Realidade paralela

Na campanha eleitoral de 2014, no famoso debate entre Armínio Fraga e Guido Mantega, o então ministro da Fazenda jantou o ex-banqueiro central de FHC e ex-futuro ministro da Fazenda do então candidato Aécio Neves. Armínio era tecnicamente muito mais preparado, suas ideias faziam muito mais sentido, mas, mesmo assim, Mantega ganhou o debate de goleada. Como? Criando a sua própria realidade e debatendo sobre ela. Em determinados momentos, Armínio ficava sem nem saber o que responder, tão absurda era a colocação. A narrativa tomava o lugar da realidade.

Mais ou menos assim como Haddad faz nessa entrevista ao site amigo Brasil 247.

A coisa é tão absurda, que é difícil até começar a pensar em um contra-argumento. Segundo o ministro, o mercado estava até agora distraído, observando as borboletas e as flores silvestres, enquanto o governo Bolsonaro destruía a economia do país. Bastou que o PT, em diligente trabalho, mostrasse o tamanho da herança maldita, para que o mercado corresse desesperado para a porta de saída.

Vai ficando claro porque Lula ungiu Haddad como seu potencial sucessor. Aparentemente, é um dos mais refinados inventores de realidades paralelas do partido, uma virtude muito apreciada pelos companheiros.

O único pequeno problema é que o mercado vive no mundo real, não no mundo paralelo criado pelo PT. Espero, sinceramente, para o bem de todos nós, que Haddad não seja levado a acreditar na sua própria narrativa.

PS.: Sim, o governo Bolsonaro gastou além do teto de gastos em várias ocasiões, e as taxas de juros e o câmbio refletiram esses gastos já ANTES das eleições. O que vem acontecendo no mercado APÓS as eleições, no entanto, é de exclusiva lavra do governo que ora se inicia. Cada qual com seus problemas.

Suco de PT

Tem um trecho da entrevista do Haddad que eu gostaria de comentar à parte, pois é o indicativo de muitas coisas. Trata-se de seu comentário a respeito da privatização da Eletrobras.

A jornalista Miriam Leitão pergunta se os “jabutis” que foram colocados no projeto de privatização da empresa seriam revistos. Haddad não responde à pergunta. Afirma apenas que “foi um erro” privatizar com os jabutis. Isso é óbvio. Claro que teria sido melhor privatizar sem os jabutis. Mas não é isso o que ele pensa. A continuação da resposta deixa claro que, para o futuro ministro da Fazenda, teria sido melhor não privatizar de forma alguma. Aliás, essa resposta vale por um tratado de como foi e de como será um novo governo do PT.

Haddad começa dizendo que a Eletrobras ”foi vendida por R$ 30 bilhões”. Está errado. Quem pagou R$ 26,6 bilhões (não R$ 30 bilhões) para o Tesouro foi a própria Eletrobras, em um processo chamado de “descotização”. Rapidamente: em 2013, a Eletrobras foi obrigada, pelo então governo Dilma, a aderir aos termos da MP 579, que determinava cotas de fornecimento de energia a preços mais baixos do que aqueles praticados no mercado livre. Foi dessa maneira que Dilma “conseguiu” reduzir os preços da energia elétrica naquele ano. O que a Eletrobras fez agora foi pagar uma outorga para a União, de modo a readquirir o direito de vender a energia de suas usinas sem estar submetida a cotas. Digamos que esse valor tenha sido o “custo PT” para que a empresa pudesse ser privatizada. Portanto, não há que se falar em “preço de venda” neste caso. A venda se deu por uma oferta adicional de ações no mercado, não acompanhada pela União, de modo que esta deixou de ser majoritária. A União não vendeu uma mísera ação, continua sendo dona do mesmo número de ações que tinha antes da privatização. Mesmo assim, recebeu R$ 26,6 bilhões da outorga paga pela empresa. Que Haddad, o futuro ministro da Fazenda, faça esse tipo de confusão é, no mínimo, preocupante.

Em segundo lugar, Haddad afirma que o governo usou esse dinheiro para “comprar votos”. De quem? Dos mais pobres? Quer dizer que, quando o governo do PT faz programa social é por boniteza, e quando outro governo faz é por safadeza?

Por fim, a cereja que vale pelo bolo todo: “dói na alma” do futuro ministro ver uma empresa construída “por muitas gerações” ser vendida. Ele diz que “sabe o trabalho” que isso deu.

Sabe o quê, Haddad? Sabe o quê???

Haddad, você certamente sabe que o governo do PT pegou a Eletrobras com um patrimônio líquido de R$ 67 bi e valor de mercado de R$ 13 bi, e devolveu, em 2015, com um patrimônio líquido de R$ 42 bi e valor de mercado de R$ 9 bi. O prejuízo acumulado da empresa construída “por muitas gerações” nos 13 anos de governo do PT foi de R$ 13 bilhões, um bilhão para cada ano desse desgoverno. Isso sim, dói na alma. Será que foi a esse “trabalho” que Haddad se referia? Esse papinho mole de “trabalho de gerações para construir a empresa” vai bem para dirigente de grêmio estudantil. Na boca do futuro ministro da Fazenda, nos faz rir. De nervoso.

Temos aí, em apenas dois parágrafos, um suco de PT: 1) desconhecimento técnico, 2) mistificação e demonização dos adversários e 3) amor platônico por estatais quebradas pelos governos do PT. Sim, esse é o “mais tucano dos petistas”. Imagine o resto.

PS: hoje a empresa tem patrimônio líquido de R$ 111 bilhões e valor de mercado de R$ 98 bilhões. Ou seja, patrimônio líquido quase 3 vezes maior e valor de mercado mais de 10 vezes maior do que tinha quando o PT deixou o governo.

A primeira entrevista de Haddad

Hoje, Fernando Haddad concede a sua primeira entrevista como futuro ministro da economia. A entrevistadora é Miriam Leitão, do Globo.

A entrevistadora é até dura em alguns momentos, cobrando pelos erros de condução de política econômica dos governos do PT. As respostas de Haddad se limitam ao que já sabemos: o governo Dilma errou ao não avaliar corretamente a mudança do cenário externo a partir de 2011. Tudo o que foi feito no governo Lula estava certo. Ok.

Mas, para quem gostaria de saber o que o futuro ministro pretende fazer, saiu frustrado. A manchete destaca a única fala ortodoxa de toda a entrevista, em que o futuro ministro fala em “cortar gastos” para “harmonizar as políticas fiscal e monetária”. Depois da aprovação de um pacote de gastos de R$ 150 bi além do teto, parece até piada. Mas ok.

Haddad afirmou que o déficit de R$220 bilhões, previsto no orçamento do ano que vem, não vai acontecer. Segundo ele, o governo vai apresentar medidas de cortes de desonerações e readequação de regras de benefícios (como o Auxílio Brasil) para reduzir despesas.

Com relação à sua equipe, disse que uma coisa é o que o sujeito escreve em um artigo acadêmico, outra bem diferente é implementar medidas no governo. Com isso, quis tirar o peso do curriculum de auxiliares como Galípolo e Guilherme Mello. Só faltou dizer “esqueçam o que escrevi”.

De resto, a entrevista foi uma coleção de invectivas contra o governo que sai (responsável pelo problema fiscal que enfrentamos, segundo ele) e de indefinições sobre o que será feito de concreto (até compreensível, dado que ele nem sentado na cadeira está).

Promessas de cortes de gastos é o que todo governo, sem exceção, faz em seu início. Lula, com suas falas, havia colocado esse ponto em dúvida, e Haddad tenta, nessa entrevista, passar a mensagem de que não é nada disso, vamos ser ortodoxos sim. O mercado está ressabiado e não vai comprar o discurso pelo seu valor de face a zero de jogo. Precisa ver ações concretas, até para pelo menos empatar um jogo que já começou perdendo, com a PEC da gastança. Haddad precisará fazer mais do que demonizar o governo que sai e prometer corte de gastos, se quiser “harmonizar políticas fiscal e monetária”. Vamos ver.

Anatomia da área econômica do governo Lula

A senadora Simone Tebet será a ministra do Planejamento. Estava aguardando a indicação para este posto para fazer uma análise mais abrangente do ministério de Lula na área econômica. Ao contrário do governo Bolsonaro, que tinha apenas Paulo Guedes como Posto Ipiranga da economia, Lula desmembrou o ministério da economia em quatro pastas. Este desmembramento, os nomes que foram escolhidos e a forma com que foram escolhidos nos dão algumas pistas sobre o que o novo governo pretende na área econômica.

Comecemos com o ministério da Fazenda. Vários nomes circularam no mercado, desde Henrique Meirelles (que entregou o seu curriculum ao presidente em evento de apoio à sua candidatura), passando por Pérsio Arida (que foi convidado por Alckmin para fazer parte da equipe de transição), até políticos, como Rui Costa, Wellington Dias ou Alexandre Padilha, que seriam tão pragmáticos quanto foi Antônio Palocci no primeiro mandato Lula. No final, Lula escolheu o seu mais fiel escudeiro, Fernando Haddad.

Não é a primeira vez que Haddad é escolhido por Lula. O ex-prefeito de São Paulo foi escalado para ser o candidato a presidente em 2018 no seu próprio lugar. Não é pouca coisa. Lula não o teria escolhido se não visse nele o seu sucessor. A Fazenda é o ministério que pode projetar Haddad, assim como aconteceu com FHC e poderia ter acontecido com Palocci, não tivesse caído em desgraça. Mas, fundamentalmente, Lula tem um aliado incondicional no ministério, um tarefeiro sem ambições políticas próprias. Fará o que o mestre mandar.

Ainda que a política econômica seja de Lula, não passou despercebida a equipe montada por Haddad no ministério, em que despontam Gabriel Galípolo e Guilherme Mello, dois expoentes do desenvolvimentismo. Para aqueles que poderiam esperar alguma moderação por parte do novo ministro, não são sinais encorajadores.

Passando para a Indústria e Comércio, a primeira pasta desmembrada da Economia, temos Geraldo Alckmin. Parece ser uma boa escolha, dado ter sido um governador, de modo geral, responsável. O problema, no entanto, foi o processo de nomeação. Antes de Alckmin, dois empresários foram convidados para o mesmo posto e não aceitaram, aparentemente por não concordarem com a direção geral da economia do novo governo. Além disso, teriam o BNDES debaixo de sua estrutura, mas com Mercadante como presidente. Certamente, seria só no papel. O vice-presidente sempre foi um coringa nesse ministério, e Lula resolveu usar essa carta, provavelmente receando ouvir outros “nãos”. A presença de Alckmin aqui, portanto, não significa nada.

O próximo ministério é o da Gestão, desmembrado do Planejamento. Para este novo ministério foi designada Esther Dweck, desenvolvimentista de quatro costados. Apesar de não estar em uma área diretamente ligada a políticas econômicas, sua presença na Esplanada pesa no prato dos heterodoxos, nesse suposto governo “frente ampla”.

Por fim, o Planejamento. Aqui rodaram nomes como o do ex-governador de Alagoas, Calheiros Filho, e o do “pai do Plano Real”, André Lara Resende. Calheiros seria uma espécie de pagamento pelo apoio incondicional de Renan pai a Lula, mas deve ter sido vetado por Arthur Lira durante as negociações da PEC da gastança. André Lara seria mais um heterodoxo na Esplanada, ao gosto de Lula, mas, por algum motivo, recusou o convite. A vaga sobrou para acomodar Simone Tebet, depois de ter sido preterida para os postos do ministério do Bolsa Família, que ficou com Wellington Dias, e do Meio Ambiente, que ficou com Marina Silva. Ou seja, o Planejamento serviu para a acomodação de uma aliada inconveniente.

Alguns podem ver a presença de Tebet na Esplanada como o único contraponto a políticas doidivanas (Alckmin não conta, quem vai mandar ali é o Mercadante). O problema é que Tebet não é, ela mesma, campeã de ortodoxia. No ranking dos políticos, que analisa os parlamentares de acordo com seus pendores liberais, a senadora tem pontuação mediana. Mas este não é o principal problema. A questão é que Tebet terá vida curta nesse ministério se começar a causar problemas para a, digamos, harmonia da equipe. Consta que Lula já não gostou de algumas críticas que a senadora teria feito às suas falas sobre disciplina fiscal. Imagine quando atos concretos forem realizados. Enfim, Simone Tebet é uma ministra improvisada em um ministério esvaziado, que terá pouco poder para contrabalançar a avalanche desenvolvimentista contratada.

Resumindo: das quatro pastas derivadas da Economia, duas estão nas mãos de heterodoxos convictos, uma está na mão de um coringa que vai ter o Mercadante como subordinado e uma serviu como prêmio de consolação para uma aliada, depois de o candidato heterodoxo preferido ter recusado o convite. A aposta agora é: desses quatro, quantos chegam ao final do mandato?

De onde menos se espera, é que não sai nada mesmo

O ministro da Fazenda anunciou a escalação do time que vai entrar em campo no dia 2 de janeiro. O torneio é difícil, mas os nomes escolhidos para as duas principais posições do time nos dão a esperança do título.

Para a secretaria de política econômica, foi escalado um meia cerebral, capaz de formular a estratégia em campo. Com um doutorado em economia pela Pennsylvania University, o indicado foi professor visitante na Stanford University e é professor na FGV. Com uma bagagem acadêmica respeitável, o craque tem tudo para não decepcionar.

Já para a secretaria do tesouro, responsável pela estratégia de rolagem da dívida pública, temos um engenheiro com doutorado em economia por Chicago e experiência de vários anos em postos no FMI e no Banco Central Europeu. São raras as equipes que podem contar com um volante tão refinado, que sai jogando tão bem quanto defende.

Com esses dois na retaguarda, o nosso ministro da Fazenda pode partir para o ataque com tranquilidade, fazendo o que sabe: negociar politicamente as medidas necessárias para levar à frente a política econômica do governo.

Animado? Pois é. Os curricula acima eram os de Marcos Lisboa e Joaquim Levy em 2003, quando foram indicados, respectivamente, como secretários de política econômica e do tesouro pelo então ministro da Fazenda, Antônio Palocci.

Vinte anos depois, alguns tinham a esperança de que “o mais tucano dos petistas” escalasse um time tão forte quanto foi o de 2003. A convocação anunciada ontem, no entanto, deve ter partido corações.

Guilherme Mello foi o escalado para a secretaria de política econômica. Há muito tempo na órbita de Lula, sua convocação já era caçapa cantada. Doutor em economia pela Unicamp e professor na mesma universidade, é desenvolvimentista-raiz.

Rogério Ceron, convocado para a posição de secretário do tesouro, foi secretário municipal de finanças na gestão Haddad na prefeitura de São Paulo. É auditor de carreira, e tem mestrado em economia, adivinha por qual universidade.

Com esses dois “craques” na retaguarda, o ministro da Fazenda poderá fazer o que não sabe fazer de melhor: articulação política. Talvez seja essa a nossa única esperança: a equipe é tão fraca, que talvez não consiga emplacar nenhum de seus grandiosos projetos, o que já será uma benção para o país. Mas essa é só uma esperança.

As reações a essas nomeações se dividem em três tipos: 1) aqueles que amaram, porque acreditam em um projeto desenvolvimentista para o país; 2) aqueles que não se surpreenderam, porque de onde você menos espera é que não sai nada mesmo e 3) aqueles que se surpreenderam, pois esperavam um Lula de 2003, cuja expressão máxima seria um Haddad ponderado e técnico. Está aí.

Eu me incluo no grupo 2. Aos amigos do grupo 3, a escolha é continuar se iludindo, ou juntar-se a um dos outros dois grupos.

Em busca dos sinais de amor

Tal qual o marido que busca desesperadamente sinais de que sua mulher ainda lhe é fiel, apesar de todas as evidências trazidas pelo detetive particular, o “mercado” ainda espera um “eu te amo” doce por parte de Fernando Haddad. Esse sinal de amor viria através da indicação de nomes “fiscalistas” para o segundo escalão do ministério.

Tenho uma má notícia para o “mercado”: o segundo escalão não garante absolutamente nada. Em 2003, Palocci escalou um dream team no ministério. Três anos depois de um relacionamento estável com o mercado, o governo Lula decidiu que estava na hora de pular o muro. O segundo escalão segurou a barra? Não, saíram todos.

Em 2019, Paulo Guedes montou um ministério com a sua cara. A lua de mel com o mercado foi tórrida, com a bolsa passando da marca histórica dos 100 mil pontos. No entanto, quando o próprio Guedes sucumbiu aos “fura-teto”, o segundo escalão pediu o chapéu e foi embora. Isso mostra que nem mesmo o “primeiro escalão” segura a bronca quando o chefão não quer. Aliás, foi repeteco do que aconteceu com Joaquim Levy no ministério da Fazenda de Dilma 2: um nome “fiscalista”, mesmo que seja no primeiro escalão, não segura um presidente que não está nem aí para o que pensa o mercado.

Haddad é Lula, Lula é Haddad, como dizia o slogan da campanha de 2018. Pelo menos neste caso, temos um primeiro escalão alinhado com o presidente, ao contrário das duplas Dilma/Levy e Bolsonaro/Guedes, de forma que fica mais difícil se auto-enganar. Mas marido apaixonado está sempre em busca de sinais de que sua mulher, afinal de contas, ainda o ama. Os técnicos do segundo escalão da Fazenda são agora a bola da vez.

Truque contábil

O trabalho de lavagem de reputação do novo ministro da Fazenda continua a todo vapor. Hoje, temos uma reportagem no Valor Econômico, cujo título e sub-título nos informam que Haddad reduziu significativamente a dívida do município de São Paulo mediante “renegociação”.

Sim, é verdade. Nos estertores do governo Dilma, em agosto de 2015, o então prefeito de São Paulo chegou a um acordo com a União, em que o indexador da dívida do município foi trocado retroativamente de IGP-DI + 9% ao ano por IPCA + 4% ao ano. Ou seja, a dívida diminuiu porque o município deu um “calote” na dívida, mas chama de outro jeito. A dívida não sumiu, foi absorvida pela União mediante uma mágica contábil.

A atual gestão municipal também conseguiu uma redução significativa da dívida. Para isso, entregou o Campo de Marte para a União. Ou seja, houve o pagamento da dívida mediante troca de ativos. Pode-se discutir o valuation do Campo de Marte, mas estamos falando de um pagamento real, não de um truque contábil.

Apesar do esforço do repórter em mostrar um Haddad responsável fiscalmente, o ex-prefeito, como ministro da Fazenda, não pode propor a “troca de indexador” para os credores da dívida federal. A diminuição da dívida só será possível se houver pagamento real, não contábil. Vamos ver qual será o coelho que o novo ministro tirará da cartola.

Ministro fake

Fernando Haddad, em sua primeiríssima fala como futuro ministro da Fazenda, já mostrou a que veio: chamou de “fake news” a fama de “gastador” que teria. Como “prova”, vem dizendo que foi o primeiro prefeito a obter grau de investimento no Brasil.

A agência de checagem Gutercheck, aquela que mergulha fundo debaixo da superfície dos fatos, foi checar a informação.

Para começar, vamos aos fatos, aqueles que as agências comuns normalmente checam. Não, Fernando Haddad não foi o primeiro prefeito a conseguir grau de investimento. A cidade do Rio de Janeiro já contava com grau de investimento desde, pelo menos, 2014, quando Haddad conquistou o seu grau de investimento, em novembro de 2015. Portanto, essa afirmação do ex-prefeito não passaria pelo crivo nem das agências que se atém à superfície dos fatos.

Mas este está longe de ser o principal problema da fala do futuro ministro. Muito longe. Temos aqui, para não variar, uma mistura de mistificação com desonestidade intelectual. Vejamos.

O município de São Paulo obteve o seu rating da agência Fitch em novembro de 2015. Naquele momento, o rating soberano do Brasil pela mesma agência era BBB-, rebaixado de BBB no mês anterior, mas, ainda assim, grau de investimento. O rating atribuído à cidade de São Paulo, assim como ao município do Rio de Janeiro, foi exatamente igual ao rating soberano, BBB-, grau de investimento. À época, este era o rating também dos estados de São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Ou seja, o rating desses entes subnacionais era (e sempre foram) o mesmo do Brasil. Isso acontece porque, no final do dia, os entes subnacionais “não quebram”, são sempre ajudados pela União. Portanto, não há mérito algum, por parte do prefeito, no fato de a cidade de São Paulo ter recebido “grau de investimento”.

Em dezembro de 2015, apenas um mês depois de ter “recebido” o investment grade, a cidade de São Paulo foi rebaixada para BB+ (grau especulativo), juntamente com o rating soberano brasileiro. Seria interessante confrontar o futuro ministro com esse fato. Não foi culpa dele, assim como não havia sido mérito dele anteriormente. Mas, para manter a coerência do discurso, Haddad precisaria explicar esse rebaixamento…

Fernando Haddad pode ter e reivindicar o perfil que quiser. O seu perfil importa tanto quanto o meu. O fato é que faz parte de um futuro governo que está procurando garantir R$ 200 bilhões além teto de gastos para gastar nos próximos dois anos, no mínimo. O “perfil gastador” é de Lula, que, nas palavras do próprio, será o verdadeiro responsável pela política econômica. Haddad será um fantoche obediente, pronto a chamar o azul de amarelo se for preciso para justificar as decisões do chefe. Usando seus próprios termos, Fernando Haddad será um ministro fake.

O pior emprego do mundo

Assim o jornalista Thomas Traumman denomina o cargo de Ministro da Fazenda, em seu livro em que entrevista uma série de ex-ministros da Fazenda. Talvez somente o técnico da seleção brasileira tenha um emprego pior, ainda que, neste caso, receba remuneração muitas vezes superior, o que certamente compensa a pressão.

Tente se lembrar de alguns nomes de ministros do governo Sarney. Quase com certeza um dos poucos lembrados será o de Dilson Funaro, responsável pelo primeiro Plano Cruzado, ou o de Bresser Pereira, que emprestou seu nome para um dos planos de estabilização. Tente lembrar de um nome do ministério de Collor. Provavelmente, o único nome que lhe vira à mente será o de Zélia Cardoso de Mello, responsável pelo confisco. Nos governos mais recentes, de Lula para cá, alguns ex-ministros certamente serão lembrados. Mas, com certeza, Palocci e Guido Mantega estarão sempre nessas listas de ministros “inesquecíveis”. Ministro da Educação, a prioridade número 1 do Brasil? Ministro da Saúde? Ministro da Agricultura? Da Justiça? Não, estes se perderam nas brumas da história.

Há um debate acalorado sobre a prevalência da agenda social sobre a agenda fiscal, ou vice-versa. Por mais que se grite que a agenda social deve ser a prioridade (e isso vem desde o “tudo pelo social” de Sarney), é o ministro da Fazenda o grande protagonista da esplanada dos ministérios. E isso acontece, paradoxalmente, justamente porque a agenda fiscal é, invariavelmente, colocada em segundo plano. Como dinheiro não leva desaforo pra casa, o Brasil é um país em eterna crise financeira, fazendo do ministro da Fazenda o ponto focal da insatisfação nacional. Em casa onde falta pão…

Assim como não há contradição entre as fundações e o acabamento de um edifício, não deveria haver contradição entre o fiscal e as necessidades sociais. Não se constrói um edifício sem fundações, e as fundações sem o edifício são inúteis. O ministro da Fazenda, no Brasil, é chamado a manter em pé o edifício sem que se tenham feito fundações adequadas. Dedica-se, então, a colocar escoras que mal e mal conseguem manter o edifício em pé, até que um vento mais forte ou um terremoto derrube tudo. E a culpa, de quem é? Do titular do pior emprego do mundo.

Fernando Haddad será o nosso próximo ministro da Fazenda. Como disse Henrique Meirelles, boa sorte para nós todos.

Lavagem de biografia

E continua o esforço de lavagem da biografia de Fernando Haddad, de forma a torná-lo palatável aos agentes econômicos. Hoje, temos um Haddad que criticou os dogmas da esquerda e condenou o sistema soviético. Como se isso, por si só, o transformasse no mais liberal dos petistas.

Vamos lá. Não posso opinar sobre sua monografia pois não consegui achá-la. O máximo que consegui foi o resumo na base de dados da USP, em que o futuro ministro da Fazenda afirma algo que nos é familiar: o sistema soviético não era socialista, era só uma forma primitiva de acumulação de capital. Só faltou usar o termo “real” (o sistema soviético não era o socialismo real).

Sabemos o que isso significa. O verdadeiro socialismo nunca foi implementado de verdade. Se tivesse sido implementado como manda o figurino, estaríamos no paraíso. Mas o sistema soviético desvirtuou o conceito e se perdeu.

Criticar o despotismo stalinista é bacana, mas chegou com 34 anos de atraso: Khrushchov já havia feito isso em 1956. Mas, antes tarde do que nunca. Eugênio Bucci, meu guru para assuntos das esquerdas, afirma que a tese de Haddad foi corajosa, porque “desafiou os dogmas da esquerda”.

Só se for da esquerda tupiniquim, que estava, para não variar, algumas décadas atrasadas em relação ao que acontecia no mundo.

Haddad escreveu a sua tese em 1990, depois, portanto, da queda do muro de Berlim. Naquele momento, apontar para os problemas do sistema soviético era fácil, e até necessário para livrar a cara do socialismo real. Isso, obviamente, não torna Haddad um champion da economia capitalista, como quer sugerir reportagens como as de hoje. Suas ideias sobre como funciona a economia continuam tão retrógradas quanto as de Dilma Rousseff e outros economistas do PT.

A nossa esperança é que Lula cumpra a sua promessa e seja ele mesmo o responsável pela condução da política econômica. A que ponto chegamos.