lula: propaganda e realidade

A máquina de propaganda do PT está a todo vapor, com a prestimosa ajuda de jornalistas dispostos a servir de assessoria de imprensa, ao invés de apurar os fatos.

Hoje, duas páginas do Estadão movem para frente a história de que o Brasil de Lula está se tornando um ator relevante no cenário diplomático global. Na primeira, uma notinha diz que o Brasil fez duas contribuições relevantes para a resolução da ONU que condena, pela enésima vez, a invasão da Ucrânia pela Rússia. A primeira teria sido a inclusão de um pedido de que “os dois lados cessem ações hostis” (mais à frente comento o absurdo dessa proposta). A segunda seria a inclusão da “necessidade de esforços diplomáticos para alcançar a paz”.

Na segunda página, Eliane Cantanhêde afirma que tanto a Rússia quanto a Ucrânia mandaram “leves sinais” de que estariam aceitando as propostas de Lula. No caso da Rússia, o vice-ministro das relações exteriores “agradeceu ao Brasil por não enviar munições à Ucrânia e afirmou que Putin estuda a proposta de paz de Lula”.

Dá vontade de gargalhar, não fosse algo trágico. Essa posição da Rússia é muito clara sobre a quem interessa a posição do governo brasileiro. Em seguida, Cantanhêde afirma que o “cessar-fogo imediato” foi um elemento da resolução pedido pela própria Ucrânia, em linha com o que Lula defende, e que isso seria um sinal de aceitação da mediação do presidente brasileiro. Veremos que a informação está factualmente incorreta, mas mesmo que estivesse certa, ligar isso com Lula é muita vontade de babar ovo.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, fui às fontes, como os jornalistas deveriam ter feito. A ONU publica não somente as resoluções, como também os debates que deram origem às resoluções. No caso da última resolução, foram dois dias de debates, na quarta (22) e quinta (23). Fui dar uma busca nas atas desses debates (aqui e aqui) pelas intervenções do Brasil. No primeiro dia não há nenhuma. A intervenção no 2o dia foi a seguinte:

O representante do Brasil disse que sua delegação votará a favor da resolução, pois a Assembleia Geral deve respeitar os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. Enfatizando que o elemento mais importante do texto é o apelo à comunidade internacional para redobrar os esforços para alcançar uma paz justa e duradoura na Ucrânia, ele disse que seu país considera o pedido de cessação das hostilidades no parágrafo dispositivo 5 um apelo a ambos os lados para deter a violência sem pré-condições“.

Estão aí os dois elementos levantados pelos jornalistas: esforços diplomáticos e cessar-fogo. O problema é que nem um e nem o outro ponto são o que os jornalistas dizem ser, os pontos devem ter sido soprados pelo governo. Vejamos.

No caso dos esforços diplomáticos, este é um ponto que já tinha sido mencionado, por exemplo, na resolução votada em outubro do ano passado. Em seu parágrafo 7, podemos ler, entre outras coisas: “… uma resolução pacífica do conflito através diálogo político, negociação, mediação e outros meios pacíficos, …”. Então, os tais “esforços diplomáticos” não foram uma ideia do Genial Guia dos Povos, mas algo que faz parte da própria natureza da ONU. Isso é tão óbvio que dá até vergonha de ter que explicar.

Mas é no segundo ponto que se encontra o ponto chave da posição brasileira. A intervenção brasileira nos debates fala de “deter a violência sem pré-condições”. Este “sem pré-condições” não está na resolução. Podemos ler no tal parágrafo 5:

Reitera a sua exigência de que a Federação Russa retire imediata, completa e incondicionalmente todas as suas forças militares do território da Ucrânia, segundo suas fronteiras reconhecidas internacionalmente, e apela à cessação das hostilidades“.

Note 1) toda a frase anterior ao pedido de fim das hostilidades, que claramente coloca a responsabilidade sobre a Rússia em relação a este movimento e 2) a ausência do “sem pré-condições” pedido pela delegação brasileira nos debates.

Ou seja, a resolução nem mostrou uma novidade em relação aos esforços diplomáticos e nem acolheu a sugestão brasileira de um cessar-fogo incondicional. E, obviamente, não foi a Ucrânia que pediu a inclusão dessa última cláusula, como sugere Cantanhêde, basta ler a intervenção da Ucrânia nos debates. Portanto, a festinha dos jornalistas em torno da diplomacia de Lula parece mais um trabalho de assessoria de imprensa do que jornalismo.

Até aqui, uma crítica ao jornalismo. A partir daqui, uma crítica (ou um lamento) sobre a posição brasileira em relação ao conflito.

A delegação brasileira pede um “cessar-fogo sem pré-condições”. Procurei, nas atas dos debates, os países que pediram um cessar-fogo ou o fim das hostilidades. Além do Brasil, Peru, Tunísia, Costa Rica, México e China pediram um cessar-fogo. Mas o Brasil foi o único que pediu um cessar-fogo a ambos os lados sem pré-condições. Desculpem-me a crueza, mas às vezes uma imagem xucra transmite melhor a mensagem: o pedido do Brasil é equivalente a pedir para que estuprador e estuprada parem de se machucar mutuamente sem pré-condições, ou seja, o estuprador pode manter o pênis dentro da vagina da estuprada, desde que parem de brigar. É ultrajante.

Encerro com a posição do Japão nos debates, um exemplo de como uma nação civilizada deveria se posicionar sobre este conflito:

HAYASHI YOSHIMASA, Ministro das Relações Exteriores do Japão, enfatizou que o projeto de resolução é sobre a paz. A paz deve ser baseada em princípios, apontou, acrescentando que, embora as hostilidades devam cessar imediatamente, isso não produziria necessariamente uma paz abrangente, justa e duradoura. “E se um membro permanente do Conselho de Segurança lançasse uma agressão contra sua pátria, tomasse seu território e então cessasse as hostilidades, pedindo paz?” ele perguntou, chamando tal paz de injusta. Seria uma vitória para o agressor se tais ações fossem toleradas e abririam um terrível precedente para o resto do planeta, disse ele, acrescentando que o mundo voltaria à selva, seja em terra ou no mar. Conclamando a Federação Russa a retirar suas tropas imediata e incondicionalmente da Ucrânia, ele observou que a Assembleia Geral exigiu isso, assim como o Secretário-Geral e a Corte Internacional de Justiça. Infelizmente, acrescentou, “a Rússia aparentemente não se importa com as resoluções da Assembleia Geral e as ordens da Corte Internacional de Justiça, como se fossem apenas pedaços de papel inútil”, disse ele, destacando também seu abuso do poder de veto e sua retórica irresponsável como um Estado com armas nucleares.

A desqualificação do outro

Eliane Catanhêde e Renata Cafardo escrevem hoje colunas reveladoras de uma certa forma de ver o mundo. Não pelo assunto em si, mas pela forma a que se referem aos que delas discordam.

Catanhêde, ao condenar uma suposta subversão de valores por parte de Bolsonaro, que se coloca como defensor da democracia, refere-se aos bolsonaristas como “robôs de carne e osso” e de repetir coisas “sem pensar”.

Cafardo, ao analisar o projeto de homeschooling, refere-se aos seus defensores como “um grupinho de doidos”.

Coincidentemente, um excelente artigo, publicado hoje no mesmo jornal, encontra no regime de Putin várias características do que poderíamos definir como fascismo. Dentre elas, a primeira é identificar um inimigo com características sub-humanas, contra o qual todas as armas podem ser usadas.

Ainda no mesmo jornal, encontramos uma entrevista com a autora de um romance ambientado na Polônia da 2a Guerra. Ao ser questionada sobre a possibilidade do ressurgimento de um regime nazista, a entrevistada responde que o regime nazista foi único, ao defender que algumas pessoas eram sub humanas.

Em um episódio de Black Mirror, soldados são destacados para matar mutantes que estariam supostamente arruinando colheitas.

O que se descobre depois (spoiler!) é que se trata de seres humanos, que são vistos como mutantes pelos soldados por causa de um dispositivo cerebral que estes usam. Não por acaso, esses mutantes são chamados de “baratas”.

A desqualificação do diferente, de quem não pensa como nós, é o primeiro passo de um longo caminho que leva ao arbítrio. Porque se o outro não pode ser considerado um ser humano, tudo o que se fizer com ele estará justificado.

Ao dizer que o outro “não pensa” ou que é “doido” (o que vem a ser o mesmo), Catanhêde e Cafardo rebaixam o “outro lado” à categoria de sub-humanos. Portanto, não se pode permitir que “essa gente” tenha voz.

Não se pense, no entanto, que se trata de uma característica exclusiva de anti-bolsonaristas. Anti-petistas desqualificam igualmente “o outro lado”. “Esquerdopatas”, “gado”, “ladrões” são alguns termos usados para qualificar quem pensa que Lula é menos pior que Bolsonaro. São as pessoas “de bem” contra as “baratas”.

Há algum tempo, escrevi um artigo intitulado “Escolha política não define caráter”. Em resumo, defendo a ideia de que a opção política, dentro dos parâmetros democráticos, não deveria ser usada como guia moral para classificar as pessoas, pois cada um vê o mundo de um ponto de vista diferente. Somos todos seres humanos buscando o bem, apenas escolhemos caminhos diferentes.

A estrategista

Há não muito tempo, a colunista Eliane Catanhede protagonizou o que talvez tenha sido o mais famoso “cala boca Magda” da história do jornalismo brasileiro, ao sugerir, em sua coluna, que Lula poderia desistir de sua candidatura, ocupando uma vaga de vice-presidente em uma “chapa de união”. Lula, com a verve que Deus lhe deu, respondeu que Catanhêde poderia dar um golpe de mestre e parar de escrever bobagem, fazendo alusão ao título da coluna, “Golpe de mestre”.

Catanhêde, dessa vez, para não levar um outro “cala boca”, toma o cuidado de não assumir a maternidade de outra ideia genial. Em sua coluna de hoje, explica como Lula deveria conduzir a sua campanha se quiser ter alguma chance contra Bolsonaro, e atribui as suas ideias a uma suposta “ala moderada” do PT, como se isso existisse.

Em resumo, segundo a colunista, Lula deveria “caminhar para o centro”, “abrir mão da reeleição” e ”prometer reconstruir o país”. Na verdade, dessas três “ideias”, duas são meio que óbvias e uma (a da reeleição) é prima-irmã de assumir uma vaga de vice, além de ser, claro, uma promessa pouco crível. “Ser o presidente da reconstrução” é o que todos, com exceção do incumbente, prometem. E “caminhar para o centro” é o que Lula já começou a fazer, ao escolher Alckmin como vice. Aliás, na verdade, esse é um movimento quase dispensável, dado que todas as falas radicais do candidato, como revogar a reforma trabalhista ou acabar com o teto de gastos, são considerados pelos “centristas doidos para votar em Lula” como “discurso de campanha” que será abandonado pelo “pragmático Lula”.

A colunista, no último parágrafo, deixa entrever o seu objetivo: aconselhar o seu candidato in pectore a como enfrentar a “intensa pancadaria” que vai sofrer durante a campanha. Como se sofrer pancadaria fosse uma exclusividade de Lula e como se a pancadaria não fosse, de alguma forma, merecida. Para não ficar parecendo que Catanhêde virou estrategista da campanha do PT, aguardamos análise semelhante para os outros candidatos.