Não há mágica

Desculpem-me já de antemão os corações mais sensíveis, mas neste post vou exercitar mau lado capitalista selvagem. O tema é o recorrente, segundo o Ministério Público, descumprimento de liminares judiciais por parte da Hapvida, a maior operadora de planos de saúde do Brasil.

Em primeiro lugar, a ação do MP é baseada em “sentimento”, não em números concretos. Segundo a desembargadora que coordena o núcleo de mediação do TJ-SP, “não temos números específicos, mas percebemos quando uma situação rara e excepcional vai se tornando reiterada”. Além disso, a reportagem cita um crescimento de 422% no número de queixas contra a operadora nos últimos 4 anos, contra um crescimento de 193% da setor. Só faltou ajustar pelo crescimento da própria operadora, que, como sabemos, se tornou a maior do Brasil nos últimos 4 anos após várias aquisições.

Mas foi o caso concreto escolhido pelo repórter que mais me chamou a atenção. Segundo a matéria, o Estadão “analisou centenas de processos”, e selecionou um para ilustrar a reportagem. Trata-se de uma senhora de 60 anos (chamada de “idosa” no título), que faleceu depois de ter uma cirurgia negada pela operadora. A história é triste, e fica ainda mais tocante depois que vemos a foto da filha segurando o retrato da mãe, em uma pose de luto.

O que diz a operadora? Que o pedido de cirurgia ocorreu 3 dias após a adesão ao plano. 3 dias. Bem, digamos que o plano não tenha sido contratado com o intuito de forçar a cirurgia, que houve uma infeliz coincidência. Esse não é um problema do plano de saúde. Carências são o básico na contratação de planos de saúde, o único ponto negativo destacado pelos corretores quando vendem o produto. É só óbvio que a operadora iria negar a cirurgia, tendo como base o contrato.

Mas aí entra a indústria de liminares contra planos de saúde. Tente dar um Google, e você encontrará páginas e páginas de artigos de advogados explicando como é fácil e rápido obter liminares contra os planos. E isso porque a OAB proíbe publicidade por parte de advogados. Caso contrário, teríamos páginas e páginas de links patrocinados. Some-se a isso um judiciário muito humano, que quase sempre se coloca ao lado da “parte mais fraca”, independentemente do que diz o contrato. Afinal, saúde não é mercadoria, não é mesmo?

Planos de saúde são o segundo setor mais demonizado da economia, perdendo apenas para os bancos. A questão é que são empresas que precisam ter retorno para continuarem operando. A julgar pelo comportamento das ações das empresas do setor nos últimos 3 anos, isso não vem acontecendo. No limite, vamos todos para o SUS, sistema que não depende de rentabilidade para funcionar. Mas aí, não tem liminar que resolva o problema…

Não me entendam mal. Não sou pago para defender planos de saúde e nem tenho ações de empresas do setor. Nos casos em que o contrato não for cumprido, a empresa merece ser processada. Mas isso não inclui exigir cirurgia 3 dias após a adesão. “E se fosse com a sua mãe?” Bem, se fosse minha mãe, eu não esperaria o estado de saúde dela piorar para contratar um plano de saúde.

A opção é o SUS

Saúde é um troço complicado no mundo inteiro. Nunca ninguém está satisfeito. Em qualquer pesquisa de opinião, a saúde sempre aparece como Top 3 entre as preocupações dos cidadãos e, normalmente, recebe avaliação negativa.

Sempre se aponta o modelo do país A, B ou C como ideal. Normalmente quem faz isso não vive nos países A, B ou C para experimentar na pele o tal sistema de saúde modelar. Por exemplo, sempre ouvi falar muito bem do sistema inglês de saúde, em contraposição ao americano, por exemplo. Até que assisti ao filme ”Eu, Daniel Blake”. Se você assistiu, sabe do que estou falando.

E por que isso acontece? Porque os seres humanos, apesar de desejarem viver eternamente, infelizmente morrem. Há um descompasso insanável entre desejo e realidade, que gostaríamos que fosse resolvido pelo sistema de saúde. Claro, racionalmente sabemos que isso não é possível. Mas quem disse que somos racionais quando se trata de nossa saúde? Neste caso, queremos tratamento premium pagando quantias módicas.

Essa já longa introdução vem servir como pano de fundo para que possamos analisar a reportagem principal de hoje do Estadão: “Reajuste dos planos de saúde na faixa acima de 59 anos pode superar os 40%”.

Estas são as letras grandes, aquelas que a maioria lê sem entrar no detalhe da notícia. Não conta, por exemplo, que o preço dos planos de saúde foram reduzidos em 9% em 2021, resultando em um reajuste de 6% no acumulado dos dois anos. Além, claro, de que colocar na manchete o reajuste por mudança de faixa etária, que sempre acontece e não é novidade, embute uma segunda intenção. E é isso que vamos analisar.

A reportagem, em si, é jornalisticamente correta. Ouve os dois lados e tals. O fato de ter virado manchete, no entanto, indica que existe um problema. Claro que um reajuste de 40% é um problema. A questão é como se “resolve” esse problema. Subliminarmente, resolve-se demonizando-se a saúde privada.

A ilustrar este ponto, temos um artigo de uma professora da UFRJ, Lígia Bahia.

Coincidentemente, em entrevista ao Valor de hoje, o candidato a governador do RJ, Marcelo Freixo, cita Lígia Bahia como uma das pessoas que poderiam fazer parte da sua equipe de governo. Portanto, a professora tem pedigree conhecido. Foi convidada a escrever uma análise já se sabendo o que iria escrever.

E a professora da UFRJ não decepcionou quem a convidou a ocupar o espaço do jornal. Defendeu que o melhor modelo é um que seja “solidário”. E, para isso, adivinha, é necessário que tudo “fique sob a responsabilidade do poder público”. A solução, portanto, seria um grande SUS.

Não deixa de ser irônico que os professores da UFRJ possam contar com convênios particulares. “SUS é um modelo ideal, mas gosto de pagar convênio particular porque rasgar dinheiro é meu passatempo preferido”.

Claro, sempre se pode dizer que o SUS não presta bons serviços porque não é adequadamente financiado. Bem, o orçamento do ministério da saúde para 2022 é de R$ 160 bilhões. Dividindo-se pela população que não tem plano de saúde (mais ou menos 170 milhões) resulta em um gasto per capita de mais ou menos R$ 950. Isso considerando todo mundo, pessoas de todas as idades. Um plano da Prevent Senior, voltado apenas para as pessoas mais idosas, custa mais ou menos isso, e provê um serviço alguns degraus acima do SUS. As pessoas, quando podem, assinam planos que custam R$ 500 para fugir do SUS. Pergunta: quanto mais dinheiro seria necessário para tornar o SUS uma opção tão boa quanto planos que custam R$ 500?

Para aqueles que acham que as operadoras ganham rios de dinheiro às custas da saúde do povo, normalmente sugiro a mesma coisa que aconselho quando as pessoas dizem que os bancos “lucram muito”: seja sócio. Compre ações dessas operadoras, e seja sócio desses lucros maravilhosos. Já aviso, no entanto, que quem tentou fazer isso não tem se dado bem ultimamente. Por exemplo, veja abaixo a rentabilidade das ações da Hapvida, uma das maiores operadoras de planos de saúde do país, comparada com a rentabilidade do Ibovespa nos mesmos períodos:

Hapvida: 2022: -35%; 1 ano: -58%; 3 anos: -7%

Ibovespa: 2022: +6%; 1 ano: -12%; 3 anos: 15%

Podemos observar que, talvez, as operadoras não estejam lucrando tanto assim.

Não tenho procuração das operadoras para defendê-las. São empresas que buscam lucro, que é a melhor forma (na verdade, a única forma) de continuarem oferecendo os seus serviços ao longo do tempo. E seus serviços são absolutamente necessários. Caso não fossem, não haveria compradores de planos de saúde. A demanda (inclusive dos professores da UFRJ) justifica a oferta. E a demanda só existe porque o SUS é uma solução capenga, que está longe de entregar aquilo que o #vivaosus promete.

Os serviços prestados pelos convênios particulares estão longe, muito longe, da perfeição. E como vimos logo no início, quando se trata de saúde, a perfeição estará sempre distante. Mas aqui se trata de entender quais as opções disponíveis, dado um determinado orçamento. Quem não está satisfeito, sempre pode contar com o SUS.