O “feijão-com-arroz” de Lula

O sempre genial Gustavo Franco traz hoje, “en passant” um paralelo bem sacado entre a proposta de arcabouço fiscal do governo Lula e a política de “feijão com arroz” do ex-ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, na segunda metade do governo Sarney.

Um pouco de história. Depois de 3 planos fracassados (Cruzado I, Cruzado II e Bresser) e 3 ministros da Fazenda (Dornelles, Funaro e Bresser-Pereira), o governo Sarney optou por um ministro e uma política “feijão-com-arroz”. Mailson da Nóbrega assumiu o comando da pasta em janeiro de 1988, e colocou em prática um “não plano”. A ideia era dar um tratamento gradualista ao problema do déficit público e, com isso, ir controlando a inflação aos poucos. A ideia de Sarney era evitar uma desaceleração da economia que minasse a sua popularidade.

Obviamente não deu certo, a inflação continuou subindo, e a política “feijão-com-arroz” morreu um ano depois, com o Plano Verão, que envolvia, mais uma vez, congelamento de preços. Seriam necessários mais dois planos além deste (Collor I e II) para que chegássemos ao Plano Real, o único que verdadeiramente atacou o problema do déficit público.

Esse arcabouço tem pé, rabo e focinho de “feijão-com-arroz”: vamos atacar o problema de maneira bem gradual, de modo a não desacelerar a atividade econômica e a não afetar a popularidade do governo. Infelizmente, só estamos empurrando o problema com a barriga. A realidade se fará presente mais cedo ou mais tarde. E, quanto mais tarde, mais cara será a conta a pagar.

Era uma casa muito engraçada, não tinha fundação, não tinha nada

Estou lendo A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco, que conta a história monetária do Brasil desde a década de 30 com base nas várias legislações que regeram a moeda brasileira. No capítulo sobre o plano Real, Franco relembra a primeira iniciativa de FHC como ministro da Fazenda, a edição do PAI, Programa de Ação Imediata. Copio a seguir a exposição de motivos do PAI, que fazem a fundação do Plano Real:

– O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia a dia da população.

– A dívida social só será resgatada se houver ao mesmo tempo a retomada do crescimento autossustentado da economia.

– A economia brasileira só voltará a crescer de forma duradoura se o país derrotar a superinflação que paralisa os investimentos e desorganiza a atividade produtiva.

– A superinflação só será definitivamente afastada do horizonte quando o governo acertar a desordem das suas contas, tanto na esfera da União como dos estados e municípios.

– E as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores.

Note a construção do edifício da estabilização. Ele começa com o teto e vai descendo até as fundações. O objetivo final é retomar o crescimento econômico, que permita resgatar a dívida social e reafirmar o Brasil como nação soberana. Para tanto, é preciso combater a inflação e, para isso, é preciso arrumar as contas públicas. Essa é a ordem: contas públicas arrumadas, inflação baixa, crescimento, resgate da dívida social, soberania.

O Plano Real trocou a inflação por juros altos. Comentei hoje mais cedo que o novo guru de Lula, Gabriel Galípolo, está muito preocupado com os juros altos. Este é o problema do diagnóstico desenvolvimentista, tentar começar a construir o edifício pelo teto. A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte forma: o governo faz dívida para investir no resgate da dívida social, este resgate gera crescimento, este crescimento faz com que a dívida pública diminua, jogando os juros para baixo, o que, por sua vez, retroalimenta o crescimento, em um círculo virtuoso. O problema dessa construção é iniciar com o aumento da dívida, o que pressiona os juros para cima. Por isso, Galípolo se diz preocupado com a escalada dos juros, o que sugere alguma medida heterodoxa inicial para segurar os juros enquanto a mágica do crescimento não funciona. Já vimos esse filme antes.

Não à toa, Galípolo propõe a moeda única sul-americana como ideia para robustecer a nossa “soberania monetária”. Ou seja, uma construção que começa com o teto (a soberania), sem nenhuma menção à fundação (a organização das contas públicas). Típico.

O nosso edifício foi construído pela metade. Estamos longe de uma hiperinflação, mas estamos igualmente longe de termos inflação e juros civilizados. Nos demos por satisfeitos tendo uma fundação meia-boca, o que nos leva a ter um edifício fraco: nosso crescimento é medíocre, nosso resgate da dívida social é exasperantemente lento e a nossa moeda é respeitada somente dentro de nossas fronteiras, e olhe lá. Precisamos de um novo Plano Real, que enfrente o desajuste das contas públicas de frente. Sobre este fundamento, o restante do edifício poderá ser construído com segurança. Sem isso, continuaremos em busca de soluções mágicas, que prometem o céu e entregam o inferno.

O lobo concursado

Até o momento não tinha formado uma opinião sobre a tal nota de R$200. Desde o início, a iniciativa me pareceu um pouco esquisita, em um país: 1) com trauma inflacionário, onde a impressão de notas mais altas sempre foi identificada com a desvalorização da moeda, 2) pobre, onde grande parte da população não vê com frequência quantias múltiplas de R$200 e 3) onde se guardam grandes quantias de dinheiro em malas dentro de apartamentos, ou em valises carregadas às pressas de dentro de pizzarias, ou ainda sacadas do caixa de lojas de chocolate.

Mas a justificativa parecia fazer sentido: o auxílio emergencial havia injetado bilhões de reais na economia, e os beneficiários precisavam sacar o dinheiro. Assim, estavam faltando notas, e é mais barato imprimir R$200 do que R$ 100.

Gustavo Franco desmonta a tese toda neste artigo.

Em primeiro lugar, faz um apanhado geral das práticas internacionais. E, para aqueles que comparam os R$100 (a nossa maior nota) com os US$ 100 (a maior nota americana), ele responde com a comparação entre as rendas per capita. Sim, os nossos R$100, para fins práticos, são equivalentes aos US$ 100 dos EUA. E lá, estão discutindo a eliminação dessa nota, justamente para dificultar o crime. Tente você usar uma nota de US$ 100 no dia a dia nos EUA. É muito difícil. Aqui, o uso dos R$100 também é difícil (já foi mais), imagine usar a nota de R$200.

Neste ponto, Franco faz uma comparação certeira: o que é mais difícil, usar os R$200 em dinheiro vivo ou dentro de um aplicativo do celular? Ah, mas o povo não tem celular. Bem, esse povo que não tem dinheiro nem para comprar um celular vai ter a mesma dificuldade de usar os R$200 no comércio.

Pra surpresa de ninguém, estamos indo na contramão do mundo. Enquanto se eliminam cédulas maiores para dificultar a vida do crime e se estimulam os meios de pagamento eletrônicos, aqui vamos produzir uma nota de maior valor. O lobo-guará está em extinção, mas deve haver meios mais inteligentes de mantê-lo circulando por aí.

O novo que é velho

Romeu Zema foi o único governador eleito pelo Novo. Ao ser perguntado sobre a privatização da Cemig e de outras estatais de Minas Gerais, respondeu com o que vai abaixo. Ciro Gomes não responderia outra coisa.

Começa a ficar claro porque Gustavo Franco não topou ser o secretário de Finanças de Zema. Se esta for a vitrine do Novo, receio que o partido terá problemas.

Ainda há esperança

Da página de Gustavo Franco:

Hoje, 1 de julho de 2018, o real faz 24 anos. É o padrão monetário mais bem sucedido de todos os 9 que o Brasil já teve. Até hoje, 24 anos depois, voce vai ter dificuldade com o troco para a nota de R$100. Em 1967, quando o cruzeiro de 1942 foi substituido pelo cruzeiro novo, Pedro II, da cédula de Cr$ 100, ganhou um carimbo redondo e passou a valer 10 centavos. Vamos festejar uma reforma que fizemos direito, e que era muito dificil. Podemos perfeitamente resolver os outros problemas, o Brasil não é um caso perdido.

A direção da migração

Gustavo Franco, em seu artigo no Estadão de hoje, nos traz dados reveladores: a Justiça do Trabalho consumiu, sozinha, 0,28% do PIB brasileiro em 2015. A Justiça inteira nos EUA consumiu 0,14% do PIB americano.

Não é à toa que tem um contingente imenso de trabalhadores americanos tentando migrar para o Brasil, para usufruir da proteção proporcionada por essa legislação e por essa justiça.