Quando o cientista faz política

Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.

No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.

Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.

O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.

Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.

Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.

O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.

1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?

2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.

3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.

4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?

Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.

Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.

PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.

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