Copa do Mundo é camisa

Colocar o Qatar como cabeça de chave não faz o menor sentido. Poderemos ter um grupo com Qatar, EUA, Sérvia e Arábia Saudita e outro com Brasil, Alemanha, Polônia e Gana. ”Grupos da morte” são legais para dar alguma pimenta na fase de grupos de um campeonato com seleções em excesso. Mas a contrapartida é termos grupos que não fariam falta de maneira alguma.

Copa do Mundo é camisa. Os atuais campeões do mundo, com a adição de Holanda e, talvez, Bélgica, deveriam ser sempre os cabeças de chave, para guardar os confrontos que importam para a fase do mata-mata. Essa história de usar o tal “ranking da FIFA” como critério não passa de um burocratismo que não conversa com o torcedor. Esse burocratismo, aliado à ambição comercial que inchou a Copa do Mundo, vai aos poucos matando o interesse pelo torneio.

O verdadeiro problema do futebol brasileiro

Neymar, em um desabafo pouco comum, diz que não entende porque a seleção brasileira não desperta mais o interesse do brasileiro médio. Segundo o craque do PSG, os jogos são pouco comentados, as pessoas nem sabem quando vai ser. Ele reconhece que não sabe porque isso está acontecendo e nem quando começou.

Eu tenho uma hipótese. E, como toda a hipótese, pode estar certa, parcialmente certa ou totalmente errada. Ei-la.

Tirando os aficcionados por um esporte, o brasileiro médio (não sei se isso acontece em outros países) vive de ídolos. Acompanhamos um esporte quando há um ídolo brasileiro se destacando. As corridas de F1 são uma sombra do que eram, em termos de audiência, de quando podiam contar com Nelson Piquet e Ayrton Senna. Felipe Massa foi o último suspiro. Desde então, só os aficcionados acompanham. O mesmo com o tênis depois de Guga. Precisamos de ídolos para nos interessar por esportes.

Alguém dirá que no futebol é diferente. Sendo o país do futebol, a seleção deveria chamar a atenção por si só. Mas não é bem assim. O futebol também é um esporte de aficcionados. No Brasil, claro, há muito mais aficcionados por futebol do que por todos os outros esportes juntos. Mas não deixa de ser um esporte de aficcionados. E estes, até por serem aficcionados, costumam prestar muito mais atenção aos seus clubes de coração do que na seleção brasileira. A seleção precisa atrair a atenção dos não-aficcionados pelo esporte, senão não funciona. E estes dependem de ídolos. E é aqui que chegamos ao problema.

A última bola de ouro que um jogador brasileiro recebeu foi no longínquo ano de 2007, com Kaká. Antes dele, uma geração de ouro do futebol brasileiro foi agraciada com o prêmio: Ronaldo em 1997 e 2002, Rivaldo em 1999 e Ronaldinho Gaúcho em 2005. Desde então, apenas Neymar chegou na lista final e, mesmo assim, ficou longe de ser eleito.

Vivemos uma longa entressafra de craques. Quando, em 2020, Marinho foi cogitado pela imprensa esportiva para compor a seleção, pensei com meus botões: é, estamos realmente precisando de craques. O que vemos na seleção é uma sucessão de nomes pouco conhecidos, que, como Marinho, brilham durante uma temporada para depois voltar ao ostracismo. As convocações de Tite nos últimos quatro anos são de chorar. E o pior: não haveria nomes melhores mesmo.

A distância de nossos jogadores do país (alguns deles quase não jogaram por aqui) só piora a situação. Não que seja imprescindível. Os craques citados acima jogavam, todos, na Europa. Mas eram craques, o que facilita tudo. Quando se é um jogador mediano, estar distante o torna um ilustre desconhecido para a parte não aficcionada da torcida brasileira.

E, como cereja do bolo, chegamos a Neymar. Depois da temporada no Santos em 2010/2011, Neymar pouco fez para justificar sua fama de craque, essa é a dura realidade. Um acidente o tirou do vexame contra a Alemanha, em 2014, fazendo-nos crer que, com ele em campo, as coisas seriam diferentes. Esquecemos do angustiante jogo contra o Chile, nas oitavas, em que a trave nos salvou da desclassificação humilhante, e o sofrível jogo contra a Colômbia nas quartas. Em 2018, um apagado Neymar não foi suficiente para nos livrar da desclassificação contra uma Bélgica aplicada. Enfim, o nosso fora de série, aquele que deveria ser o atrativo dos não aficcionados, além de tudo, tem uma imagem pública questionável, parecendo mais interessado em marketing do que em jogar bola.

Talvez Neymar pudesse encontrar a resposta para a sua angustiante pergunta no deserto em que se tornou o futebol brasileiro, em que ele mesmo é o símbolo máximo.

A Copa a cada dois anos

Até 1978, a Copa do Mundo era disputada por 16 seleções a cada 4 anos. A partir de 2026, o torneio contará com 48 seleções e poderá ser disputada a cada 2 anos. O que mudou nesses quase 50 anos? Simples: a FIFA está estressando o seu principal produto para testar até onde ele aguenta.

Qual o ponto ótimo de uma Copa do Mundo do ponto de vista financeiro? Um número maior de seleções traz novos espectadores, sem dúvida. Mas pode deixar uma boa parte do torneio, incluindo as eliminatórias, sem apelo para os espectadores tradicionais. Um exemplo são as próprias eliminatórias sul-americanas. Antigamente, a seleção brasileira corria o risco real de ficar fora da Copa do Mundo. No entanto, com 5 seleções classificadas e mais uma na repescagem contra uma seleção da Oceania (!), a seleção só não se classifica por um desastre de proporções cósmicas. Resultado: as eliminatórias perderam muito do apelo que tinham antigamente. Com 48 seleções, as eliminatórias na Europa devem perder o apelo também. Mas a FIFA deve ter feito o cálculo e concluído que vale a pena do ponto de vista financeiro.

Agora, vamos aumentar a frequência da competição. O raciocínio é o mesmo: o interesse na competição se dá pela sua raridade. O país para pra ver os jogos. Ocorreria o mesmo se a competição ocorresse de dois em dois anos? Qual seria a audiência? A FIFA deve estar considerando que as duas copas a cada 4 anos terá mais público do que uma copa no mesmo período, mesmo que cada uma delas tenha menos público do que a copa “normal”. O público de cada uma delas não deve cair pela metade, o que representa um ganho adicional. Neste ponto, a FIFA está agindo racionalmente.

No entanto, apesar de poder fazer sentido do ponto de vista estritamente financeiro, não faz nenhum sentido do ponto de vista esportivo. A Copa do Mundo tem essa aura mítica justamente por ser um evento raro. Uma Copa do Mundo bienal com 48 seleções se tornará um torneio comum. Terá algum interesse, mas longe do que representa hoje. Uma pena.

Assim caminha a humanidade

A UEFA não autorizou que o estádio de Munique, que receberá o jogo Alemanha x Hungria pela Eurocopa, fosse iluminado com as cores do arco-íris. A iluminação seria em protesto por uma lei recentemente aprovada pelo parlamento húngaro, proibindo a presença de homossexuais em propaganda para menores, além de outros pontos relacionados com educação. A UEFA ofereceu outras datas para o protesto, mas como este jogo envolve a seleção da Hungria, foi considerado pela entidade como um protesto político, contra, portanto, seus estatutos, que proíbem expressões políticas e religiosas em suas competições.

Não vou aqui entrar no mérito da decisão da UEFA. Trata-se de entidade privada, regida por regras aprovadas pelos seus membros. Se alguém não estiver contente, pode tentar fundar uma outra associação que, além de organizar futebol, também promova protestos políticos. Boa sorte.

Meu ponto é outro. A tal lei foi aprovada por 157 votos a favor e um contra.

O parlamento húngaro é formado por 199 deputados, dos quais 132 pertencem à base do governo de Viktor Orbán, o Bolsonaro deles. A oposição boicotou a votação, mas o que chama a atenção é que 25 deputados da oposição, de um total de 67, votaram a favor da lei. Ou seja, mais de um terço.

Então, são duas coisas:

1) Esses deputados que lá estão foram eleitos pelos cidadãos húngaros. Não estamos falando da Venezuela ou do Iraque. A Hungria pertence à União Europeia, que tem regras mínimas de governança para os seus membros. Em reportagem do The Guardian, uma deputada da oposição pede “imediata ação da UE”. O jornalista complementa, não sem uma ponta de sarcasmo, “sem dizer exatamente o que ela tem em mente”. Não há nada em mente.

2) Mesmo uma fatia relevante de deputados da oposição votaram a favor da tal lei. Seria interessante ouvir as suas considerações, o que, até onde eu tenha conhecimento, não foi feito por nenhum veículo da imprensa democrática ocidental.

Estamos aqui diante de um dilema típico das sociedades democráticas. Por um lado, cada sociedade tem suas idiossincrasias. O parlamento é somente o espelho dessas peculiaridades. Vale para o Brasil, vale para a Hungria. Por outro lado, é óbvio que desrespeitos flagrantes a direitos humanos devem ser rechaçados pela comunidade das nações e a autodeterminação dos povos deve ser sopesada com um mínimo de humanidade. A Hungria faz parte da União Europeia, o que, em tese, garante esse mínimo de humanidade ao longo do tempo, caso o país deseje continuar pertencendo a esse clube. Por outro lado, protestos fazem parte do jogo democrático.

Enfim, trata-se de tema espinhoso, que envolve muitas facetas. Ao contrário do que parece, não é a luta entre “o bem e o mal”. É somente o barulho causado pelo choque de duas agendas de costumes. Assim caminha a humanidade.

A Superliga e o STF

Essa história da Superliga me faz lembrar o Clube dos 13.

Em 1987, os 13 principais clubes do futebol brasileiro resolveram criar um campeonato próprio, a Copa União. A CBF, à época, organizou, como sempre, o seu próprio campeonato. Chamou a Copa União de “módulo verde” e o seu campeonato de “módulo amarelo”. Verde e amarelo, sacou?

Segundo as regras estabelecidas pela CBF, o campeão brasileiro deveria sair do enfrentamento entre os campeões dos dois módulos. O Flamengo, campeão da Copa União, recusou-se a entrar em campo para enfrentar o Sport, campeão do torneio da CBF. A CBF declarou o Sport como campeão brasileiro de 1987. A coisa foi parar (como tudo no Brasil) no STF, que em 2018 declarou definitivamente o Sport como o campeão brasileiro daquele ano.

Essa discussão toda pode parecer bizantina, mas teve efeito prático importante em outra polêmica fundamental: quem deveria levar definitivamente para casa a taça das bolinhas. Essa taça estava reservada para o primeiro pentacampeão brasileiro desde 1971. Caso o título de 1987 valesse, a taça deveria ter sido entregue ao Flamengo, que teria vencido seu quinto título brasileiro em 1992. No entanto, com o título de 1987 sub-júdice, o São Paulo ganhou o seu quinto título em 2007, reivindicando a taça. Apesar de o STF já ter pacificado a questão sobre quem foi o campeão brasileiro de 1987, esta disputa da taça das bolinhas ainda está sem decisão final. O STF acabará tendo que decidir sobre esta importante questão também.

Fico imaginando como a UEFA e os clubes europeu vão se virar sem ter um STF para decidir essas questões.

O Santos de Cuca e Cia.

O Santos que chegou na final da Libertadores de 1962-1963 era o Santos de Pelé e cia.

O Santos que chegou na final da Libertadores de 2003 era o Santos de Robinho e cia.

O Santos que chegou na final da Libertadores de 2011 era o Santos de Neymar e cia.

Que Santos é esse que chega na final da Libertadores de 2020? Não vale dizer que é o Santos de Marinho e cia. Marinho é um bom jogador, esforçado, está em grande fase, mas não chega aos pés de Pelé, Robinho e Neymar. Nem tampouco seus companheiros podem sequer desamarrar as chuteiras dos companheiros daqueles três.

O Santos de 2020 é uma improbabilidade estatística. Três goleiros saíram, tivemos que jogar com o 4o e o 5o goleiros. O craque do time, Carlos Sanchez, se contundiu no início da temporada. Salários atrasados, impeachment do presidente.

Mas aí entra o imponderável, aquela coisa que não conseguimos explicar direito. Ou melhor, explicamos depois que acontece, mas não prevemos antes. Cuca está em uma temporada iluminada. Pegou esse catadão de veteranos como Pará e Marinho, misturou com um monte de moleques da base, e deu uma cara de time de futebol. O jogo de hoje, com o Santos pressionando a saída de bola do Boca aos 45 min do 2o tempo, com 3 x 0 no placar, tem o dedo do técnico.

O Santos que chega na final da Libertadores de 2020 é o Santos de Cuca e cia.

PS.: em uma nota melancólica, este time do Santos chegar na final da Libertadores mostra bem o nível atual do futebol sul-americano.

A verdadeira idade de Pelé

Édson Arantes do Nascimento faz 80 anos amanhã. Parabéns.

Mas Pelé, não.

Pelé tem a idade que cada um lhe dá, de acordo com o seu exclusivo critério. Para mim, Pelé nasceu às 16:15 hs do dia 29/06/1958, horário de Estocolmo. Neste dia, neste exato momento, Pelé dá um chapéu no zagueiro dentro da área e, sem deixar a bola cair no chão, arremata para o que seria o 3o gol da seleção brasileira na final da Copa do Mundo contra a Suécia. Este gol fez nascer Pelé para o mundo, na minha humilde opinião.

É ocioso ficar discutindo quem foi o maior jogador de todos os tempos. Há gosto para tudo. Pelé não tinha a plasticidade de um Maradona, ou a visão de jogo de um Beckenbauer, ou o calcanhar mágico de um Sócrates. Mas Pelé é imbatível em um quesito: resultados.

Pelé tinha um jogo absolutamente objetivo. Nenhum toque de bola, nenhum movimento é supérfluo. Tudo é feito para o gol. Pelé era um predador do gol. Não importa se o gol era feio ou bonito, pensado ou sem querer. O que importava era que acontecesse. O gol citado acima foi uma pintura. Mas, observando o lance, fica claro que não tinha maneira melhor de concluir o lance. Era a forma mais econômica, clean. Foi um gol de Pelé.

Dizem que Pelé só tem 1.258 gols porque jogou no futebol brasileiro. Fosse na Europa, a história teria sido outra. Há duas falhas nesse raciocínio. A primeira é que, naquela época, os melhores jogadores ficavam no Brasil, não iam para a Europa. Então, o campeonato brasileiro era do nível do europeu. Tanto é assim que ganhamos 3 Copas do Mundo com seleções formadas localmente. A segunda falha é numérica: apesar das controvérsias diante desse número, é óbvio que se trata de uma cifra gigantesca. Mesmo que tivesse 30% menos, ainda assim seria uma enormidade. Não vale a pena perder tempo discutindo.

Meu falecido pai era carioca. No início da década de 60, o Santos fazia muitas partidas no Maracanã. Os jogos da Libertadores, por exemplo, eram muitas vezes mandados no estádio carioca. Ele foi testemunha do jogo Flamengo 1 x 7 Santos, com três gols de Pelé, em 1961. A torcida aplaudiu de pé o espetáculo. Quando se mudou para São Paulo, começou a torcer pelo Santos, paixão que passou para os seus filhos. Nesse sentido, sou viúva do Pelé, apesar de nunca tê-lo visto jogar pessoalmente. Sem dúvida, Pelé é o responsável, até hoje, pela torcida que o Santos tem.

Cada um vai ter uma opinião sobre quem foi o maior jogador de todos os tempos. Sempre que me provocam, dou minha opinião: Pelé. E dou meu motivo: quando um moleque de 17 anos fizer um gol em uma final de Copa do Mundo chapelando um zagueiro dentro da área, podemos voltar a conversar sobre esse assunto.

Ainda sobre o VAR

Existe um conceito em contabilidade chamado “materialidade”. Contabilidade é conta de mais e menos. É matemática, não tem como ir um pouco pra cá ou pra lá.

Mas tem. Este é o conceito de materialidade. Às vezes a diferença é tão pequena, que não vale o trabalho de encontrá-la. Arredonda-se e pronto, vida que segue.

O conceito de materialidade deveria ser aplicado ao VAR. O lance do impedimento do atacante do São Paulo é simplesmente bizarro. Mesmo com o lance parado, na foto, não se consegue ver que o jogador esteja adiantado. Foi preciso que o computador desenhasse a tal “paralaxe” para se concluir que o jogador estava em impedimento. Mas, para efeito desse esporte que se chama futebol, ele estava na mesma linha. Materialmente na mesma linha.

Como o artigo no início deste post afirma, o VAR deveria servir para corrigir erros grosseiros do árbitro. Por exemplo (e pra não dizerem que elogio o VAR só quando ajuda o meu time), a mão do meio-campista do Santos contra o Vasco dentro da grande área, lance que o juiz não percebeu e o VAR corrigiu. Ficou claro, no VAR, que a bola pegou na mão. Erro grosseiro.

E quem vai decidir se o erro é material ou não? Ora, o próprio juiz. É para isso que ele é pago. Como diz o articulista, o VAR não pode servir de muleta para juízes inseguros.

O VAR é uma inovação tecnológica bem-vinda. O problema está na materialidade dos erros cometidos. Quando paralaxe passa a ser um termo futebolístico, é sinal de que aquele antigo esporte bretão acabou.

A injustiça do VAR

Sou do tempo em que Maradona fez o gol de mão contra a Inglaterra. La mano de Dios. Um erro claro da arbitragem. Mas claro no replay. Na hora, o gênio fez com que todos acreditassem que um jogador de 1,65m ganhou de cabeça de um goleiro muito mais alto que saiu com as mãos. Se houvesse o VAR, teríamos sido privados de um momento histórico, épico, comentado até hoje, mais de 30 anos depois.

Quando lançaram o VAR, critiquei aqui. Hoje foi apenas mais um dia em que aprofundei na convicção de que o VAR não tem nada a ver com futebol.

Futebol é a vida, com seus erros e acertos, com a sua não linearidade, poucos momentos apoteóticos cercado de mesmice por todos os lados. Futebol só é o esporte mais popular do mundo porque é assim. O VAR torna o esporte mais parecido com outras coisas em que a tecnologia tem um papel fundamental na decisão de quem é o vencedor. Natação ou atletismo, por exemplo.

Ninguém gosta de ser vítima de um erro do árbitro, claro. O VAR veio acabar com essas supostas injustiças. Mas o que se viu hoje na Vila Belmiro foi justamente o oposto: o VAR cometeu injustiça, mesmo cumprindo a letra fria da regra.

Nos dois lances, o impedimento era impossível de ser visto a olho nu. Foi um centímetro, se muito. É muito difícil defender que este “adiantamento” tenha sido decisivo para que o gol tivesse sido marcado. Se o jogador estivesse um centímetro para trás, provavelmente o desfecho teria sido o mesmo.

O que eu quero dizer é que lances impossíveis de serem detectados pelo juiz em campo (com a possível exceção a atitudes anti-desportivas) deveriam fazer parte daquilo que chamamos, na vida, de “erro normal”. Nos tempos em que não existia o VAR, esses dois lances seriam revisados pelos comentaristas, haveria muita discussão sobre se havia ou não impedimento, mas a conclusão seria unânime: impossível o bandeirinha perceber.

Antes de dizerem que o choro é livre, estaria escrevendo a mesma coisa se o erro do VAR fosse a favor do meu time. Sim, erro do VAR. Não se anula um gol quando são necessários 5 minutos para se concluir que havia impedimento. Se a máquina demora essa eternidade, então é porque tem algo muito errado nisso tudo.

Enfim, acho a tecnologia interessante quando avisa o juiz quando a bola ultrapassou a linha, ou que houve uma atitude anti-desportiva. Mas o que se viu hoje foi a letra vencer o espírito, a regra vencer a alma do jogo. Não, me desculpem, isso é tudo, menos futebol.

Futebol não é somente uma atividade econômica

Os que leem essa página já devem ter percebido que sou da classe dos capitalistas selvagens. Para mim, a atividade econômica se resume a oferta e demanda, o que você recebe pelo que você paga, valor adicionado, produtividade, essas coisas.

Mas dentro desse coração duro feito pedra mora uma exceção: o futebol.

O futebol não pode ser classificado como uma atividade econômica como as outras. Seria o mesmo que tentar classificar o amor de uma mãe pelo seu filho de acordo com relações de trocas econômicas. Simplesmente não dá.

Futebol é paixão irracional. Seu time de coração é isso mesmo: o time de coração. E o coração tem razões que a própria razão desconhece, diz o ditado.

Outra coisa: futebol é estádio. Acho graça da molecada hoje em dia torcendo para o Barça ou Real Madrid, sem nunca terem ido a um estádio ver um jogo desses times. É quase como um vídeo game. Aliás, faz sentido. Para uma geração formada por Felipe Neto no youtube e viciada em vídeo games, o futebol virtual é até melhor. Mas isso não cria paixão. O estádio é o lugar onde se vive e se morre por um time. Onde estão as lembranças dos entes queridos que nos transmitiram seu amor pelos seus times, e onde comungamos o mesmo destino e a mesma paixão com desconhecidos que se tornam nossos irmãos na tristeza e na alegria. O futebol sem a torcida no estádio não é futebol, que me desculpem. Sim, sim, eu sei que o futebol é também uma atividade econômica. Quanto mais torcedores o time tiver, quanto mais bem organizado for o “time-empresa”, mais condições terá de ganhar títulos e novos torcedores, em um círculo virtuoso. E o contrário também é verdadeiro.

Mas um time de futebol transcende a esfera puramente econômica. Não me perguntem porquê, mas é assim. Por isso, seria preciso pensar em algum arranjo que sustente os times com torcidas menores, que têm mais dificuldade de montar equipes competitivas. Claro, é preciso que a administração seja profissional, esta é uma condição sine qua non que precisa estar garantida. Mas o poderio de um time não pode ser somente função do tamanho de sua torcida. Se assim for, terminaremos com 1 ou 2 times dominando o futebol, como aliás acontece na Europa.

Entendo perfeitamente a lógica de uma Globo, que quer a máxima audiência possível, o que a faz pagar mais para os times com maior torcida. Mas uma competição dominada por um time só perde a graça e, no limite, a audiência. Esta lógica econômica também precisa ser incorporada no processo de decisão.

Essas reflexões me vieram à mente quando li o post do meu amigo José Mauro Delella, a respeito dos 100 anos da Portuguesa de Desportos, que tive o prazer de ver jogar contra o meu Santos, em um 3 x 3 épico, com apresentação de gala de Eneas, que fez os 3 gols da Lusa.

Não se preocupe Zema. A Portuguesa nunca vai morrer enquanto você estiver vivo. Porque um time vive de verdade é no coração dos seus torcedores.


Da página de José Mauro Delella:

Há exatos 100 anos, 5 portugueses que representavam seus times espalhados por São Paulo se uniram para formar um maior e deram a ele o nome de Associação Portuguesa de Desportos. Um desses times se chamava Portugal Marinhense, time de meu bisavô, José Rodrigo, e de seus filhos.

Mesmo bem antes de saber essa história eu já amava a Portuguesa completamente. Amor pouquíssimo correspondido, a propósito. Mais sofrimento que alegria. Mas amor puro. O amor pela Portuguesa tem muito a ver com as nossas ligações familiares. É o meu caso e da maior parte dos torcedores. Sou um sobrevivente de tardes e noites passadas no Canindé com pessoas que já se foram. Minha avó, a mais fanática de todas, meu nonno, italiano convertido, seus três filhos, Antonio, Anibal e José Nicola. Este, meu pai e referência de vida. Descendentes daquele José Rodrigo.

Sempre foi difícil torcer pra Portuguesa. Mesmo em tempos bem melhores, ser o único da classe era regra. Mas os últimos 20 anos foram cruéis. Uma derrocada terrível a partir de 2002 e a morte “de morte matada” em 2013. Muitos jogadores indignos de vestir o manto que já vestiu Djalma Santos, Julinho, Dener, Enéas, Felix, Pinga, carregaram as cores rubroverdes e isso me fez um pouco mais triste.

Talvez haja alguma forma de ressurreição, talvez não. Mas esse amor vai me acompanhar até o fim. Junto com aqueles que já se foram e a quem eu represento.

Se eu torcesse para outro time, eu seria outra pessoa. Parabéns Associação Portuguesa de Desportos.