Não somos idiotas

“Jovem com problemas mentais, pedreiro sem antecedentes criminais, usando uma arma de brinquedo”. Note a quantidade de palavras usadas para caracterizar pureza. Assim o jornalista descreve o sequestrador do ônibus na ponte Rio-Niterói, em um perfil sobre o governador afastado do Rio feito para demonizar a agenda de confronto adotada pela polícia do Rio.

Não vou entrar aqui no mérito da adequação ou não dessa política de confronto. Não tenho opinião formada sobre isso. Meu ponto é só a maneira idiota (não consegui pensar em outro adjetivo) para defender o ponto de vista contrário.

Havia uma situação de risco para os passageiros do ônibus, as negociações se mostraram infrutíferas, a polícia agiu conforme o protocolo para salvar as vidas de inocentes. Caracterizar essa ação como o assassinato de um inocente é uma ofensa à inteligência alheia. Por isso, idiota.

A polícia tomou o risco de matar um inocente? Sem dúvida. Mas o risco inverso também existia: se escolhesse não matar o sequestrador, outros inocentes poderiam morrer. Afinal, a polícia não sabia que se tratava de um “jovem com problemas mentais, pedreiro sem antecedentes criminais, usando uma arma de brinquedo”. No cálculo de riscos, parece-me que a polícia tomou a decisão correta, nesse caso específico. Acho que o jornalista concordaria comigo se tivesse um parente naquele ônibus.

Esse tipo de abordagem adotada pelo jornalista causa o efeito justo oposto: ao tratar as pessoas como idiotas, o efeito é aumentar o apoio a medidas extremas. Certamente há formas mais inteligentes de ganhar apoio para a “causa da não-violência”.

O diálogo que resta

Ontem, mais uma vez uma amiga postou a balbúrdia instalada em frente ao seu prédio, altas horas da noite, com direito a pancadão, que se seguiu a um “desfile de bloco” que não estava na programação.

Minha amiga pergunta: onde está o poder público? Cadê a PM para colocar ordem na casa? Ao que eu respondo: está afastando seus agentes que procuraram colocar ordem na casa.

Ontem mesmo, circulou vídeo de truculência policial contra estudantes de uma escola estadual.

Obviamente, foi objeto de reportagem indignada da Globo News, com direito a entrevista com “especialista”, que recomendava o diálogo como melhor forma de enfrentar esse tipo de situação.

Pergunto: a direção da escola, ao chamar a polícia, já não havia tentado o “diálogo” com os estudantes? A chamada da polícia já não caracteriza o esgotamento de todas as outras possibilidades de resolver o problema? Aliás, tanto na matéria da Globo News quanto na reportagem do Estadão (de onde tirei a manchete) não há menção ao tipo de problema causado pelos estudantes, a ponto de a direção do colégio ter sentido necessidade de chamar a polícia. Os repórteres nos devem essa informação, que não é um mero detalhe.

Obviamente, nada justifica a truculência policial. Excessos devem ser punidos. Mas a cobertura jornalística deveria procurar levantar todas as informações, para que os leitores e telespectadores pudessem formar sua opinião com mais objetividade. A polícia é a vilã em 100% dessas “reportagens”. Há algo de errado.

Voltando ao pancadão no bairro de classe média. Se a PM aparecesse por lá, provavelmente o “diálogo” com “foliões” bêbados seria infrutífero. Os policiais, então, seriam obrigados a empregar força. Aliás, é para isso que serve a polícia. Se o diálogo resolvesse, os próprios moradores poderiam conversar com os “foliões”. Ao empregar força, imagens da “truculência policial” viralizariam imediatamente, levando ao afastamento dos agentes da lei. A PM sabe disso. Talvez por isso, estejam preferindo deixar a população resolver seus problemas com “diálogo”.

Em busca de uma narrativa

Em jornalismo existe uma lei que diz que, se você procurar bem, sempre existirá uma estatística que rende uma boa manchete. Este é o caso aqui. Diante da relativa estabilidade do número de mortes causadas por policiais, a reportagem encontrou uma estatística útil: o número de mortes causadas pela Rota dobrou de 2018 para 2019. Prato cheio.

Desde o velho bordão de Maluf (“vou colocar a Rota na rua!”) até filmes como Tropa de Elite, esses batalhões especiais têm seus nomes ligados à eficiência no combate à criminalidade com o uso da violência extrema. Quer coisa melhor do que uma estatística que prove isso?

Mas, como dizia o saudoso Roberto Campos, estatísticas são como biquínis: mostram tudo mas escondem o essencial.

Em primeiro lugar, a reportagem apresenta um bonito infográfico mostrando a evolução do número de mortes pela Rota de 2018 para 2019: 51 para 101.

Vamos combinar que, para dar essa informação, não precisava de um gráfico, né? Mas o problema é outro: e os outros anos? Certamente esses dados existem. Por que não informar ao público? Ficamos sem saber se este número de 2019 é de fato um ponto fora da curva ou faz parte de uma média que vem prevalecendo nos últimos anos. Ficamos na dúvida se a reportagem escondeu esses dados porque não ornam com a versão, ou se foi um simples “esquecimento”.

O ouvidor das policiais tem uma explicação para essa “explosão de mortes”: por ser uma “tropa de elite”, a Rota seria mais sensível ao discurso de que “bandido bom é bandido morto”.

Hein?!? O que tem a ver o cy com as calças? Por que cargas d’água os outros batalhões seriam menos sensíveis a esse discurso? Non sense. Mas o bravo ouvidor não parou por aí. Culpou também o “discurso conservador que permeia o Estado e o País”.

Bem, seria assim se assim fosse. Podemos observar no gráfico que houve um salto da letalidade policial de 2013 para 2014 de uma média de 500 a 600 para uma média de 800 a 900. O número de 2019 não destoa da média desde 2014.

A pergunta que obviamente não foi feita ao ouvidor (mesmo porque jornalista está mais preocupado em lacrar do que em informar) é porque este tal “pensamento conservador” começou a fazer estragos especificamente em 2014, quando o país ainda vivia uma “normalidade democrática” (contém ironia).

Bem, ontem foi o último dia do tal ouvidor. Foi substituído por outro, escolhido de uma lista tríplice pelo governador João Doria. Este novo ouvidor, ao que parece, foi elogiado pelo responsável pelo grupo de advogados “Prerrogativas”, aquele que defende o direito pela impunidade de quem pode pagar bons advogados. Ao que parece, poderemos continuar contando com explicações sociológicas convincentes para a letalidade policial.