Viciados no conforto dos combustíveis fósseis

O biólogo Fernando Reinach publica hoje um interessante artigo em sua coluna, descrevendo o processo de liberação e absorção de gás carbônico (o gás do “efeito estufa”) nos mares. Em resumo, nos primeiros 200 metros de profundidade ocorre fotossíntese, sequestrando gás carbônico da atmosfera. Por outro lado, os seres vivos que habitam essa faixa devolvem gás carbônico para a atmosfera, mantendo um certo equilíbrio. No entanto, a conta, ao que parece, não é soma zero. Uma parte desses seres vivos, quando morrem, ao invés de liberarem gás carbônico, são arrastados para as profundezas dos oceanos. O artigo de Reinach comenta um trabalho em que se procurou medir quanto dessa matéria morta está nas profundezas, o que nos daria uma ideia do saldo líquido de gás carbônico que é sequestrado da atmosfera.

Ou seja, e essa é a conclusão do biólogo, “pouco sabemos sobre os processos que regulam a quantidade de gás carbônico na atmosfera”. Reinach, inclusive, reconhece que houve ciclos anteriores à Revolução Industrial (e mesmo à existência do Homem sobre a Terra) de aumento dos níveis de gás carbônico na atmosfera. Mas, por via das dúvidas, recomenda o biólogo, o melhor é “descontinuar” o uso de combustíveis fósseis.

No gráfico abaixo, podemos observar que fontes fósseis representam nada menos que 82% da matriz energética global.

O que Reinach propõe é “descontinuar” simplesmente 4/5 das fontes de energia do planeta. Digamos, por hipótese, que dominássemos todo o conhecimento de como o gás carbônico se acumula na atmosfera, e tivéssemos 100% de certeza de que a queima de combustíveis fósseis fosse a única fonte de gás de efeito estufa adicional. Mesmo assim, como se abriria mão de 4/5 da energia gerada no planeta? Fico imaginando como Reinach poderia escrever este artigo confortavelmente instalado em seu apartamento com ar-condicionado, bebericando uma boa taça de vinho produzido e trazido até ele com uma pegada de carbono fenomenal.

Não, “descontinuar” o uso de combustíveis fósseis não estará sendo possível, senhor. Não porque alguém lucre com isso, mas porque todos nós, inclusive o articulista, estamos viciados em um mundo confortável, somente possível com a oferta de muita energia barata e de fornecimento seguro.

Quando o cientista faz política

Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.

No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.

Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.

O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.

Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.

Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.

O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.

1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?

2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.

3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.

4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?

Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.

Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.

PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.

Os fatos começam a jogar contra

Hoje é dia 15/12, data que o governador João Doria havia prometido divulgar e encaminhar para a Anvisa os dados de eficácia da Coronavac. Ontem foi adiado para 23/12, com a desculpa de que já haviam atingido o número mínimo de pacientes infectados para encaminhar não o pedido de uso emergencial, mas o pedido definitivo.

Fernando Reinach coloca o dedo na ferida: se tem os dados, por que não divulgá-los agora? Por que esperar a burocracia do envio para os órgãos reguladores? Há alguma lei ou procedimento que impeça a divulgação dos resultados antes do envio do pedido de registro? A Astra Zeneca publicou os resultados de seus estudos fase 3 (cheio de problemas) e ainda não enviou para registro.

O ser humano tem a tendência de sempre esperar pelo melhor, e engolimos as explicações do governador porque queremos acreditar que teremos uma vacina logo. A hipótese de a Coronavac não funcionar é impensável, pois ficaríamos sem vacinas no 1o semestre. Por isso, nos agarramos à esperança. Mas que é estranho, sem dúvida é estranho.

Há dois dias escrevi um post sobre o limite da política ou da politicagem: os fatos. Por enquanto, Doria está ainda no campo da política (ou politicagem). Os fatos começam a jogar contra a sua narrativa. Esperemos o dia 23/12.

Uma doença mutante

Junto aqui uma notícia com um artigo do Fernando Reinach com os números da epidemia na Espanha.

A notícia é a seguinte: o inquérito sorológico quinzenal patrocinado pela prefeitura de São Paulo encontrou um aumento significativo de contaminados pelo novo coronavírus em bairros de IDH mais alto (centro expandido de São Paulo). No entanto, este aumento de contaminação, surpreendentemente, não resultou em maior procura pelos maiores hospitais da região.

Corta para o artigo, aliás, espetacular.

Fernando Reinach afirma que a verdade verdadeira é que esses testes rápidos usados nos inquéritos sorológicos (inclusive o paulistano), têm resultados tão verdadeiros quanto uma nota de R$3. Segundo ele, estamos descobrindo que esses testes não detectam a presença de anticorpos após algum tempo da contaminação. Ou seja, pessoas podem ter sido contaminadas, serem já imunes, e o tal teste não detectar.

Trata-se de uma descoberta recente, e que joga por terra a estratégia das pesquisas sorológicas baseadas em testes rápidos para o estabelecimento de estratégias de abertura da economia. Podemos ter uma população muito maior já contaminada a essa altura do campeonato.

Corta para a Espanha (gráfico abaixo).

Na Espanha, o pico de casos da 1a onda foi em 21/03, com 192 casos/milhão de habitantes. O pico de óbitos ocorreu 13 dias depois, no dia 03/04, com 18,4 óbitos/milhão. Agora, a 2a onda. O pico dessa 2a onda foi no dia 27/08, com 158 casos/milhão. 14 dias depois, no dia 09/09, temos o suposto pico de óbitos (ainda não sabemos se é um pico): 1,4 óbitos/milhão.

Então, temos o seguinte: o pico da 2a onda foi de 82% do pico da primeira, enquanto o pico de óbitos da 2a onda foi de 7,6% do pico da primeira. Ou, de outra forma: se o número de óbitos nesta 2a onda fosse proporcional ao número da 1a onda, teríamos hoje 8,4 vezes mais óbitos.

O que mudou da 1a para a 2a onda? Mais testes? Pessoas mais jovens sendo contaminadas? Melhores protocolos médicos? Mutação benigna do vírus? São várias as tentativas de explicação. Nada que realmente explique.

Esse conjunto de informações só faz crescer minha convicção de que estamos tratando com um alvo móvel. Certezas absolutas são substituídas por outras certezas absolutas. É preciso ter a mente aberta para receber novos conjuntos de informações e agir de acordo. Fernando Reinach tem essa capacidade, na minha opinião. Sua leitura da pandemia vem mudando com o tempo, na medida em que novas informações foram chegando. A pandemia no início era uma coisa, hoje é outra. Quem, no início, defendia que se tratava de uma gripinha, estava errado. Assim como hoje, quem defende que estamos à beira do apocalipse, está errado. Olhamos para trás e vemos 130 mil mortos. Olhamos para frente, e vemos, por tudo o que foi descrito acima, perspectivas melhores, não piores.

Quando reabrir?

Muitos dos que defendem a liberação já da quarentena usam como argumento o fato de que, uma vez o país reaberto, o surto volta e aí teríamos o pior de dois mundos: recessão e peste. É um bom ponto, que não tem uma resposta simples.

Está aí um artigo que endereça esse problema. China, Coreia e Japão estão mostrando como é possível lidar com o “pós-quarentena” sem precisar fechar a economia novamente. Mas é preciso ter um plano. Caso contrário, todo esse esforço terá sido em vão.

Um grande quebra-cabeças

A coisa toda é complexa, e à medida que se vai montando o quebra-cabeças, a paisagem vai se desenhando. Mas trata-se de um quebra-cabeças de 5.000 peças, então a compreensão do todo é lenta. Pelo menos para mim.

Juntei aqui 4 peças desse quebra-cabeças, que estão me ajudando a compreender melhor o panorama.

O primeiro é a reação da China ao problema inicial, na região de Hubei, e seus resultados, que pode ser visto aqui.

O segundo é o que está acontecendo na Itália neste momento.

O terceiro é o que a Coreia fez e o que a Alemanha está fazendo (aqui), junto com um artigo de Fernando Reinach hoje no Estadão, sobre testes.

E o quarto é um artigo de Geraldo Samor, no Brazil Journal, sobre os custos econômicos de uma quarentena sem fim (aqui).

Comecemos pela primeira peça. O que fez a China? Uma quarentena total de uma região inteira (Hubei) com cerca de 60 milhões de habitantes. Total quer dizer total. Tudo parou de funcionar. Pessoas com sintomas foram confinadas em estádios. Saídas de casa foram restringidas de maneira severa. E severa quer dizer severa. Tudo isso a partir do dia 23/01. Ontem, pela primeira vez, não se registrou nenhum caso na região de Hubei. Ou seja, dois meses depois. E só daqui a 14 dias, se não houver mais nenhum caso, a quarentena será liberada. Dois meses e meio no total.

Vamos tentar encaixar a segunda peça nessa primeira. A região norte da Itália vem sofrendo com um número muito grande de casos. No entanto, as medidas restritivas foram tão draconianas como as que que vimos em Hubei. Por que não funcionaram, pelo menos até o momento? Um funcionário da Cruz Vermelha chinesa afirmou (postei mais cedo) que as medidas não foram draconianas o suficiente. Pergunto: será possível, em uma democracia, agir como se estivéssemos em uma ditadura?

Ficamos o tempo todo recebendo vídeos da Itália, mostrando o horror. A mensagem é clara: “eu sou você amanhã”, se você não adotar as medidas draconianas adotadas pela China. Daí vem a pergunta: não há realmente meio termo? Aí entra a terceira peça do quebra-cabeças: a Coreia do Sul e a Alemanha adotaram a tática de testar à exaustão, além de medidas restritivas. A Alemanha está testando 160 mil pessoas/semana, o que pode explicar a enorme, gigantesca discrepância entre o número de casos e o número de mortes: enquanto essa relação é de 9,3 mortes para cada 100 casos na Itália, na Alemanha este número é de apenas 0,4. A diferença pode estar no denominador, não no numerador. O artigo do Fernando Reinach explica todas as vantagens de se fazer testes extensivos. E, parece, o governo acordou, e prometeu 5 milhões de testes até semana que vem. Vamos ver.

Mas isso não substitui a estratégia de “social distancing”. Tanto a Alemanha quanto a Coreia do Sul a adotaram. Hoje, por exemplo, a Alemanha anunciou o fechamento de todo o comércio não essencial. Então, trata-se de um conjunto de estratégias. Isso nos remete à quarta e última peça do quebra-cabeças, o econômico.

O artigo de Geraldo Samor resume a indignação de várias pessoas com o custo de se deter esta epidemia. Ele pergunta-se se não seria o caso de, ao invés de distribuir um caminhão de dinheiro para mitigar os efeitos da recessão, não seria mais inteligente usar uma fração desse dinheiro em ações na área de saúde para mitigar o problema. Ou seja, a estratégia seria investir tudo na mitigação e não adotar medidas que possam resultar em queda do PIB. Parece lógico, mas tem um só problema: qualquer ação demanda tempo, desde a construção de hospitais, passando pela aquisição de equipamentos e testes e incluindo ações de educação da população. Não é só uma questão de dinheiro, mas de gerenciamento. Não é qualquer país que consegue construir um hospital em 10 dias ou que tem capacidade gerencial para fazer 160 mil testes/semana. Nem todo país é igual à China ou à Alemanha, e mesmo estes países adotaram medidas de contenção envolvendo algum tipo de quarentena.

Talvez o máximo que possamos almejar é que estas medidas de contenção não sejam em vão, como tem sido na Itália: ou seja, além da depressão econômica, eles não estão conseguindo controlar a epidemia. Parafraseando Churchill, entre a desonra e a derrota, escolheram as duas.

Resumindo o panorama até o momento: a China mostrou um caminho de difícil implementação no chamado mundo democrático. Coreia e Alemanha vêm adotando uma versão mitigada desse mesmo caminho, mas complementando com testes extensivos, o que parece estar funcionando. Mesmo assim, os dois países vêm adotando medidas recessivas como todos os outros. Até o momento, nenhum país onde a epidemia apresentou transmissão comunitária deixou de adotar medidas restritivas de aglomeração e contato social. Se o Brasil o fizesse, seria o primeiro. Essa questão permanece sem resposta.