O Bem e o Mal

É sempre o mesmo ritual. Um crime bárbaro, o choque, e uma enxurrada de análises sobre o que poderia ter causado o episódio. Há quem defina o Homem como um animal racional. Prefiro outra definição: o Homem é um animal em busca das causas.

Tragédias como a de Blumenau não cabem em nossa racionalidade. Por isso, buscamos as causas. E elas abundam. Podem ser causas estruturais, como a desestruturação das famílias ou o fácil acesso a drogas. Ou, o mais comum, causas que remetem a posicionamentos políticos. Neste campo, temos a pedagogia de Paulo Freire ou a impunidade defendida pelas esquerdas. Ou, do outro lado, o descontrole de armas ou a cultura de ódio defendida pelos bolsonaristas. Causas, causas, causas, li de tudo por aí.

Cada um vai buscar as causas dentro do seu próprio baú de convicções. Temos pouca ou mesmo nenhuma informação sobre o ocorrido, mas já nos sentimos plenamente preparados para pontificar sobre suas causas. Proponho aqui um experimento mental: assim como há atos maus, também há muitos atos bons no mundo. O experimento consiste no seguinte: quais são as causas dos atos bons? Desde uma mãe que amamenta seu filho, passando por um pai que sai para passear com seus filhos até um professor que prepara uma boa aula para seus alunos. Quais são as causas desses atos bons, que ocorrem todos os dias? Talvez a nossa resposta saia do mesmo baú de convicções que aponta as causas para os atos maus, só que com o sinal invertido. Este é um experimento mental porque os atos bons são em muito maior número e frequência, e não nos sentimos compelidos a buscar suas causas.

Sempre que ocorre uma tragédia como a de Blumenau, os mais pessimistas dizem que a nossa sociedade está doente. Não, não está. Doente estaria se uma tragédia como esta não provocasse comoção. O choque vem justamente do fato de que sabemos distinguir o bem do mal. Isso é verdade inclusive para quem pratica atos maus. Um ladrão reveste sua ação com justificativas boas, como alimentar a própria família ou, até, fazer justiça social, roubando dos ricos para devolver aos pobres. Até Hitler, para pegar um exemplo do mal por antonomásia, revestia seus atos com a justificativa de proteger o povo alemão.

Alguém poderia perguntar então: se todos conhecem o bem e o buscam, por que então existe o mal no mundo? A resposta é: julgamento. Os seres humanos temos réguas morais, a partir das quais julgamos os nossos atos e os atos dos outros. Essa régua moral se alimenta do baú de convicções citado acima. O assassino de Blumenau claramente tem uma régua moral incompatível com a vida em sociedade, sociedade esta suficientemente saudável moralmente para condenar o ato. (Estou aqui partindo do pressuposto de que o assassino era minimamente senhor de si mesmo durante o ato. Caso contrário, não se aplica o conceito de régua moral).

O que nos exaspera, a nós, seres humanos, é o encontro caótico de várias réguas morais (cada cabeça, uma sentença), que até podem estar de acordo sobre a tragédia de Blumenau ser um mal, mas estão longe de concordar em relação ao bem ou ao mal de suas causas antecedentes. O certo e o errado se digladiam na arena do debate público, longe, muito longe, de um consenso.

A esse respeito, lembro de um pequeno livro de Chesterton, O Homem que foi Quinta-Feira (atenção, seguem spoilers). Neste conto policial, o protagonista assume o codinome Quinta-Feira para se infiltrar em um grupo criminoso que adotava como codinomes os dias da semana. O grupo, claro, era chefiado por Domingo. Na medida em que a trama se desenrola, Quinta-Feira vai descobrindo que os outros bandidos também são policiais infiltrados e, no final, Domingo era nada mais, nada menos, que seu chefe na polícia. Com essa alegoria, Chesterton argumentava contra o maniqueísmo, filosofia que propõe a existência de dois deuses, um Bom e um Mau, ambos com o mesmo poder e em eterna luta. Não, há somente um Deus, de quem os seres humanos herdamos a régua moral que diz que a tragédia de Blumenau é um mal. Segundo a fé cristã, da qual Chesterton comungava, esse mesmo Deus morreu hoje para pagar pelo mal causado pelos seres humanos. É uma forma de lidar com o mal que não chegamos a compreender completamente.

A moralidade como atributo humano

Meu amigo Cleveland Prates postou uma notícia inusitada: uma onça pintada teria sido “cancelada” no Twitter por ter “assassinado” uma capivara. Na verdade, o cancelado foi o fotógrafo da cena, que registrou o momento e postou em sua conta Biodiversidade Brasileira, que registra cenas da vida animal. Infelizmente, o tuíte foi apagado, então as reproduções abaixo são da reportagem do UOL.

Atribuir comportamentos humanos a animais não é algo novo. Os Irmãos Grimm, no século XVIII, compilaram várias fábulas envolvendo animais. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, conta a história de uma menina e sua avó, vítimas de um lobo “mau”. Bem, lobo não é mau ou bom, lobo é lobo, vai simplesmente seguir o seu instinto e caçar o suficiente para se alimentar. Mas na fábula o lobo personifica a maldade humana.

Walt Disney elevou à enésima potência a humanização dos animais. Ratos, cachorros, elefantes, leões, enfim, a fauna toda foi transformada em seres humanos, em um fenômeno que chamo de “disneyficação” da natureza. Crescemos nesse ambiente, a ponto de alguns realmente acreditarem que os animais tomam decisões morais, como demonstra as reações ao post da onça pintada que ataca a capivara. Ou, no mínimo, colocando filtros morais em atos envolvendo animais.

A coisa chega a níveis paradoxais. Brigas de galo, por exemplo, são proibidas, pois se trata de maus tratos a animais. No entanto, o boxe, que é uma especie de briga de galo com regras, é um esporte olímpico. A diferença está, claro, no livre arbítrio. Os boxeadores estão lá porque querem, ao passo que os galos são colocados para brigar contra a sua “vontade”. Claro, os galos não têm vontade, eles seguem o seu instinto quando colocados juntos. Quem reveste de moralidade este ato somos nós, os seres humanos.

Como tudo o que envolve decisões morais, a zona cinzenta é gigantesca. Muitos são vegetarianos porque entendem que a forma de criar e matar animais é desumana. Alguns, inclusive, atribuem aos animais características morais, o que faria da morte de um animal um assassinato, da mesma forma que a onça “assassina” a capivara. Seja pela forma de matar, seja pela morte em si, os animais são elevados à condição humana.

A grande confusão está em que o ser humano é bem parecido com os animais, mas só até certo ponto. Há algo que não compartilhamos com os animais, e esse algo é o nosso julgamento moral. Animais seguem seus institutos de sobrevivência em 100% do tempo. Nós também seguimos o nosso instinto de sobrevivência, mas somos capazes de outras considerações de ordem moral que limitam a nossa busca pela sobrevivência a qualquer preço. Duas pessoas em situação de desespero podem tomar decisões diferentes sobre como vão sobreviver, a depender de sua formação moral.

Nessa escala da natureza, é como se o ser humano pertencesse ao reino animal mas tivesse uma participação em uma espécie de centelha divina, o que o obriga, para o seu desespero, a estar, o tempo inteiro, classificando todos os atos do universo nas colunas de “certo” e “errado”. No filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, os macacos são todos iguais, até que um grupo encontra um monólito negro misterioso, que lhes dá a capacidade de fazer o bem e o mal. Aquele monólito significa essa “centelha divina” que nos diferencia de todo o reino animal, pois nos faz seres morais.

Hoje é sexta-feira santa, dia em que os cristãos recordam a morte de Deus. Deus não morre, por suposto, mas a fé cristã afirma que Deus se encarnou em um homem, e este homem morreu hoje. É, de alguma forma, o reconhecimento de que os seres humanos somos em parte animais e, em parte, deuses. Alguns resumem todos os conflitos humanos a uma simples luta pela sobrevivência, como se fôssemos puros animais com um cérebro maior. Discordo dessa visão. Os nossos conflitos são, antes de mais nada, morais. Lutamos pelo que achamos certo.

Boa Páscoa a todos!