Pimenta nos olhos dos outros

Depois desse artigo de Eugênio Bucci, as definições de “pimenta nos olhos dos outros é refresco” foram atualizadas. Destaquei abaixo os trechos mais importantes, mas o artigo todo merece ser lido.

Comecemos com a avaliação do mestre em relação à “justeza” da greve. Lembremos que Bucci está do outro lado da mesa. Então, a pauta dos grevistas, segundo sua visão, já foi, ou está sendo, amplamente atendida. Portanto, a greve não tem sentido. Bem, essa é a postura de 100% dos que estão do outro lado da mesa em qualquer greve. Os “estudantes” têm uma pauta de 23 reivindicações distribuídas em 5 eixos. Bucci abordou duas questões. E as outras 21??? Não, meu caro Bucci, do ponto de vista dos grevistas, a greve é mais do que justa. Não deixa de ser curioso que o defensor dos “direitos democráticos” não se coloque a favor de uma greve em que grande parte das reivindicações ainda não foi atendida.

Mas a coisa piora. Segundo Bucci, a truculência dos grevistas só serve à “extrema direita anti-democrática”, que seria contra a universidade pública e gratuita. Entendam bem: não é que essa esquerda seja truculenta e anti-democrática. De maneira alguma. É que, no caso, esses métodos típicos da esquerda truculenta e anti-democrática são um tiro no pé, pois dão razão aos que acham erradamente que a universidade é um antro da esquerda truculenta e anti-democrática. Entenderam?

Aliás, essa é a mesma crítica que temos ouvido à respeito da greve dos metroviários: não é que a população seja refém dos metroviários, é que a greve passou a impressão de que a população é refém dos metroviários e, portanto, foi um tiro no pé. Ou seja, procura-se separar o exercício da truculência, que é inerente a esses movimentos, do movimento em si, como se isso fosse possível.

É comovedor o malabarismo que Bucci faz entre a crítica à greve e ao direito que os alunos têm de fazer greve. Nada contra o direito, mas ESSA greve é injusta e irresponsável, capice? Aliás, Bucci vai na mesma linha que adotei em meu post de ontem: os alunos estariam “treinando” seus posicionamentos políticos na universidade, seria uma espécie de campo de testes para os líderes políticos de amanhã, em um ambiente controlado. Sem dúvida! Boulos está aí para não nos deixar mentir. Portanto, greves são “uma força” da universidade, não uma fraqueza. Mas não ESSA greve.

Não Bucci. A legitimidade de uma greve não é função do que você acha justo ou injusto. Ou bem nenhuma greve de alunos financiados pelos impostos dos desdentados é justa, ou qualquer greve é justa. O gênio foi tirado da garrafa por pessoas como você, que defendem que os alunos tenham uma “vivência política” na universidade, como se os partidos políticos não tivessem seus próprios interesses, desconectados dos interesses da universidade. Agora, resta fazer malabarismos em artigos de jornal.

Brincando de greve

Reportagem no site da Adusp (Associação dos Docentes da USP) nos dá detalhes da greve que não existem nas matérias dos grandes jornais. Para dar o devido crédito, cheguei nesse site através da menção em reportagem de ontem do Estadão.

Em primeiro lugar, ficamos sabendo que Eugênio Bucci (sim, ele mesmo) está na mesa de negociações pelo lado da reitoria. Muito legal ver o champion da democracia lidando com as consequências do tipo de pensamento que representa.

Em segundo lugar, delicioso ver que as negociações não passaram sequer das preliminares, a pauta que seria discutida. Pudera, irmão: “23 reivindicações em 5 eixos” é coisa pra dedéu. Aliás, ouviu a palavra “eixo”, já sabe que é coisa de planejamento estatal. O programa do PT está cheio de “eixos”, e o recém-nascido plano de segurança pública do Dino tem mais “eixo” do que medidas concretas. Bem, os representantes da reitoria, incluindo Bucci, não toparam a pauta.

Mas o melhor vem agora: surpreendentemente, uma das líderes do movimento, Mandi Coelho, é filiada ao PSTU! Quem diria! A moça tem 28 aninhos e é diretora do Centro Acadêmico da Letras. Sua página no Facebook tem uma ilustração de Lênin, que, como sabemos, implantou a democracia na União Soviética.

Por fim, foram 11 os “representantes” dos estudantes nessa reunião com a reitoria, mas apenas os nomes de Mandi Coelho e Allan Terada são citados. Este último está terminando Geografia, e cursou o colegial no Colégio Santa Cruz, um celeiro de lideranças. Terada ameaçou “subir o tom” se as negociações não caminhassem, o que quer que isso signifique.

Sinceramente, essa greve me faz lembrar aquelas atividades de “ONU” no colégio, em que alunos assumem o papel de diplomatas para entender como a coisa funciona. Nessas dinâmicas nada está realmente em jogo, os atos dos “diplomatas-mirins” não têm maiores consequências para si mesmos ou para os outros. Nessa greve dos “estudantes”, também não há risco para os estudantes ou para a comunidade acadêmica. No final, ninguém será punido, ninguém repetirá de ano, todo mundo vai sair com seu diploma e os professores vão continuar recebendo os seus salários. Mas os “estudantes” terão vivido a experiência de uma greve, em que “negociam” com autoridades que entram no jogo para que os “estudantes” tenham uma experiência imersiva completa. Com a atividade lúdica encerrada, todos voltarão para a casa de seus pais, onde têm cama, comida e roupa lavada. Afinal, a vanguarda do proletariado merece.

Colocando a pasta de dente de volta no tubo

Eugênio Bucci debruça-se sobre um problema nacional de primeira grandeza: o resgate das cores nacionais, sequestrada que foram pelos “machistas, racistas, xenofobos e mesquinhos”, ou pelas “tchutchucas e dondocas de classe média”, segundo suas palavras. Na avaliação de Bucci, os R$ 3 milhões que serão gastos no desfile de 7 de setembro em Brasília estão justificados, se forem usados para resgatar as cores da nacionalidade das mãos dos pérfidos bolsonaristas.

O jornalista lembra, com nostalgia, dos tempos em que o verde e o amarelo não representavam o “golpismo”. Cita as Diretas Já, uma canção de Chico Buarque, a redação da Capricho e o novo logo da Placar como exemplos do uso do verde e do amarelo que não significavam o que, em tese, significam hoje. O que aconteceu?

Sabemos o que aconteceu. Nada. As cores nacionais nunca foram, nem poderiam ser, monopólio de nenhum grupo. O verde e o amarelo sempre puderam ser usados por qualquer cidadão. Então, afinal, por que essa identificação que Bucci lamenta? Sinto dizer, Bucci, mas a culpa é, em boa parte, de vocês, jornalistas. No início, quando as cores verde e amarela tomaram as ruas em apoio ao impeachment de Dilma, não faltaram “análises” ironizando os “patriotas com a camisa da seleção”. Foram o PT e suas cracas na academia e nas redações que entregaram de mão beijada o simbolismo. Ao bolsonarismo, só coube receber o presente de braços abertos.

Obviamente, não serão R$ 3 milhões gastos em um desfile bolado por um marketeiro que irão resolver o “problema”. Agora, é preciso que esses mesmos que “mistificaram” o uso das cores, as “desmistifiquem”. No ano passado, quando Lula apareceu com a camisa da seleção para torcer na Copa do Mundo, a cobertura jornalística frequentemente citava o fato de que aquelas cores haviam sido usadas pelos seus oponentes. Cada menção a esse fato é mais uma regada no cultivo do simbolismo.

Mas há um porém adicional de grande importância. O símbolo do PT é uma estrela vermelha, ou uma estrela branca sobre um fundo vermelho. Fica difícil dissociar o partido dessa cor, ou associá-lo ao verde e ao amarelo. Nas últimas eleições, os marketeiros do PT dançaram miúdo para tentar diminuir o vermelho sem descaracterizar o partido. ISSO não tem como esconder: pode fazer o que for, a cor do PT sempre será vermelha. Mas o PSDB, que durante anos foi o oponente principal do PT em eleições majoritárias, e que tem o azul e o amarelo como cores predominantes, nunca usou esse fato a seu favor, talvez por achar esse artifício baixo demais. Afinal, como sabemos, o PSDB é um partido de gentlemen. Coube ao bolsonarismo usar as cores nacionais como simbolismo sem pudor, confundindo partidarismo com patriotismo.

Eugênio Bucci quer uma fórmula mágica para recolher a pasta para dentro do tubo. Ele mesmo não avança em nenhuma “solução” ou “estratégia”. Sinto dizer que, enquanto for o PT a liderar esse esforço, podem gastar muitos R$ 3 milhões, que isso não vai acontecer.

Os direitos do Google

Eugênio Bucci, claro, é mais um, ao lado de Flávio Dino e Alexandre de Moraes, que acha que o Google não deveria ter voz no debate nacional em temas que lhe afetam. Por que? Bucci lista dois motivos: porque o Google não é brasileiro e porque o Google é um “monopolista bilionário”.

Comecemos com o primeiro ponto. Nesse caso, a Anfavea, por exemplo, formada apenas por montadoras estrangeiras, deveria se abster de opinar em leis que lhe afetam. Sabemos que não é bem assim que a banda toca. O fato é que multinacionais, no momento que estão operando em território brasileiro, prestando serviços a brasileiros e empregando funcionários brasileiros, deveriam ter sim o direito de opinar sobre legislações que lhes afetam. Trata-se, aqui, de uma xenofobia oportunista: traga o seu dinheiro mas fique quieto.

O segundo ponto é a falácia do “poder econômico”. O Google, por acaso, usou os seus bilhões para comprar deputados? Se não, qual exatamente a relação entre os bilhões do Google e sua opinião, colocada em sua página como o seu ponto de vista sobre o assunto? Dizem que o Google privilegiou resultados de busca favoráveis à sua posição em sua primeira página, e isso configuraria abuso de poder econômico. Verdade, se isso for provado. Mas Dino, Moraes e Bucci se insurgiram foi contra o tal link com opinião na capa do Google, é sobre isso que estamos falando. E isso, desculpem-me esses democratas de fachada, faz parte do debate público.

Na verdade, Bucci está exercendo o seu “jus esperneandi”, pois o projeto, da forma como está, não tem votos no Parlamento. Acusar o Google de “conduzir” o debate é infantilizar a opinião pública e os deputados, que não conseguiriam pensar por conta própria e estariam dispostos a assumir a opinião de quem tem mais “poder”, pelo simples fato de ter mais poder. Esse debate sobre o PL das fake news virou praça de guerra justamente porque quiseram enfiá-lo goela abaixo como se fosse uma luta entre o bem de quem “está preocupado com as crianças” contra o mal representado por multinacionais bilionárias e bolsonaristas golpistas. Com esse tipo de simplificação, uma opinião contrária como a do Google realmente incomoda àqueles para quem democracia é somente mais uma palavra bonita.

A luta entre fascistas e comunistas imaginários

Eugênio Bucci é um dos principais representantes de uma esquerda autoritária que se quer ver muito democrática. Em artigo de hoje, o professor da ECA-USP exige do jornalismo uma espécie de investigação sobre o fenômeno bolsonarista, no dizer dele, um “regurgitar do arbítrio”.

Bucci é daqueles que veem fascistas debaixo da cama. É só o outro lado da moeda dos que veem comunistas debaixo da cama. Haja cama para esconder tanta gente mal intencionada.

Mas esse não é o principal problema do colunista, cada um com seus delírios. O problema principal está destacado no trecho acima: Bucci convive mal com a escolha política de seus compatriotas. Para ele, “há algo por trás” das pessoas que escolheram livremente votar no candidato que se opôs ao seu preferido. Não exerceram a sua liberdade, foram coagidos por uma espécie de grande complô, financiado por não se sabe que ligações internacionais. Tive, inclusive, que pesquisar o que significa a palavra “janotismo”, que o professor usa para qualificar a simpatia da Faria Lima por Bolsonaro. Significa apenas “preocupação exagerada em vestir-se na moda”, e fiquei pensando qual a relação disso com o fascismo.

Dentro da margem de erro dos institutos, houve um empate técnico nas eleições. Lula é o presidente porque alguém precisa ganhar, nem que seja por um voto, mas o fato é que praticamente metade do país preferia o outro candidato. Bucci exige que o jornalismo faça uma investigação sobre essa metade do país, pois não lhe cabe na cabeça que as pessoas possam escolher Bolsonaro e não Lula. Esta é praticamente a definição de uma mente autoritária, que não admite que outros possam ter opiniões diferentes e exerçam seus direitos políticos de acordo com suas próprias premissas e experiências de vida. O mundo da mente autoritária é sempre dividido entre “nós e eles”, sendo que “eles” são ou mal-intencionados ou incapazes de tomar decisões esclarecidas, sendo apenas massa de manobra.

Bolsonaro não é exemplo de democrata, assim como Lula também não o é. Vivemos no Brasil, onde não conseguimos enterrar 1964 e olhar para frente, nessa espécie de “guerra fria” interminável entre fascistas e comunistas imaginários. Enquanto isso, o Centrão, a tradução mais literal do verdadeiro espírito brasileiro, deita e rola.

Lavagem de biografia

E continua o esforço de lavagem da biografia de Fernando Haddad, de forma a torná-lo palatável aos agentes econômicos. Hoje, temos um Haddad que criticou os dogmas da esquerda e condenou o sistema soviético. Como se isso, por si só, o transformasse no mais liberal dos petistas.

Vamos lá. Não posso opinar sobre sua monografia pois não consegui achá-la. O máximo que consegui foi o resumo na base de dados da USP, em que o futuro ministro da Fazenda afirma algo que nos é familiar: o sistema soviético não era socialista, era só uma forma primitiva de acumulação de capital. Só faltou usar o termo “real” (o sistema soviético não era o socialismo real).

Sabemos o que isso significa. O verdadeiro socialismo nunca foi implementado de verdade. Se tivesse sido implementado como manda o figurino, estaríamos no paraíso. Mas o sistema soviético desvirtuou o conceito e se perdeu.

Criticar o despotismo stalinista é bacana, mas chegou com 34 anos de atraso: Khrushchov já havia feito isso em 1956. Mas, antes tarde do que nunca. Eugênio Bucci, meu guru para assuntos das esquerdas, afirma que a tese de Haddad foi corajosa, porque “desafiou os dogmas da esquerda”.

Só se for da esquerda tupiniquim, que estava, para não variar, algumas décadas atrasadas em relação ao que acontecia no mundo.

Haddad escreveu a sua tese em 1990, depois, portanto, da queda do muro de Berlim. Naquele momento, apontar para os problemas do sistema soviético era fácil, e até necessário para livrar a cara do socialismo real. Isso, obviamente, não torna Haddad um champion da economia capitalista, como quer sugerir reportagens como as de hoje. Suas ideias sobre como funciona a economia continuam tão retrógradas quanto as de Dilma Rousseff e outros economistas do PT.

A nossa esperança é que Lula cumpra a sua promessa e seja ele mesmo o responsável pela condução da política econômica. A que ponto chegamos.

Garcia não é o PSDB


Trecho do editorial do Estadão

De todos os apoios políticos recebidos por Bolsonaro até o momento, provavelmente o mais inesperado e doído para os petistas tenha sido o de Rodrigo Garcia. Todas as cabeças iluminadas do partido, entre políticos e intelectuais, já haviam pulado para o colo de Lula antes mesmo do 1o turno, explícita ou implicitamente. FHC puxou a fila, com aquele aperto de mão infame com Lula vários meses antes das eleições. Ali foi o momento em que o médico finalmente fechou os olhos ao moribundo, encerrando a longa agonia do partido. Os resultados dessas eleições são apenas o fétido odor de um cadáver insepulto.

A adesão de Rodrigo Garcia ao bolsonarismo pode ser tudo, menos surpreendente. Garcia entrou para o partido, pelas mãos de João Doria, apenas em 2021, depois de ter construído toda a sua carreira política no Democratas, hoje também um partido extinto, engolido pelo que restou do PSL não bolsonarista, formando o União Brasil. O plano de Doria era lançar-se à presidência e deixar em seu lugar o vice. Para tanto, se fazia necessária a migração para o PSDB, pois essas eram as 4 letras mágicas que dominavam a política paulista há quase 30 anos. Tratou-se de uma migração por conveniência, não por convicção, como é regra na política brasileira.

Doria não era desse PSDB chorado por Bucci ou pelo editorial do Estadão. Apesar de ter uma longa história no partido, Doria não pertencia a essa intelectualidade prima-irmã do petismo. Por isso, não teve escrúpulo de abraçar-se com Bolsonaro em 2018, para salvar uma eleição quase perdida. Depois, o seu anti-bolsonarismo de ocasião não passou despercebido do eleitorado e do mundo político (que age de acordo com suas bases), soando como uma manobra artificial (mais uma) mais do que convicção. O final da história conhecemos.

Garcia, portanto, foi o implante de Doria no PSDB em uma cirurgia delicada com vistas ao seu projeto político. O (ainda) governador de São Paulo tem sua base política no interior do estado, que votou majoritariamente em Bolsonaro. É realmente muita ingenuidade achar que um político vai se posicionar contra o sentimento de sua base de eleitores em nome da “pureza ideológica” de um partido morto e a que sequer pertence de coração.

Fiquem portanto tranquilos Eugênio Bucci e o editorial do Estadão. O verdadeiro PSDB (FHC, Serra, Alckmin, José Aníbal, Tasso, Malan, Arida, etc) está apoiando Lula contra “aquele-que-não-se-pode-nomear”, honrando, assim, as cores do partido. Garcia é um forasteiro, não representa o PSDB. O fato de ser um dos poucos quadros do partido com alguma perspectiva de futuro político é mero detalhe.

O pop-lulismo

Eugênio Bucci, em seu artigo de hoje, celebra as “adesões espontâneas” à candidatura Lula. ”Dancinhas no Tik Tok” e “charges no WhatsApp” estariam surgindo espontaneamente, em um movimento mais cultural do que político. Seria o “pop lulismo”, um movimento pop que transcende a esfera política.

Pelo visto, o petismo que come de garfo e faca “descobriu” a potência das redes sociais, e está encantado. Exatamente o mesmo fenômeno ocorreu em 2018 em torno de Bolsonaro. No entanto, na época, a campanha do atual presidente foi acusada de manipular as redes sociais com robôs e de ter uma central de produção de conteúdo. Quem não se lembra da “denúncia” de financiamento de disparos de WhatsApp por parte de “empresários” às vésperas da eleição? Hoje não, hoje é tudo ”espontâneo”. É o “pop lulismo”. Lula seria “pop” e, portanto, as adesões à sua candidatura seguiriam a lógica da adesão a grandes ídolos.

Bucci não está errado. De fato, uma parte relevante de nossa decisão de voto tem mais a ver com emoção do que com a razão, e líderes populares atraem votos. Mas o professor da ECA-USP trai o seu babaovismo ao negar a Bolsonaro o mesmo caráter. Lula seria o único “líder pop” do Brasil, e a sua eleição seria uma espécie de reconhecimento a esse caráter quase divino do ex-presidiário.

O articulista termina com uma nota de rodapé, comentando o jogo de palavras entre “pop lulismo” e “populismo”. Afirma que essa identificação não é acidental, mas ressalva que há dois tipos de populismo: o do mal, encarnado por Bolsonaro, e o do bem, encarnado por Lula. Daí a defender uma “ditadura do bem” é um pulinho. É dessa cepa que é feita a intelectualidade petista.

Mais um mecanismo de concentração de renda

Gosto de ler os artigos de Eugênio Bucci. Normalmente saio deles com os argumentos para defender as ideias justo opostas às defendidas pelo professor da ECA-USP. Não foi diferente desta vez. O assunto de hoje é a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, especificamente as estaduais paulistas, onde ele ganha parte do seu sustento.

Para surpresa de zero pessoas, o articulista defende a gratuidade total dessas universidades. Fui ler o artigo de coração aberto, com o objetivo sincero de garimpar pelo menos um argumento que fizesse sentido. Saí, como é usual nos artigos de Bucci, de mãos vazias. Vejamos.

O primeiro argumento é conhecido: a universidade, com as leis de cotas, está deixando de ser elitista. Segundo Bucci, nada menos que 51,7% dos alunos matriculados neste ano vieram de escolas públicas. Ora, compreendo que o articulista, sendo de humanas, possa ter alguma dificuldade em fazer essa conta, mas isso significa que 48,3% dos alunos ainda vêm de escolas particulares. Portanto, uma parcela relevante do corpo discente seria elegível, segundo o critério do próprio articulista, a pagar alguma mensalidade.

O segundo argumento é mais sociológico. Refere-se a uma teórica “segregação” entre alunos pagantes e não pagantes dentro da universidade. Em primeiro lugar, essa potencial segregação é somente uma teoria, carece de comprovação empírica (e não faltam exemplos de faculdades privadas com bolsas integrais, que poderiam ser usadas como “campo de prova” da teoria). Em segundo lugar, o argumento da segregação poderia ser usado contra o próprio sistema de cotas. Afinal, há, hoje, duas portas de entrada na universidade pública, uma para alunos de escolas públicas e outra para alunos de escolas privadas. A “segregação” já está posta, e se vale para o pagamento de mensalidades, vale também para as cotas.

O terceiro argumento, na verdade, já é, em si, um contra-argumento. O articulista menciona que universidades públicas podem sim cobrar mensalidades, e cita exemplos dos EUA. Obrigado, Bucci, por nos lembrar disso.

O quarto argumento está no objetivo da cobrança. Segundo o articulista, cobrar mensalidades ”não vai resolver nada”. O custo da pesquisa acadêmica é tão alto, que a cobrança de mensalidades se torna irrelevante. Por isso, segundo Bucci, as “escolas mais renomadas” estão caminhando para um modelo “tuition free” e buscando outras fontes de receitas. Este é o típico argumento “tudo ou nada”: se as mensalidades não podem pagar tudo, então que não se cobre nada. Trata-se de um argumento falacioso, que ignora como os problemas são resolvidos na vida real. Não existem “balas de prata”, o que existe são pequenos progressos em direção à solução, e a cobrança de mensalidades de quem pode pagar é só um deles.

Engatando no argumento anterior, Bucci cita o exemplo do MIT, que estaria caminhando, em algumas de suas faculdades, para o modelo de ”tuition free”.

Bem, existe um detalhe nada irrelevante aqui: a fonte principal de recursos do MIT é o seu endowment de 27 bilhões de dólares. Considerando uma retirada de 3% ao ano, que é uma estimativa conservadora para o rendimento real estimado de longo prazo nos EUA, temos cerca de 800 milhões de dólares por ano para sustento da universidade. Isso significa mais de 4 bilhões de reais ao câmbio de hoje. Para comparação, o orçamento anual da USP é de 7,5 bilhões de reais. Portanto, o funding para bolsas é fundamentalmente privado, não público, ainda que possa haver fundos públicos para financiar pesquisas específicas. Portanto, usar o MIT como exemplo de como a USP deveria continuar sendo gratuita para todos com funding público só pode ser desinformação ou má-fé.

Todos esses argumentos servem para esconder a iniquidade da gratuidade universal. Bucci fala como se o funding para manter a universidade fosse uma espécie de dádiva divina. Não. O “endowment” das universidades públicas é formado por “doações compulsórias”, também conhecidas como impostos. Funciona assim: toda vez que um pobre compra um quilo de arroz no supermercado do bairro, uma parte desse dinheiro vai para o “endowment” que paga 100% dos tuitions de alunos que fizeram escolas particulares e que poderiam pagar pela sua educação superior. Este é mais um entre tantos mecanismos de concentração de renda no país. Que seja defendido com unhas e dentes por campeões morais como Eugênio Bucci, para quem a renda a ser distribuída é sempre a dos outros, é só mais um sinal de que a agenda de redistribuição de renda no país tem um longo caminho a percorrer.

Defesa estética da democracia

Ler Eugênio Bucci tem uma utilidade: entrar na mente da esquerda brasileira munido de GPS, e não às escuras e no meio do tiroteio que caracteriza as palavras de ordem e os discursos políticos. Podemos, assim, ter uma ideia mais clara de quais são os valores que levam alguém a votar até em Lula para tirar Bolsonaro do poder.

A tese do artigo de hoje é que o cidadão leitor de jornal (os “detentores do poder”) dão de ombros para os sistemáticos ataques à democracia perpetrados pelo governo Bolsonaro, de modo a evitar uma suposta “volta da corrupção” em um novo governo do PT. Estaria, assim, a imprensa fazendo papel de boba (daí o título do artigo), revelando coisas que os “detentores do poder” já sabem e com que pouco se importam.

Eugênio Bucci nunca me decepciona, e dessa vez não seria diferente. Sua análise peca em três dimensões: factual, moral e conceitual.

Na dimensão factual, a mais saliente e risível, Bucci afirma que não há que se ter medo de uma “volta da corrupção” porque “aquelas condutas criminosas foram julgadas e condenadas e muitos foram parar na cadeia”. Segundo essa narrativa, Lula seria uma espécie de ilusão de ótica, pois continua preso pela propina que recebeu na forma do triplex e da reforma do sítio do seu amigo.

O erro moral do articulista é considerar que a sua própria escala de valores é universal, e que as pessoas, conhecendo essa escala de valores e não a seguindo, não passam de seres cínicos abjetos. O ponto é que “corrupção” e “democracia”, os valores abordados no artigo, são apenas duas das dimensões que importam para escolher um candidato. “Economia” e “valores morais” são outras dimensões possíveis. Há pessoas, por exemplo, que não votam de jeito nenhum em um candidato que defenda que o aborto seja uma questão de “saúde pública”, assim como há pessoas que votam no primeiro candidato que lhes prometa uma cesta básica. Para essas pessoas, “democracia” e “corrupção” passam longe de suas principais preocupações, sem que se tornem, necessariamente, seres moralmente reprováveis.

Mas Eugênio Bucci escreve sobre e para os “detentores do poder”. E, para estes, “democracia” deveria ser um valor inegociável, no que tendo a concordar. Afinal, sem uma democracia plena, Bucci não poderia escrever o que escreveu, nem eu poderia estar escrevendo o que estou escrevendo. O problema está no conceito que cada um tem de democracia, o que vai influenciar o modo como analisa a realidade à sua volta. Este é o terceiro erro do artigo.

O articulista acusa o governo Bolsonaro da maior das corrupções: o aparelhamento do Estado e a sabotagem das instituições democráticas. Ele não nos fornece exemplos concretos, mas podemos imaginar o que vai em sua mente: pastores pedindo propina no MEC, ministério da saúde sabotando a vacinação, ministério do meio-ambiente queimando a Amazônia (esse exemplo ele deu), emendas secretas e por aí vai. Tudo isso pode ser muito grave, não vou aqui entrar no mérito. Meu ponto é outro.

Bucci realmente considera o governo do PT superior ao governo Bolsonaro em matéria de respeito às instituições democráticas. Pode parecer ilógico, mas não surpreendente. Afinal, o próprio Lula afirmou que a Venezuela de Chavez sofria de “excesso de democracia”. E a esquerda, até hoje, baba ovo para o regime liberticida de Cuba.

A questão central é que a anti-democracia de Bolsonaro só foi possível porque, antes, tivemos a anti-democracia do PT. Bolsonaro é cria do PT, um partido que já deveria ter sido extinto em 2005, quando se descobriu que pagou fornecedores com contas offshore. Aqueles que viram o rosto diante da feiúra do governo Bolsonaro são os mesmos que tinham reparos apenas protocolares aos “mal-feitos” do PT. Bolsonaro é somente o verso da tapeçaria da corrupção dos valores democráticos que o PT teceu com tanto esmero ao longo de seus anos no poder.

Eugênio Bucci seria muito mais crível em suas críticas aos “detentores do poder” se reconhecesse que o PT é tão deletério à democracia quanto Bolsonaro. No entanto, Bucci quer apenas virar o tapete novamente para cima, para que a destruição da democracia tenha, ao menos, uma cara elegante. A sua defesa dos valores democráticos é apenas estética.