Matando o mensageiro

Essa discussão é assaz interessante: seriam os jornais responsáveis pelo conteúdo de suas entrevistas?

O caso concreto, que deu ensejo ao atual julgamento no STF, refere-se a uma entrevista de 1995 no Diário de Pernambuco, em que o entrevistado acusa um parlamentar de um certo crime. Durante o processo na justiça, o entrevistado negou que tivesse feito tal acusação, e o jornal já não tinha a gravação da entrevista. A justiça condenou o jornal por calúnia, e o caso chegou ao STF.

A mim me parece óbvio que os jornais não deveriam responder por calúnia no caso de entrevistas. Afinal, são apenas os mensageiros. Como bem lembra o presidente da ANJ, Marcelo Rech, grandes momentos da política nacional, como o impeachment de Collor e o Mensalão, começaram com entrevistas bombásticas. Se os jornais estivessem sob a ameaça de serem processados, talvez as entrevistas com Pedro Collor e Roberto Jefferson jamais tivessem conhecido a luz do dia. No caso do Diário de Pernambuco, o entrevistado poderia ter entrado com um processo contra o jornal por ter “inventado” a entrevista logo depois de publicada, mas não o fez.

Mas gostaria de chegar a outro lugar. Essa discussão nos leva à responsabilidade das plataformas sobre o conteúdo publicado por terceiros, um debate que esquentou durante a tramitação do chamado PL das Fake News. Para quem não lembra, o PL estabelecia que as plataformas deveriam fazer um trabalho de curadoria sobre os conteúdos, retirando não somente os falsos, mas também os nocivos. Ora, se os jornais, que fazem um trabalho de edição do que publicam (afinal, essa é a definição de jornal), não podem ser responsabilizados pelas palavras de terceiros transcritas em suas páginas, quanto mais uma plataforma que, por definição, não faz edição.

O que a ANJ corretamente defende, a liberdade de informação, vale com mais razão para as plataformas. Que o produtor do conteúdo seja responsabilizado pelo que falou. O jornal e as plataformas são apenas o papel da carta.

Um verdadeiro democrata

Não deixa de ser paradoxal este post de Marcel Van Hattem. O deputado usa de sua liberdade de expressão e de sua imunidade parlamentar para tecer pesadas críticas ao STF, afirmando que os magistrados supremos não respeitaram a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar de um colega. Bem, se fosse essa a conduta, Van Hattem poderia esperar a mesma reação do STF com relação a si mesmo.

Mas Marcel Van Hattem sabe bem a diferença entre o que vai escrito neste post e o que disse o deputado Daniel Silveira. Aqui, temos uma crítica democrática e republicana. Lá, uma ameaça de agressão física e incitação à violência.

Cansei de tecer críticas ao STF nesta página. Não preciso de imunidade parlamentar para isso. Vivo em uma sociedade democrática, em que o exercício da livre opinião não é criminalizado. O STF, no entanto, entendeu que a manifestação de Daniel Silveira extrapolou o direito à crítica, tão bem exercido por Marcel Van Hattem. Entenderam os juízes (10 de 11) que as falas de Daniel Silveira foram mais que “desprezíveis”. Foram criminosas. E acho que aqui está o busilis da questão.

Nenhum direito é absoluto. Ninguém tem o direito, por exemplo, de cometer crime. Portanto, a questão envolvida aqui não é o “direito à liberdade de expressão”, tão bem exercido por Marcel Van Hattem, mas se a fala de Daniel Silveira constitui ou não crime. Se constitui crime, o deputado não tem o direito de exercer a sua liberdade de expressão. É exatamente a mesma discussão quando se debate sobre o “direito” ao aborto. A questão principal é se o feto é ou não um ser humano. As questões de “liberdade sobre o próprio corpo” ou “problema de saúde pública” são secundárias quando está em jogo o principal, o direito à vida de um ser humano. Do mesmo modo, o “direito à liberdade de expressão” se torna secundário quando se trata de usar esse direito para cometer um crime. Portanto, é isso que deve ser debatido, e não uma pretensa “agressão à livre manifestação”, assim como o direito ao aborto não se resume a um pretenso “direito da mulher ao próprio corpo”.

E aqui chegamos ao julgamento de anteontem. Eu, particularmente, acho que a fala do deputado Daniel Silveira extrapolou o simplesmente “desprezível”, incorrendo em crime. Tenho amigos que, ouvindo a mesma fala, acharam que foi só bravata. No entanto, o que eu ou você achamos é irrelevante. Na democracia, quem julga é o juíz constitucionalmente constituído. É como em um jogo de futebol: podemos ficar debatendo horas sobre um determinado lance, mas a decisão do juíz é soberana. Por ocasião do impeachment, os petistas chamaram de “golpe” todo o processo, desrespeitando a decisão dos juízes constitucionalmente constituídos para julgar a ex-presidente. No caso, os parlamentares.

Aliás, há questionamento, inclusive, sobre se o STF poderia estar julgando um caso em que o próprio STF foi o agredido. No caso, como há foro privilegiado, não há outra Corte possível. E, se não for o STF a julgar, os deputados ficariam completamente inimputáveis. Imagine a seguinte situação: um deputado entra no STF e atira em um ministro. Segundo essa tese, o STF ficaria de mãos atadas pelo simples fato de ter sido o agredido. E, ademais, quem apresentou a denúncia foi a PGR, a Câmara (como bem lembrou Van Hattem) permitiu que o deputado continuasse preso e 10 de 11 ministros, inclusive André Mendonça, avaliaram que houve crime na fala de Daniel Silveira. Portanto, estamos longe de uma decisão arbitrária.

O deputado Marcel Van Hattem, combativo como é, inicia seu post dizendo que o STF usou a democracia para golpear a democracia. Bem, o entendimento do STF foi o justo inverso: o deputado Daniel Silveira teria usado a democracia para golpear a democracia. Independentemente de quem esteja com a razão, Van Hattem se mostra um verdadeiro democrata, ao reconhecer que é na arena política que se resolvem essas questões. Muito diferente da fala de Daniel Silveira.


Aqui, o post de Marcel Van Hattem

NÃO SE DEFENDE A DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO ATACANDO A PRÓPRIA DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO

Não se trata apenas da condenação inconstitucional de um parlamentar: é uma decisão do STF que afronta a própria democracia e as instituições sob o pretexto de defendê-las. Temos agora um preso político no país em plena democracia: não há maior contradição e injustiça possível.

As falas gravadas em vídeo por Daniel Silveira no ano passado foram reprováveis. A perseguição desproporcional e ilegal que ele tem sofrido, porém, tem obliterado até mesmo o conteúdo de sua manifestação, transformando o suposto algoz em vítima.

Ser julgado por seus acusadores é autoritarismo que não cabe no Estado de Direito. É bom lembrar que tudo começou com o torto inquérito fake contra a apuração sobre Toffoli da Revista Crusoé, num claro atentado da mais alta Corte do Judiciário contra a liberdade de imprensa.

O corporativismo do STF foi se sobrepondo às garantias constitucionais e a defesa das liberdades no país à medida que foi centrando fogo em inimigos rejeitados pelo establishment. Quando foi contra a imprensa livre ainda houve alguma reação. Agora, grande apatia.

Pior: a própria Câmara dos Deputados errou ao manter Daniel preso, com meu voto e manifestação contrária, abrindo o precedente perigosíssimo da cassação e prisão inconstituiconal de parlamentares por manifestação verbal. O foro é a Comissão de Ética da Câmara, jamais o STF.

Na prática o que temos é um STF condenando a prisão por 8 anos um parlamentar por uma manifestação repugnante enquanto atos e ações repugnantes e até mesmo hediondos como estupros, homicídios e assassinatos seguem em larga escala impunes no Brasil.

Infelizmente a Suprema Corte não fez Justiça. Fez política. Agiu de forma vingativa, não com a serenidade e imparcialidade requerida de magistrados. Quis dar resposta à fala de um parlamentar mas a desproporção e ilegalidade ferem a própria democracia e o Estado de Direito.

Muitos perguntam: o que fazer? Pois bem: assim como defendo que não se pode justificar defesa da democracia sendo autoritário nem a defesa da Constituição com atos ilegais, também digo claramente que a resposta está na ação POLÍTICA contundente mas equilibrada de cada um.

Você pode não gostar dos deputados e senadores com mandato, mas não pode ignorar o fato de que chegaram em Brasília com o voto do povo. Se Câmara e Senado permanecem apáticos com raras exceções é porque seus membros refletem a qualidade dos votos dados a eles na eleição passada.

Você pode optar por não resistir e não reagir. Pode optar por desgostar de política e não se envolver para melhorar a qualidade dos seus representantes. Pode. O que você não pode é depois achar que tem o direito de só reclamar.

Dar opinião tem ficado cada vez mais perigoso no país, especialmente a depender sobre quem você está falando. É claro que de forma nenhuma subscrevo a fala de Silveira – a repudio. Mas repito: não é sobre ele. Lembrem-se da Crusoé: é sobre a quem a crítica é dirigida.

Não importa o quão elegante e politicamente correto seu argumento seja: o recado da votação de do STF de ontem é um “cala-boca” a quem ousar contrariar os neoiluministas do STF, que se arrogam o direito de estarem acima de quaisquer suspeitas.

Não estou na política, porém, para me calar ou submeter-me a ameaças de me calarem. Continuarei sempre na trincheira da defesa das liberdades contra a tirania de quem quer que seja, de onde quer que venha. Minha maior missão é atrair à política mais pessoas com esta determinação.

A despeito do que tem feito de forma autoritária o STF, é apenas com mais democracia, mais liberdade e mais defesa do Estado de Direito e correta aplicação das leis que se defende verdadeiramente a democracia, garantem-se as liberdades, e solidifica-se o Estado de Direito.

Os limites da imunidade parlamentar

“Daniel Silveira usou o seu mandato como escudo protetivo. Ele usou o Parlamento como esconderijo”. Estas foram as palavras que Alexandre de Morais usou para afastar a hipótese da imunidade parlamentar na defesa do deputado.

De fato, a imunidade parlamentar não cobre a possibilidade de que o titular de mandato parlamentar cometa crime. Parece-me que esta premissa pode ser razoavelmente aceita por todos. Se um parlamentar, por exemplo, assassina um colega em plenário, trata-se de um crime. Portanto, o titular do mandato não está imune ao longo braço da lei neste caso.

O caso do deputado Daniel Silveira, portanto, deve ser analisado do ponto de vista do suposto crime cometido. Se crime houve, sua imunidade parlamentar não pode ser usada para protegê-lo de seus atos.

Uma segunda questão que se coloca é a seguinte: pode-se cometer crime através do uso da palavra? Com certeza. Há crimes tipificados no Código Penal que envolvem somente o uso da palavra: calúnia, difamação e ameaça de violência física. O próprio ato de falar, neste caso, constitui crime.

É neste ponto que as pontas do caso Daniel Silveira se unem: a atividade parlamentar se desenvolve principalmente pelo uso da palavra. Pode um parlamentar ser condenado pelo uso do que caracteriza o seu mandato, ou seja, o uso da palavra? Estariam aqueles crimes mencionados acima suspensos pela imunidade parlamentar? Pode um parlamentar caluniar, difamar ou ameaçar com violência física pelo simples fato de ser parlamentar?

O caput do artigo 53 da Constituição é claro como a luz do dia: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Os parágrafos deste artigo apenas estabelecem as condições nas quais os parlamentares podem ser julgados e condenados: fórum privilegiado, regras para a prisão em flagrante, licença da respectiva Casa Legislativa para o processo etc. Em nenhum dos parágrafos se diz que o uso da palavra pode ser fonte de processo criminal, hipótese afastada pelo caput.

O ministro Alexandre de Morais, na Petição 9456 DF, de abril/2021, deixava clara a sua interpretação deste artigo: “A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ou seja, já haveria jurisprudência no STF de condenações em virtude de manifestações no âmbito parlamentar. Realmente, não lembro de outro deputado que tenha sido condenado pelo fato de ter falado que cometeria um crime ou incitado a outros a cometerem crimes. Parece-me que foi estabelecida uma nova jurisprudência.

Óbvio, estou longe de ser especialista em interpretação de leis. Sou apenas uma pessoa letrada, que entende razoavelmente bem o que lê. E a Constituição é um conjunto de palavras inteligíveis, assim como o discurso do deputado Daniel Silveira. Se a frase “o povo entre dentro do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue dentro de uma lixeira” significa claramente uma instigação à violência física contra membro de outro Poder (temos aqui ao menos dois crimes), a frase “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” significa claramente que quaisquer palavras, mesmo que configurem crime, como é o caso, não deveriam servir de base para a condenação civil ou penal do parlamentar.

O constituinte, quando elaborou este artigo, tinha em mente justamente a proteção das garantias democráticas fundamentais, entre as quais, a liberdade de discurso e de voto por parte do parlamentar. Não custa lembrar que o Congresso Nacional foi fechado em dezembro de 1968 justamente porque a Câmara dos Deputados recusou-se a permitir o processo do deputado Marcio Moreira Alves, que havia chamado o exército de “valhacouto de torturadores” e instigado os brasileiros a boicotarem os desfiles de 7 de setembro e às mulheres que se recusassem a se relacionar com militares. Diríamos que, guardadas as devidas proporções, Marcio Moreira Alves era o Daniel Silveira da época, instigando a subversão através de palavras. Claro, os dois casos não são simétricos e nem comparáveis, um estava defendendo valores democráticos, o outro defende o uso da força para impor suas ideias. A semelhança está apena na arma utilizada: a palavra.

Daniel Silveira usou palavras chulas, fez ameaças e instigou a violência contra os membros de outro Poder da República. São crimes, sem sombra de dúvida. O diabo é que o artigo 53 da Constituição não abre exceção à imunidade parlamentar. Se houvesse um parágrafo dizendo algo do tipo “a imunidade estabelecida no caput será suspensa caso as opiniões, palavras e votos atentem contra os artigos x, y e z desta Constituição”, então teríamos base legal para a sua condenação. Mas o constituinte não quis prever tal situação, justamente porque qualquer limitação à palavra do parlamentar cheira a arbítrio.

Por outro lado, e talvez seja este o ponto, legítimo por sinal, a que se apegam os que concordam com a decisão quase unânime do Supremo, o deputado Daniel Silveira usou da palavra que o regime democrático lhe garante para atacar um dos Poderes que constituem a base material do regime. Não estou aqui afirmando que o STF que temos seja um exemplo de valorização dos ideais democráticos, mas a ideia de uma Corte Suprema imune à influência dos outros poderes é central nos regimes democráticos. Há formas, dentro das regras democráticas, de garantir a isenção do STF. Por exemplo, através da cassação de juízes. Ao defender que o “povo” invada o STF e expulse os ministros na base da força, o deputado está dando razão aos que pensam estar defendendo a democracia ao prendê-lo. A ideia de atuar fora da lei para fazer prevalecer a lei não parece ser muito coerente. Apesar de o artigo 53 lhe garantir o direito de falar o que bem entender, parece ser contraditório usar este direito justamente contra o regime que lhe garante este direito.

Então, por um lado, a letra da lei garante o direito de manifestação do parlamentar. Por outro lado, este direito é garantido justamente pelo tipo de regime atacado pelo parlamentar. E qualquer regime atuará no sentido de defender os seus pilares, como foi o caso. Por isso, entendo quem ache um absurdo a decisão do STF, e entendo também quem concorde. Cada um olha a realidade de um determinado ponto de vista. E poucos admitem que sua opinião, muitas vezes, é influenciada e antecedida pelas suas opções políticas.

Liberdade de expressão, lá vamos nós novamente

Há alguns dias, publiquei um post criticando o manifesto dos jornalistas da Folha, que condenava a decisão do jornal de publicar artigo que se opunha ao conceito de “racismo estrutural”. Segundo os jornalistas da Folha, o artigo seria racista, pois contra um “consenso” do debate racial. Minha tese era de que há consenso somente em alguns círculos, e que o debate está em aberto. Portanto, impedir contrapontos a uma tese ainda em construção era agredir a liberdade de expressão.

Não demorou a surgir, como é comum nesses casos, o argumento “reductio ad hitlerum”. Do que se trata? Basicamente do seguinte: se você não é capaz de defender a sua tese referindo-se a Hitler ou ao nazismo, a sua tese não vale nada. Neste caso, a tese se aplicaria da seguinte forma: se você não pode usar a sua liberdade de expressão para defender Hitler ou o nazismo, então você também não pode usá-la para defender tal ou qual ideia, igualmente nefasta. No caso, a ideia de que o “racismo estrutural” é controversa, mas poderia ser qualquer outra ideia que conta com unanimidade apenas em certos círculos bem-pensantes.

Monark (que, para mim, até outro dia, era somente uma marca de bicicleta) e Kim Kataguiri caíram feito patinhos na armadilha do “reductio ad hitlerum”. Para defender o direito irrestrito à liberdade de expressão, tiveram que admitir que o nazismo é uma forma legítima de expressão de ideias. Não precisava ser assim, mas o “reductio ad hitlerum” não lhes deixou saída.

Qual foi o problema? Não admitir que a liberdade de expressão não é um território sem limites, que há coisas que caem fora de seus domínios. O nazismo é uma delas. Há uma unanimidade universal sobre a perversidade do regime nazista, que tinha como objetivo a eliminação de etnias “inferiores”. Tanto é assim, que Monark e Kataguiri fizeram questão de se descolar dessas ideias, deixando clara a sua rejeição. Mas não teve jeito: a coisa é tão pegajosa, que defender a liberdade de expressão de nazistas é equivalente a ser nazista. O nazismo é algo tão perverso, a própria perversão por antonomásia, que engole tudo à sua volta. Simplesmente não dá para discutir a liberdade de expressão “em tese” usando o nazismo como exemplo.

E esta é a pegadinha do “reductio ad hitlerum”: usa-se um caso extremo para se tirar uma regra geral: eu não posso defender a liberdade de expressão de Antônio Risério sem defender a liberdade de expressão dos nazistas. E esta pegadinha tem uma razão de ser: quem define, e com quais critérios, os limites da liberdade de expressão? Por que Risério pode defender que o racismo estrutural não existe, ao passo que os nazistas não podem defender suas ideias de eliminação das etnias mais fracas?

O mundo é sempre do jeito que as pessoas o veem. Por isso, há coisas que são intoleráveis para uns, mas são toleráveis para outros. Traçar uma linha divisória universal do tolerável é uma tarefa inglória, para não dizer impossível. Nessas horas, lembro da sentença do juiz da Suprema Corte americana, Potter Stewart, em julgamento sobre se um determinado filme deveria ser considerado pornográfico e, portanto, censurado para exibição livre. Em sua sentença, o juiz disse mais ou menos o seguinte: “não vou aqui procurar definir o que é ou não pornografia, e talvez nunca consiga fazê-lo de maneira inteligível. Mas EU SEI QUE É PORNOGRAFIA QUANDO EU VEJO PORNOGRAFIA, e o filme em questão não é isso”. A expressão em inglês que ele usou, “I know it when I see it”, tornou-se clássica para definir algo de bom senso, com que todo mundo concorda. Nesse sentido, todo mundo concorda que o nazismo é uma perversão, e nada justifica o direito à sua defesa.

Portanto, defender a existência de um partido nazista de modo a poder contrapor as suas ideias no campo democrático é o mesmo que, sei lá, defender um partido do PCC de modo a poder contrapor suas ideias de crime organizado em um debate no Flow. Isso não é liberdade de expressão, é somente uma idiotice.

Não caia na falácia do “reductio ad hitlerum”. As fronteiras do território da liberdade de expressão estão sempre em litígio. Podemos discutir se Risério pode ou não falar ou que falou. Mas o nazismo está definitivamente fora desse território. I know it when I see it.

Até as últimas consequências

O economista Joel Pinheiro da Fonseca escreveu ontem, na Folha de São Paulo, artigo, para dizer o mínimo, polêmico. O seu inteiro teor vai a seguir. Volto a seguir.

Vou começar concordando com o articulista: a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como todo direito, está limitado pelo direito alheio. Assim, não é permitido usar a liberdade de expressão para caluniar ou difamar alguém, por exemplo. Faço algumas considerações sobre os limites da liberdade de expressão no artigo Redes Sociais e Poder Político.

Se Joel Pinheiro está correto em sua premissa inicial, o restante de seu artigo escorrega a toda velocidade em direção ao abismo. Vejamos.

Em sociedades democráticas, o problema do respeito pelo direito alheio já foi resolvido há tempos: há um sistema judicial que serve para julgar o balanço entre os direitos dos indivíduos, segundo uma regra escrita, chamada lei. Assim, por exemplo, se alguém se sente atingido por algo que alguém falou ou publicou, tem à disposição a justiça para resolver o assunto.

Mas não é a este tipo de crime a que Joel Pinheiro se refere. O articulista aponta crimes contra a saúde pública, de racismo, contra a comunidade LGBT, de machismo, de fanatismo religioso e de desigualdade social.

Bem, alguns desses crimes apontados são tipificados pelo código penal brasileiro. Por exemplo, racismo. Ou preconceito contra pessoas de orientação homossexual, recentemente equiparado ao racismo pelo STF. Há crimes contra a saúde pública também, como quando, por exemplo, um médico atua sem as devidas licenças. Crimes de machismo, fanatismo religioso ou de desigualdade social ainda não foram tipificados, para desespero daqueles que querem um mundo melhor.

Mas o problema não é exatamente a questão da tipificação penal. Fosse assim, o articulista gastaria o seu verbo pedindo modificação no código penal. Mas não é disso que se trata. A justiça de um regime democrático não é suficiente para fazer justiça. É preciso ir além.

Neste ponto, reproduzo o parágrafo que é chave para entender a ideia do articulista: “É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos”.

Fica claro que Joel Pinheiro quer criminalizar a opinião, nada menos. A opinião seria apenas um instrumento de poder, e o debate de ideias apenas uma forma de disfarçar o exercício do poder por parte de grupos dominantes. Não haveria um legítimo debate de ideias entre iguais, mas somente manipulação, visando à manutenção do status quo.

Joel Pinheiro exemplifica o que quer dizer sem dar nome aos bois (o que não deixa de ser um sinal de covardia), ao fazer referência ao artigo de Antônio Risério sobre o racismo de negros contra outras raças. Segundo o articulista, “Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo”, pois “Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios”. Assim, fica o mundo dividido entre “bons” e “maus”, e não há como haver debate de ideias legítimo entre esses dois grupos.

Já escrevi sobre esse artigo de Antônio Risério por ocasião do manifesto dos jornalistas da Folha, que também tinha como objetivo interditar a livre circulação de ideias. Comentei, na ocasião, que a tese do racismo estrutural é uma interpretação possível da história, longe de ser uma verdade esculpida nas tábuas dos 10 mandamentos. Trata-se de um “consenso estabelecido da pauta antirracista” apenas entre aqueles que concordam com a tese. Mas Joel Pinheiro explícita aquilo que está somente sugerido no manifesto dos jornalistas: quem não concorda com a tese está interessado apenas em “manter seus interesses e privilégios”.

Neste ponto, devemos ser gratos a Joel Pinheiro. Confesso que é o primeiro artigo absolutamente claro sobre a natureza do movimento politicamente correto. Por trás da capa da virtude de recorte vitoriano, que aponta o seu dedo imaculado para todos os podres do mundo, existe uma vocação autoritária, explicitada na interdição ao debate de ideias. Consensos são fabricados deixando de fora aqueles que não concordam. Assim fica fácil.

Todos os regimes autoritários, sem exceção, buscam “o Bem”. Para isso, calam a voz dos dissidentes, que sabotam a marcha para “um mundo melhor possível”. O bravo articulista, sem receio de seguir na estrada que abriu, chega às últimas consequências do seu raciocínio: seria preciso escolher um “comitê de notáveis”, para “julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático”. Há que se reconhecer a coragem de Joel Pinheiro em levar às últimas consequências a sua tese. Desconfio que seus pares, apesar de poderem concordar totalmente com ele, lamentarão tamanho grau de transparência, que desnuda, como nunca antes, a verdadeira natureza dos monopolistas do bem.

Como nota cômica, fico imaginando esse “comitê de notáveis” (pagos pelo Estado, por suposto, ainda que o articulista não tenha entrado nesse nível de detalhe) tendo que avaliar milhares de artigos escritos diariamente. Haja leitura dinâmica!

Confesso que a ideia do “comitê de notáveis” me seduz, principalmente quando leio artigos como este. Estivesse eu em um comitê deste tipo, daria bola preta para Joel Pinheiro.


Escrevo este Post Scriptum depois de ouvir que este texto seria irônico. Se assim o for, peço publicamente desculpas a Joel Pinheiro e parabenizo-o por expor, de maneira brilhante, o absurdo a que pode levar a cultura do politicamente correto.

Qualquer texto irônico deve pressupor que o leitor conheça as convicções do autor, de modo que o texto seja reconhecido como o oposto de suas convicções. E, para que funcione, o texto precisa ser, ele todo, irônico. Não faz sentido colocar premissas em que o autor acredita e depois desmoraliza-las com as suas consequências. Obviamente, o tal “comitê de notáveis” é uma ideia de tal modo absurda, que deveria soar o alarme da ironia, assim como a forma como o autor se refere à Folha. Ocorre que esse texto veio logo em seguida a um manifesto de jornalistas que pedem justamente isso, que a Folha funcionasse como uma espécie de “comitê de notáveis”, barrando artigos não alinhados. E o manifesto dos jornalistas não foi irônico. Assim, para alguém que não acompanha de perto a produção de Joel Pinheiro, a hipérbole do “comitê de notáveis” se perdeu no raciocínio construído de maneira bastante alinhada com a agenda hoje dominante.

Quando um texto irônico precisa ser acompanhado de um “just kidding”, é porque o autor, por algum motivo, deu margem a que se fizesse outra interpretação. Claro que, ao escrever, o autor confia na inteligência do leitor. Mas o leitor precisa estar municiado de informações para interpretar corretamente o texto. E, neste caso, se o texto for realmente irônico, eu não estava.

Por fim, mesmo na hipótese do texto irônico, nada do que escrevi no post se perde, a não ser as críticas ao autor. Pelo contrário: se o texto for irônico, o autor se junta às críticas colocadas no post.

Quem deveria policiar a internet?

Eu juro que não li este artigo da Economist antes de escrever o meu último, a respeito do Facebook. Chegamos à mesma conclusão: os políticos não põem o pé no pantanoso terreno da censura na Internet e “simulam estarrecimento” (nas palavras da Economist) e “patrocinam sessões bombásticas no Congresso” (nas palavras do meu artigo) a respeito da falta de ação das redes sociais.

O fato é que fazer censura (e é disso que se trata, por mais feia que seja a palavra) vai contra a própria essência da democracia. É óbvio que há conteúdos que não deveriam estar circulando por aí. A quadratura do círculo é justamente quem define, e com quais critérios, o que não deveria estar circulando por aí. No entanto, uma coisa é certa: se alguém deveria realizar essa tarefa, não deveriam ser empresas privadas, com critérios pouco transparentes. Só estão agindo, segundo a Economist, por omissão do poder público.

E se é o poder público que deveria censurar as redes, fica a questão: um poder público que censura conteúdos poderia ainda ser considerado democrático? Antes de responder, outra questão: pode uma democracia censurar conteúdos em nome da preservação do regime democrático?

As palavras têm poder

Ontem escrevi sobre os jogos de poder envolvidos na prisão do deputado Daniel Silveira. Hoje, depois de pensar e organizar um pouco o tema na minha cabeça, vou escrever sobre o assunto em si: a questão da liberdade de expressão.

Começarei por um tema absolutamente estranho ao assunto que trataremos: o aborto. É interessante como, neste tema, os papéis se invertem: os conservadores, sempre tão ciosos em relação ao tema “liberdades individuais”, defendem um regramento do Estado para cercear a liberdade da mulher. E os progressistas, sempre prontos a estabelecer regras de comportamento, defendem com unhas e dentes a opção livre da mulher.

Vamos analisar a coisa do ponto de vista do conservadorismo, que é o que nos interessa neste momento. Por que, afinal, no caso do aborto, se quer proibir a mulher de fazer uma opção livre? Simples: porque, neste caso, há um terceiro envolvido, o feto. O debate sobre o aborto passa pela desagradável discussão sobre a natureza humana do feto. Os progressistas normalmente não querem saber sobre essa discussão. A liberdade da mulher vem antes.

Ernesto Araújo chegou a afirmar que preferiria ser pária entre as nações por defender a liberdade. No entanto, no caso do aborto, tenho certeza que o nosso chanceler defende uma “limitação” na liberdade da mulher. Porque, afinal, a minha liberdade termina onde começa a do outro. E, neste caso, há um outro envolvido.

Não existe liberdade absoluta. Não existe liberdade de expressão absoluta. Assim como no caso do aborto, é preciso analisar se o exercício daquela liberdade constitui um crime. Temos liberdade para fazer o bem, não para fazer o mal. Portanto, não há como escapar da análise da fala do deputado, por mais que essa análise seja espinhosa.

Os deputados, vez por outra, a depender do seu nível de educação, chamam uns aos outros de canalhas, bandidos, corruptos. Coisas que podem gerar, inclusive, processos por injúria. Por que, então, neste caso específico, o deputado foi preso, enquanto, nos outros casos, há todo um processo antes? Não vou entrar aqui na tecnicalidade do flagrante, se o delito é contínuo ou não, enfim, se há elementos para a prisão em flagrante. Não é minha praia. Vou me concentrar na fala em si.

Para essa análise, é interessante observar os trechos destacados por Alexandre de Moraes em sua ordem de prisão (integra nos comentários). Não foram destacadas injúrias como o tamanho do bilau do Fachin ou as preferências sexuais do Barroso. Há dois tipos de falas destacadas: 1) ameaças, veladas ou não, à integridade física dos magistrados e 2) ameaças, veladas ou não, à integridade do STF e do próprio Congresso.

A coisa foi, portanto, além da injúria pessoal. As falas do deputado, se transformadas em realidade, significariam o fim das atuais instituições democráticas e sua substituição por uma “ditadura do bem”. Alguém já disse que o melhor regime de governo é uma ditadura que concorde comigo. O segundo melhor, ou o menos pior, é essa democracia que temos, com todos os seus evidentes defeitos. E o terceiro pior é uma ditadura com a qual não concordamos.

Daniel Silveira, na prática, usa sua liberdade de expressão para defender um regime político que, uma vez instalado, a primeira coisa que faz é acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma contradição em termos. O regime democrático, em qualquer país, restringirá esse tipo de discurso sem medo de ser feliz. Injúria e difamação não atentam contra o regime. Discursos pelo fechamento do STF e do Congresso, sim. Por isso, entenderam os magistrados que o deputado, no mínimo, merecia uma prisão preventiva (figura prevista em nosso código penal, diga-se de passagem) mesmo antes do julgamento.

Termino com uma pequena digressão. Há quem diga que palavras, por pior que sejam, não têm o poder de criar realidades. Talk is cheap, dizem os americanos. Não é verdade. Os grandes líderes, aqueles que moveram seus povos em uma determinada direção, o fizeram através de suas palavras. Não é à toa que são famosos os discursos de Lincoln, Churchill e Hitler. Uma revolução começa no mundo das ideias, e se torna realidade através das palavras.

“Se pomos um freio na boca do cavalo para que nos obedeça, conseguimos controlar o seu corpo todo. Reparai também nos navios: por maiores que sejam, e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos por um pequeníssimo leme, na direção que o timoneiro deseja. Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo! É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno!” (Tiago 3, 2-6)

O STF e a Realpolitik

Em entrevista na TV Bandeirantes em 1999, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso, o fuzilamento de “uns 30 mil”, incluindo o então presidente FHC, e a sonegação de impostos. Na época, estudou-se um processo de quebra de decoro no âmbito do Congresso, que acabou não ocorrendo. E ficou tudo por isso mesmo. Não houve, por suposto, qualquer ação do STF a respeito, muito menos uma ordem de prisão.

O que mudou de 1999 para 2021? Por que o STF ordenou hoje a prisão de um deputado que ameaçou ministros do STF e elogiou o fechamento do Congresso? E convém observar que uma decisão inicialmente monocrática foi acompanhada por unanimidade por todos os ministros. Não consigo lembrar a última vez em que houve unanimidade no plenário do STF.

Não somente isso. A reação do Congresso foi morna, pra dizer o mínimo. Difícil achar que a decisão do STF tenha sido tomada sem um mínimo de articulação com o alto clero do Parlamento.

E o silêncio ensurdecedor do presidente? Definitivamente, não é mais o deputado de 1999.Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, faz um resenha histórica das duas grandes correntes filosóficas que permeiam as decisões diplomáticas ao longo do tempo. De maneira muito simplificada, a primeira corrente é a das esferas de poder, que prevaleceu na Europa ao longo do tempo. Nessa linha, os diversos países se alinham com base nas vantagens mútuas que podem obter. É a realpolitik. A segunda corrente é a da cooperação virtuosa, em que os países deveriam cooperar com base em uma ideia de bem comum. Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante a 1a Guerra Mundial foi o grande patrocinador dessa corrente, que inspirou a criação da Liga das Nações.

O governo Bolsonaro iniciou wilsoniano (desculpe-me Woodrow, sei que é uma comparação pobre) mas rapidamente migrou para a realpolitik. A prisão do deputado bolsonarista-raiz deve ser entendida neste contexto. Há um claro desconforto dos poderes em Brasília com a face bolsonarista-raiz do governo Bolsonaro. E não é de hoje. Vários episódios se acumularam, dando inclusive origem ao inquérito das fake news. Weintraub foi embora por conta disso.

Se em 1999 Bolsonaro era um exército de um homem só, hoje é formado por um conjunto fornido de deputados e alto staff do Executivo, alinhado a uma ala do Exército e uma rede de apoiadores não desprezível. Quando o deputado desbocado ameaça os ministros do STF e lembra o fechamento do Congresso em 1968, está dando voz a essa ala. Não foi somente Moraes que mandou prender o deputado. Foi o conjunto de todos os poderes em Brasília, incluindo o Executivo. Acabou. A realpolitik venceu. Não há virtude, há espaços de poder dentro de certas regras de convivência, a que chamamos de democracia. O bolsonarismo desafiou essas regras e está sendo enquadrado. Hoje, nem Jair Bolsonaro é bolsonarista mais.

PS.: note que não entrei no mérito da liberdade de expressão ou da imunidade parlamentar. Eu particularmente penso que ambas não são salvo-conduto para cometer crimes, mas aí teríamos que analisar se o que o deputado falou é ou não crime. Aliás, os 11 ministros do Supremo decidiram que é crime. De qualquer modo, para entender o que ocorreu, esse é um dado irrelevante.

O Facebook não é o Twitter

O Facebook não é o Twitter.

No Twitter, você pode se esconder atrás de um pseudônimo e falar o que quiser sem se expor pessoalmente.

Já no Facebook, você tem nome e sobrenome, tem família, tem amigos e tem uma história. Suas opiniões são suas, não de um pseudônimo.

Acabei de bloquear um sujeito aqui. Comentou em um dos meus posts de maneira agressiva. Fui olhar o perfil: nome esquisito, não tem foto, não tem descrição do perfil.

Quem me acompanha sabe que não fujo do contraditório e aceito que opiniões contrárias à minha permaneçam na minha timeline. A não ser, claro, que sejam grosserias gratuitas.

Todos são bem-vindos aqui. Desde que tenham nome e sobrenome. Quer se esconder? Vai para o Twitter.

Use o seu palanque

A atleta Carol Solberg resolveu lacrar em entrevista à Sport TV, e soltou um “Fora Bolsonaro!” ao vivo e em cores. A Confederação Brasileira de Vôlei soltou nota de repúdio e estuda punição. A atleta e seus apoiadores defendem a “liberdade de expressão”, e acusam a CBV de usar dois pesos e duas medidas, na medida em que teriam permitido que os atletas Wallace e Mauricio fizessem propaganda para o então candidato Bolsonaro em uma foto da seleção brasileira de vôlei em 2018. Reproduzo abaixo a foto, a nota da CBV à época e a nota da CBV a respeito da manifestação da atleta Carol.

O que dizer?

Pra começo de conversa, liberdade de expressão é inegociável. Todo ser humano tem liberdade para expressar suas opiniões, desde que não seja apologia a crime. Não posso, por exemplo, defender o assassinato do Lula ou do Bolsonaro, isso está fora da esfera de “liberdade de expressão”.

Pois bem, tendo pacificado este ponto, resta saber se há outras limitações à liberdade de expressão. Sim, há. A palavra “expressão” tem como pressuposto alguém falar e alguém ouvir. Robinson Crusoé tinha uma liberdade de expressão absoluta, mas era inútil, pois não havia ninguém que o escutasse. Exercer a liberdade de expressão só faz sentido se há outras pessoas que escutem a sua opinião.

Esta é a chave para entender a limitação intrínseca da liberdade de expressão: a expressão de sua opinião tem efeitos diferentes a depender do palanque de que você dispõe.

Um exemplo: eu tenho uns 2 mil seguidores nessa página do Facebook. O que eu falo aqui atinge essas duas mil pessoas e talvez um pouco mais, a depender de quantos compartilhamentos são feitos. Esse é o meu palanque, eu falo o que eu quero. Ao mesmo tempo, trabalho em uma empresa de investimentos, onde escrevo os relatórios para os clientes. A empresa tem milhares de clientes. Posso escrever o que eu quero? Obviamente não. O palanque não é meu, é da empresa. Foi ela que construiu essa audiência. A minha expressão, ao me comunicar com essas pessoas, é a expressão da empresa. Os clientes são dela, não meus.

Portanto, a liberdade de expressão é limitada pelo palanque que cada pessoa conseguiu construir. Felipe Neto, por exemplo, fala todas as bobagens do mundo para os seus milhões de seguidores, e a ninguém ocorre limitar a sua liberdade de expressão. Afinal, esse palanque é dele, ele é que decide o que vai e o que não vai falar.

Vamos ao caso da moça do vôlei e a nota da CBV. Atletas, de maneira geral, só estão lá porque existe toda uma estrutura montada na base de patrocínios. Se a Carol gritasse “Fora Bolsonaro!” em sua página no Instagram, a polêmica seria zero. Mesmo porque, poucos teriam ouvido. O palanque construído pela atleta é muito pequeno. O que ela fez? Usou a audiência construída pela CBV para expressar a sua opinião. É óbvio que não dá. A CBV pode sim puni-la, pois é ela que manda no seu palanque.

O paralelo com o caso Wallace/Maurício é adequado, ainda que tenha sido distorcido pela atleta. A CBV não “defendeu a liberdade de expressão” dos dois atletas e ficou por isso mesmo. O que a CBV fez, à época, foi dizer que os atletas podem falar o que quiserem em suas redes sociais, mas não usar o palanque da seleção brasileira para fazer política. Ambos foram punidos com advertência, provavelmente o que vai acontecer com Carol Solberg.

Entidades esportivas não costumam gostar de ceder o seu palanque para manifestações políticas. Por sua própria natureza, a política separa em campos opostos, e a última coisa que essas entidades querem é divisão e boicote de patrocinadores e espectadores. Por isso, senhores atletas, usem seus perfis pessoais para manifestações políticas e evitem usar os campeonatos organizados pelas entidades esportivas. Esses palanques não lhes pertencem.