Quando o cientista faz política

Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.

No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.

Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.

O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.

Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.

Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.

O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.

1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?

2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.

3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.

4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?

Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.

Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.

PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.

Como fazer manchetes: um pequeno manual

A notícia é um produto. E, como todo produto, é oferecido em uma embalagem. No caso da notícia, a embalagem é a manchete.

Como sabe qualquer estudante do 1o ano de marketing, uma embalagem atraente é mais de meio caminho para a venda. Por isso, os editores capricham nas manchetes.

Lembro de estar passando em frente a uma banca de jornal lá pelos idos de 1991. Estávamos à beira da primeira guerra do Iraque, Bush pai tinha dado um ultimato a Sadam Hussein, e o mundo prendia a respiração diante da guerra iminente. Na banca, o saudoso Notícias Populares sapecou o que, para mim, é a melhor manchete de todos os tempos: “MUNDO IMPLORA: ARREGA SADAM!” Tem coisa mais sensacional do que isso? Não, não tem.

Como eu ia dizendo, os editores quebram a cabeça para encontrar manchetes que vendam a notícia. Um truque comum é usar estatísticas que chocam. Variações percentuais sobre números pequenos, por exemplo, são um exemplo clássico. O número continua tão pequeno quanto antes, mas a variação é tão grande que chama a atenção.

Quanto mais visuais forem as estatísticas, melhor. Por exemplo: muito melhor do que dizer que foram desmatados 11.000 km2 da Amazônia em 2020, é afirmar que foram desmatados 1,3 milhões de campos de futebol. E, ainda melhor, um campo de futebol foi desmatado a cada 20 segundos! O leitor já fica imaginando um campo de futebol inteiro de árvores, e um enxame de serrotes pondo aquilo tudo abaixo em 20 segundos. Um horror! Claro que, se a manchete fosse “foram desmatados 0,22% da Amazônia Legal em 2020”’, o leitor muito provavelmente passaria ao largo daquele pacote embrulhado em papel pardo.

Um outro exemplo: ao invés de dizer que 3 milhões de pessoas já morreram de COVID-19 desde o início da pandemia, muito melhor sacar “já morreu um Catar desde o início da pandemia”. Meu Deus, um Catar inteiro! E como fica a Copa do Mundo??? Claro que dizer que morreu 0,04% da população mundial é bem menos sexy.

Isso tudo me veio à mente quando vi a manchete abaixo: a Índia registra 3,8 casos de COVID-19 por segundo!

O leitor conta 1 segundo e pá, lá já estão mais 4 indianos doentes. Um horror! Claro que, se a manchete fosse “Índia registra 190 casos/milhão na média móvel dos últimos 7 dias”, o leitor passaria batido pela prateleira. Mesmo porque, hoje o Brasil está com 300 casos/milhão e os EUA, que estão avançadíssimos na vacinação e são governados pelo champion da saúde pública, estão com os mesmos 190 casos/milhão. Enfim, quem mandou a Índia ser o 2o país mais populoso do mundo? É prato cheio para as manchetes bombásticas.

Por favor, não encarem esse post como uma crítica à imprensa. Como todo negócio, eles precisam vender os seus produtos. E as manchetes fazem parte da estratégia. Cabe a nós, consumidores de notícias, não nos deixarmos enganar pela embalagem. Tenha sempre em mente que todo número é relativo. Sempre pergunte: essa estatística, é em relação ao qué? Dessa forma, você terá uma visão mais equilibrada do mundo.

Evolução da pandemia

Elaborei este novo gráfico para termos uma ideia da evolução do número de óbitos de uma semana para cá.

Os pontos azuis são de uma semana atrás, os pontos vermelhos são os números de hoje, sempre a média móvel dos 7 dias anteriores. Coloquei os números dos 10 estados mais populosos, separando SP entre região metropolitana e interior (ambos têm, separadamente, população maior que qualquer outro estado).

Podemos observar, por exemplo, que o Brasil ainda tem número maior de óbitos do que há uma semana, mas o crescimento foi pequeno, o que mostra que talvez já estejamos perto de ter atingido o pico. Há estados que estão piorando rapidamente: a região metropolitana de SP e o RJ são os piores, puxando os números do país para cima. Por outro lado, outros estados que estavam puxando para cima estão em regressão, como PR, RS e SC. Mas os números desses estados ainda são mais altos do que a média brasileira.

Enfim, parece que estamos passando por várias ondas dentro do Brasil, sendo que os últimos estados populosos puxando a média brasileira para cima são RJ, SP e, em menor medida, MG. Acabando a onda nesses estados, começaremos a descida.

Houston, we have a problem

Para os poucos que ainda não sabem, sou graduado em Engenharia. Na minha primeira aula na Poli de Introdução à Engenharia, com o saudoso Prof. Fadigas, guardei para mim a definição do engenheiro: aquele que é treinado para resolver problemas.

Aprendi também desde cedo que para resolver um problema precisamos reconhecer que há um problema. Quer dizer, antes mesmo de estudar as características do problema, e, óbvio, antes de sair feito um louco atrás da solução, é preciso antes de tudo reconhecer que existe um problema. “Houston, we have a problem” é o primeiro passo para a solução.

Digo isso porque, nesse caso da pandemia da Covid, parece que não conseguimos sequer chegar a um consenso de que existe um problema. Sem este consenso, ficará obviamente mais difícil caminhar para uma solução. Afinal, solução para quê, se não existe problema algum?

Coloquei o gráfico abaixo para tentar mostrar que existe um problema.

Trata-se da evolução do número de óbitos/milhão/dia, média móvel de 7 dias. Observe como o gráfico do Brasil muda completamente de padrão a partir da segunda metade de fevereiro. Nos dois picos anteriores, entre junho/julho de 2020 e janeiro/meados de fevereiro deste ano, o número de óbitos atingiu um platô de 5 óbitos/milhão/dia e ficou durante bastante tempo. Trata-se de um padrão próprio, diria brasileiro, diferente de EUA e Europa, onde os picos foram, em geral, muito mais altos e rápidos. Mas então alguma coisa de muito esquisita e errada aconteceu a partir de meados de fevereiro. A curva inclinou de maneira aguda, e subimos de 5 para quase 11 óbitos/milhão/dia em um mês. E nada indica que pararemos por aí.

Temos um problema. Esta curva de crescimento de óbitos simplesmente não é normal. Precisamos nos convencer todos, a começar do dignitário instalado no Palácio do Planalto. Caso contrário, não conseguiremos começar a pensar em uma solução.

As principais causas mortis no Brasil

No dia 17/03 último completou-se um ano da primeira morte por Covid-19 no Brasil. Neste dia, totalizamos, segundo dados do Ministério da Saúde, 284.775 óbitos por Covid-19. É muito? É pouco?

Fui dar uma olhada nas estatísticas do Datasus, a base de dados do Ministério da Saúde, que traz a causa mortis de todos os óbitos do país. Os dados estão atualizados até 2019. Neste ano, houve um total de 1.349.801 mortes no Brasil. As causas campeãs foram as seguintes:

  • Câncer: 235.301
  • Causas externas (violência/acidentes): 142.800
  • Infarto e outras doenças isquêmicas do coração: 117.549
  • Derrame: 101.074
  • Pneumonia: 83.080
  • Diabetes: 66.710

Os números são comparáveis porque se trata do mesmo período.

Alguém sempre poderá dizer que deve ter morrido menos gente das outras causas em 2020, simplesmente houve uma troca de uma causa de morte por outra. Só saberemos isso com certeza quando os dados de 2020 do Datasus forem publicados. De qualquer forma, não parece haver dúvida de que a Covid-19 é, hoje, a principal causa de morte no Brasil.

Os picos da Covid

Hoje o Brasil bateu novamente o seu próprio recorde de óbitos: 7,7 óbitos/milhão/dia, na média móvel de 7 dias. É o 15o dia seguido de picos renovados. E não está parecendo que vai estabilizar.

Na tabela a seguir, listo alguns países e seus respectivos picos (sempre média móvel de 7 dias) e datas em que foram atingidos. Podemos observar que houve um grupo de países que atingiram seus picos no 2o trimestre do ano passado e outro grupo de países que atingiram seus picos agora, no 1o trimestre deste ano.

  • Portugal: 28,5 (01/fev/2021)
  • Bélgica: 24,6 (14/abr/2020)
  • Espanha: 19,2 (03/abr/2020)
  • Reino Unido: 18,3 (24/jan/2021)
  • França: 14,9 (07/abr/2020)
  • Áustria: 14,4 (21/12/2020)
  • Itália: 13,5 (02/abr/2020)
  • Chile: 13,2 (13/jun/2020)
  • Alemanha: 11,4 (12/jan/2021)
  • África do Sul: 11,1 (13/jan/2021)
  • México: 10,3 (28/jan/2021)
  • EUA: 10,1 (26/jan/2021)
  • Suécia: 9,7 (17/abr/2020 e 31/dez/2020)
  • Holanda: 9,0 (08/abr/2020)
  • Argentina: 9,0 (11/out/2020)
  • Colômbia: 7,7 (25/jan/2021)
  • Israel: 7,5 (25/jan/2021)
  • Dinamarca: 6,1 (21/jan/2021)
  • Canadá: 4,7 (06/mai/2020)
  • Noruega: 1,5 (09/abr/2020)

Síndrome Respiratória Aguda Grave: 2020 vs. 2009

Fui dar uma olhada no site da Fiocruz, o InfoGripe, com os agora resultados definitivos da Covid-19 em 2020. São várias e diversas conclusões interessantes.

Este site é bem interessante porque fornece várias informações que você não encontra em nenhum outro lugar: histórico de doenças respiratórias, estratificação por idade e por gênero, evolução temporal, distribuição geográfica, etc.

Comecemos pela comparação entre esta epidemia de 2020 com a epidemia de H1N1 em 2009. Para poder comparar, considerei o total de óbitos por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que inclui a Covid e outras doenças respiratórias. Como não há motivo para crer que houve uma piora dessas outras doenças (na verdade deve ter havido uma melhora, devido às medidas de distanciamento social), a diferença entre 2009 e 2020 deve se atribuir somente à Covid.

Observe como a curva da H1N1 é muito mais aguda, atingindo o pico rapidamente na 28a semana epidemiológica (3a semana de julho, que corresponde à sazonalidade normal da gripe), caindo rapidamente depois disso. Já no caso da Covid-19, houve um aumento de óbitos que demorou cerca de 7 semanas para atingir o pico, para depois cair muito mais lentamente. Este pico foi na 18a semana epidemiológica, primeira semana de maio, o que não corresponde à sazonalidade da gripe comum. E o pior: houve uma retomada a partir da 45a semana epidemiológica (2a semana de novembro), que não tem NADA a ver com sazonalidade gripal. E estamos atingindo novo pico agora em março, em pleno verão. Ou seja, acho que já ficou claro que não se trata de uma gripe como outra qualquer, como era a H1N1.

Outro ponto: observe a escala desses gráficos. O pico em 2009 foi de 0,14 óbitos/100 mil habitantes/semana, enquanto o pico em 2020 foi de 3,6 óbitos/100 mil/semana, 25 vezes maior. O total de óbitos não está nestes gráficos, mas está no site: em 2009 tivemos um total de 2.297 óbitos por SRAG; em 2020 foram 294.179, a bagatela de 128 vezes maior. O número total é várias vezes maior do que o pico porque, como disse anteriormente, a curva demorou mais a subir e demorou mais cair, além de termos uma retomada no final do ano, fazendo com que a área debaixo da curva (que é o número total de óbitos) fosse bem maior em 2020 do que em 2009.

Uma observação sobre este número de 294.179 óbitos. No site da Fiocruz, é possível separar o número de óbitos por Covid do número de óbitos por influenza: por Covid foram 195.916 (número próximo aos 194.949 reportados pelo Ministério da Saúde em 31/12/2020), enquanto os óbitos por gripe foram meros 310. Onde está a diferença de quase 100 mil óbitos não classificados como Covid ou como gripe? Não sei. São mortes por SRAG sem diagnóstico. Será que este número de óbitos por Covid está sub-avaliado? Fica a questão.

Agora vamos a uma comparação por idade. Sabemos que a Covid afetou mais os mais velhos. Mas, quanto mais?

Veja no gráfico abaixo que a grande concentração de óbitos por Covid se deu na faixa de 60 anos para cima, ao passo que, em 2009, os óbitos estão bem distribuídos em todas as faixas etárias. Mais uma evidência de que não se trata de uma gripe comum, mas algo diferente.

Ainda analisando os efeitos nas faixas etárias, elaborei outro gráfico para mostrar o drama dos mais velhos: o número de óbitos acumulados por faixa etária. Observe que, enquanto o total brasileiro foi de 1.432 óbitos/milhão por SRAG, na faixa dos 60+ o número total atingiu incríveis 7.759 óbitos/milhão.

Finalmente, vamos a uma análise por gênero, que, pelo menos para mim, foi uma surpresa: enquanto a H1N1 vitimou proporcionalmente mais mulheres, a Covid mata proporcionalmente mais os homens. É o que podemos observar no gráfico de Proporção por Gênero. Portanto, se você pertence ao gênero masculino, tome mais cuidado: o vírus gosta mais de você.

A reportagem que foi sem nunca ter sido

Recupero aqui uma reportagem do dia 11/11/2020. A chamada era: “Brasil segue na contramão do mundo e tem maior baixa nos óbitos por Covid”.

A reportagem dizia: “Dos dez países líderes em mortes no mundo, oito registraram aumento na média móvel de novos óbitos na última quarta-feira em comparação com o dado de 14 dias atrás. No mesmo período, essa média caiu 25,9% no Brasil, passando de 436 mortes diárias em 28 de outubro para 324 na quarta. O único outro país da lista que também registrou baixa foi a Índia, mas em patamar muito inferior ao brasileiro (-2,5%).”

“Enquanto isso, o Reino Unido, que também viveu a experiência de ter uma queda expressiva no número de mortes de abril a junho, acumula alta de 73,0%. Os Estados Unidos também registram alguma preocupação. No intervalo analisado, a média móvel aumentou 30,4%. Também tiveram aumento Espanha (+74,4%), Alemanha (+195,1%), México (+11,1%), França (+122,4%), Rússia (+20,1%) e Itália (+197,6%). A média de mortes em todo o mundo avançou 38,0% no período.”

E a reportagem continuava: “A presença de coordenação nacional para a resposta à pandemia, o engajamento do presidente Bolsonaro, medidas restritivas austeras, alta adesão da população e o não surgimento de uma variante criaram uma “tempestade perfeita” positiva, nas palavras de especialistas.”

Onde foi publicada essa reportagem? Em lugar algum. Eu inventei, a menos das estatísticas, que são verdadeiras. Na verdade, só fiz um espelho de uma reportagem de hoje no Estadão. Só que desloquei as estatísticas cerca de quatro meses para trás.

Até concordo com os “especialistas” quanto ao diagnóstico da situação atual. O que me intriga é que quatro meses atrás vivíamos o exato oposto e não me consta que os fatores apontados tenham mudado substancialmente de lá para cá, a não ser quanto ao surgimento de uma nova cepa. Ou bem esses fatores influenciam sempre, ou não influenciam nunca. As duas coisas ao mesmo tempo não dá.

Ranking corrigido – leitura por conta de cada um

Quando publiquei o ranking de número de óbitos por Covid, alguns amigos procuraram, com razão, matizar aqueles números. O Brasil aparecia em 15o lugar, em um ranking que considerava apenas países com mais de 5 milhões de habitantes. Comparado com outros países que supostamente haviam feito a lição de casa durante a pandemia, não parecíamos em situação tão precária.

Vou reproduzir abaixo o ranking, atualizado até o dia 30/01, e considerando países com mais de 1 milhão de habitantes (os números se referem ao total de óbitos por milhão de habitantes).

  1. Bélgica: 1.812
  2. Eslovênia: 1.662
  3. Reino Unido: 1.555
  4. Rep. Tcheca: 1.515
  5. Itália: 1.459
  6. Bósnia: 1.418
  7. Macedônia: 1.356
  8. EUA: 1.323
  9. Bulgária: 1.308
  10. Hungria: 1.285
  11. Espanha: 1.246
  12. Peru: 1.233
  13. Croácia: 1.219
  14. México: 1.215
  15. Panamá: 1.214
  16. Portugal: 1.194
  17. França: 1.162
  18. Suécia: 1.148
  19. Suíça: 1.077
  20. Argentina: 1.060
  21. Colômbia: 1.054
  22. Brasil: 1.053
  23. Lituânia: 1.032
  24. Armênia: 1.024
  25. Polônia: 981

É curioso como um simples ranking despertou reações que, a rigor, na letra fria dos números, não se esperaria. Afinal, estar entre os 15% piores parece algo muito ruim. Mas como o objetivo político, ao citar a estatística dos milhares de mortos por Covid, é impichar o governo de plantão, estar entre os 15% piores parece não ser suficientemente ruim. Por isso, os comentários mais comuns procuraram matizar estes números com dois atributos: 1) a pirâmide etária e 2) a densidade dos países. Se estas duas características fossem consideradas, aí sim, o Brasil apareceria como o pior dentre os piores.

A pirâmide etária como fator de ajuste é óbvia: os mais idosos são o principal grupo de risco. Então, países com uma proporção maior de idosos tendem a ter maior número de óbitos.

O segundo fator, densidade, também é óbvio. Quanto mais pessoas juntas em um determinado lugar, menor o distanciamento social e, portanto, maior a probabilidade de transmissão. Mas este fator é preciso ser medido com cuidado.

Quando as pessoas pensam em “densidade”, normalmente consideram o tamanho de cada país: países “pequenos” seriam mais densos, enquanto países “maiores” seriam menos densos. O Brasil, portanto, por ser o 5o maior país do mundo em área, seria muito menos denso, o que é verdade. Por isso, um grande número de óbitos aqui seria muito mais significativo, por exemplo, do que na Bélgica, um país “pequeno”.

Este raciocínio está errado. A densidade importaria se toda a população se distribuísse de maneira uniforme pelo território do país. Mas isso não acontece. As pessoas se concentram em cidades. Portanto, o que importa é o grau de urbanização do país, não a sua densidade. Quanto mais pessoas viverem em cidades, maior será a concentração, ou “densidade” daquele país.

Acho que um exemplo prático pode deixar o conceito mais claro. Na final da Libertadores, a Conmebol liberou público no Maracanã. No entanto, apenas 5 mil pessoas seriam admitidas. Como a capacidade do Maracanã é de quase 80 mil pessoas, 5 mil “desapareceriam” no estádio. A densidade (número de pessoas por área) seria muito baixa. No entanto, não foi o que se viu. As pessoas se concentraram no centro do estádio, onde a visibilidade era melhor. Resultado: concentração de pessoas, mesmo em um estádio com uma grande área.

Pois bem. Rodei duas regressões, uma contra a pirâmide etária e outra contra o grau de urbanização dos países. Usei o conjunto de 155 países com mais de 1 milhão de habitantes. Os gráficos estão abaixo.

Nos dois casos a correlação foi fraca, ainda que contra a pirâmide etária tenha sido um pouco mais forte. De qualquer forma, a tendência, de fato, é crescente: quanto mais velha e mais urbana for a população, maior tende a ser o número de óbitos.

O Brasil encontra-se acima das duas linhas de tendência. Isso significa que o país tem mais óbitos do que sugeriria a tendência geral. Em números: se o Brasil seguisse a média mundial para a pirâmide etária, teria cerca de 360 óbitos/milhão, e se seguisse a média mundial para a urbanização, teria cerca de 590 óbitos/milhão. Números muito melhores do que os atuais mais de 1.000 óbitos/milhão.

Dá para estimar uma equação com as duas variáveis. Segundo essa equação (r2 de 0,40, p-value para a pirâmide etária igual a zero, p-value para a urbanização igual a 8,7%), o número esperado de óbitos para o Brasil, considerando essas duas variáveis ao mesmo tempo, seria de 428/milhão. Uma diferença de 625 óbitos em relação ao número observado.

Abaixo, a lista dos 25 primeiros países de acordo com esse critério (o número representa quantos óbitos por milhão de habitantes ocorreram acima da linha de tendência):

  1. Bélgica: 957
  2. Peru: 872
  3. México: 862
  4. Panamá: 844
  5. Eslovênia: 840
  6. Bósnia: 811
  7. Macedônia: 802
  8. Reino Unido: 764
  9. Rep. Tcheca: 683
  10. Colômbia: 673
  11. Bolívia: 634
  12. Brasil: 625
  13. EUA: 599
  14. Itália: 559
  15. Armênia: 523
  16. Equador: 516
  17. Argentina: 504
  18. África do Sul: 489
  19. Bulgária: 475
  20. Espanha: 463
  21. Hungria: 438
  22. Chile: 426
  23. Irã: 421
  24. Croácia: 393
  25. Portugal: 355

Observe como o Brasil saiu do 22o lugar para o 12o com esse ranking “corrigido” pela pirâmide etária e pela urbanização. De fato, esses fatores parecem ser importantes para explicar uma parte da letalidade do vírus.

O r2 da regressão é baixo, o que significa que certamente há outros fatores que explicam a letalidade. Mas, pelo menos, avançamos na precisão da estatística.

Agora, a leitura política deste novo ranking fica por conta de cada um.

Ranking de óbitos – Brasil

Complementando meu post anterior, segue a lista dos estados brasileiros por número acumulado de óbitos/milhão de habitantes, até o dia 23/01/2021.

  1. Amazonas: 1.720
  2. Rio de Janeiro: 1.665
  3. Distrito Federal: 1.489
  4. Espírito Santo: 1.415
  5. Mato Grosso: 1.395
  6. Roraima: 1.368
  7. Amapá: 1.206
  8. Sergipe: 1.182
  9. Rondônia: 1.165
  10. Ceará: 1.134
  11. São Paulo: 1.120
  12. Pernambuco: 1.060
  13. Goiás: 1.040
  14. Mato Grosso do Sul: 998
  15. Paraíba: 992
  16. Acre: 964
  17. Rio Grande do Norte: 923
  18. Piauí: 909
  19. Rio Grande do Sul: 903
  20. Pará: 871
  21. Santa Catarina: 847
  22. Tocantins: 840
  23. Paraná: 821
  24. Alagoas: 810
  25. Minas Gerais: 667
  26. Bahia: 660
  27. Maranhão: 654

Apenas como curiosidade, dividi o estado de SP em interior e região metropolitana:

  • RMSP: 1.331
  • Interior: 928

Temos então dentro do Brasil desde uma Bélgica (Amazonas) até uma Alemanha (Maranhão).