Liberdade de expressão, lá vamos nós novamente

Há alguns dias, publiquei um post criticando o manifesto dos jornalistas da Folha, que condenava a decisão do jornal de publicar artigo que se opunha ao conceito de “racismo estrutural”. Segundo os jornalistas da Folha, o artigo seria racista, pois contra um “consenso” do debate racial. Minha tese era de que há consenso somente em alguns círculos, e que o debate está em aberto. Portanto, impedir contrapontos a uma tese ainda em construção era agredir a liberdade de expressão.

Não demorou a surgir, como é comum nesses casos, o argumento “reductio ad hitlerum”. Do que se trata? Basicamente do seguinte: se você não é capaz de defender a sua tese referindo-se a Hitler ou ao nazismo, a sua tese não vale nada. Neste caso, a tese se aplicaria da seguinte forma: se você não pode usar a sua liberdade de expressão para defender Hitler ou o nazismo, então você também não pode usá-la para defender tal ou qual ideia, igualmente nefasta. No caso, a ideia de que o “racismo estrutural” é controversa, mas poderia ser qualquer outra ideia que conta com unanimidade apenas em certos círculos bem-pensantes.

Monark (que, para mim, até outro dia, era somente uma marca de bicicleta) e Kim Kataguiri caíram feito patinhos na armadilha do “reductio ad hitlerum”. Para defender o direito irrestrito à liberdade de expressão, tiveram que admitir que o nazismo é uma forma legítima de expressão de ideias. Não precisava ser assim, mas o “reductio ad hitlerum” não lhes deixou saída.

Qual foi o problema? Não admitir que a liberdade de expressão não é um território sem limites, que há coisas que caem fora de seus domínios. O nazismo é uma delas. Há uma unanimidade universal sobre a perversidade do regime nazista, que tinha como objetivo a eliminação de etnias “inferiores”. Tanto é assim, que Monark e Kataguiri fizeram questão de se descolar dessas ideias, deixando clara a sua rejeição. Mas não teve jeito: a coisa é tão pegajosa, que defender a liberdade de expressão de nazistas é equivalente a ser nazista. O nazismo é algo tão perverso, a própria perversão por antonomásia, que engole tudo à sua volta. Simplesmente não dá para discutir a liberdade de expressão “em tese” usando o nazismo como exemplo.

E esta é a pegadinha do “reductio ad hitlerum”: usa-se um caso extremo para se tirar uma regra geral: eu não posso defender a liberdade de expressão de Antônio Risério sem defender a liberdade de expressão dos nazistas. E esta pegadinha tem uma razão de ser: quem define, e com quais critérios, os limites da liberdade de expressão? Por que Risério pode defender que o racismo estrutural não existe, ao passo que os nazistas não podem defender suas ideias de eliminação das etnias mais fracas?

O mundo é sempre do jeito que as pessoas o veem. Por isso, há coisas que são intoleráveis para uns, mas são toleráveis para outros. Traçar uma linha divisória universal do tolerável é uma tarefa inglória, para não dizer impossível. Nessas horas, lembro da sentença do juiz da Suprema Corte americana, Potter Stewart, em julgamento sobre se um determinado filme deveria ser considerado pornográfico e, portanto, censurado para exibição livre. Em sua sentença, o juiz disse mais ou menos o seguinte: “não vou aqui procurar definir o que é ou não pornografia, e talvez nunca consiga fazê-lo de maneira inteligível. Mas EU SEI QUE É PORNOGRAFIA QUANDO EU VEJO PORNOGRAFIA, e o filme em questão não é isso”. A expressão em inglês que ele usou, “I know it when I see it”, tornou-se clássica para definir algo de bom senso, com que todo mundo concorda. Nesse sentido, todo mundo concorda que o nazismo é uma perversão, e nada justifica o direito à sua defesa.

Portanto, defender a existência de um partido nazista de modo a poder contrapor as suas ideias no campo democrático é o mesmo que, sei lá, defender um partido do PCC de modo a poder contrapor suas ideias de crime organizado em um debate no Flow. Isso não é liberdade de expressão, é somente uma idiotice.

Não caia na falácia do “reductio ad hitlerum”. As fronteiras do território da liberdade de expressão estão sempre em litígio. Podemos discutir se Risério pode ou não falar ou que falou. Mas o nazismo está definitivamente fora desse território. I know it when I see it.

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