Discussões éticas

Voltando ao assunto dos empréstimos subsidiados do BNDES para a compra de jatinhos.

Muitos comentários ao meu post de ontem defendiam que, apesar de legal, comprar jatinhos com subsídio não seria “ético”. Afinal, os compradores deveriam saber que se tratava de usar dinheiro de impostos que faltam para outras áreas para usá-lo em algo absolutamente supérfluo. Além disso, os compradores teriam sido coniventes com um programa desastroso para a economia brasileira, que nos levou a todos para o buraco em que estamos.

Fiquei pensando nesses argumentos.

Os filhos da classe média cursam as melhores faculdades do país de graça, pagas com o dinheiro dos impostos. Deveriam, todos os que estão criticando Huck, pagar uma faculdade privada para seus filhos para evitar serem coniventes com essa política pública perversa?

Deduzimos 100% das despesas com saúde da base do IR. Deveríamos pagar o IR integral para evitar ser coniventes com uma política que subtrai recursos dos mais pobres para pagar pela saúde dos mais ricos?

Até a reforma da previdência, a classe média se aproveitava de regras generosas para se aposentar antes dos 60 anos. Em alguns casos, como o das professoras, antes dos 50! Deveria a classe média abrir mão de um direito líquido e certo por questões “éticas”? Não conheço um caso sequer.

Ah, dirão, são coisas não comparáveis! Educação, saúde, aposentadoria, são direitos do cidadão que o Estado deve prover. A compra de jatinhos, não!

Tudo é uma questão de perspectiva quando se trata de uso de recursos públicos para fins privados. Ainda mais no país da meia-entrada.

Pensamos na compra de jatinhos com dinheiro dos nossos impostos como algo não ético porque não está ao alcance de nossas mãos. O favelado que é obrigado a pagar a faculdade de seu filho tem todo o direito de pensar que o filho da patroa cursar uma faculdade de graça é um comportamento não ético. Cada um trabalha com suas próprias referências.

O ponto é que o financiamento estava lá e foi tomado de acordo com as regras vigentes. Se é para discutir ética, vamos alargar nossos horizontes e colocar na mesa outras coisas.

Por fim, o PSI, esse nefasto programa de subsídios sob o qual se deram os empréstimos para a compra de jatinhos, foi aprovado no Congresso com o voto favorável do então deputado Jair Bolsonaro. O qual, hoje, usa a lista de quem aderiu a esse programa – dentro da lei aprovada por ele mesmo – como uma arma política, abusando de seu poder de presidente da república. Vamos falar sobre ética?

A criminalização do BNDES

Pode-se criticar à vontade a política de juros subsidiados do BNDES. Eu sou um que não paro de falar desse assunto por aqui. Isso é uma coisa.

Outra coisa é tentar criminalizar quem tomou as linhas de crédito subsidiadas, dentro dos critérios técnicos da concessão do crédito. O que fez de errado Luciano Huck ao usar uma linha do Finame para comprar um jato da Embraer? Rigorosamente nada. Como disse, a linha estava lá como uma “ajudinha” do governo para a Embraer. Se a empresa (e Huck) precisavam desse presentinho com o dinheiro dos nossos impostos é algo a ser discutido. Mas daí a insinuar que houve comportamento não ético vai uma distância enorme.

Tomar empréstimo subsidiado do BNDES virou crime de lesa-pátria. Ao mesmo tempo, virar o COAF de ponta-cabeça por ter colaborado com investigações na Assembleia do RJ é algo perfeitamente natural. A lógica desse governo às vezes me escapa.

Vamos tentar um projeto de País diferente, só para variar?

Onde se lê “Bolsonaro não tem um projeto para o País” leia-se “Bolsonaro tem um projeto para o País que não é do meu agrado”.

Vamos ser justos: na entrevista, Luciano Huck diz que não viu “projeto de País” nos programas de nenhum dos candidatos, não somente no de Bolsonaro. Pena que Huck não nos tenha dado a chance de votar em um verdadeiro “projeto de País”, pois afinou e fugiu da briga. Talvez porque tenha pensado que o País ainda não estivesse preparado para o seu grandioso “projeto de País”.

Na entrevista, Huck deixa claro o principal ponto de um “projeto de Pais” digno do nome: diminuir a desigualdade. Afinal, ele se orgulha de ter viajado pelo País nos últimos 19 anos, e viu muito disso por aí. Como se precisasse. Qualquer cidadão das grandes cidades tropeça em moradores de rua e a realidade das favelas fere os olhos dos brasileiros. Mas não, somente Huck tem a verdadeira noção do que é a desigualdade. Como podemos abrir mão de toda essa experiência?

Em determinado momento, Huck deixa claro qual é o seu projeto: “Acho super legal as iniciativas do terceiro setor e de filantropia. Por outro lado, só quem vai ter o poder, de fato, de reduzir a desigualdade, é o Estado”. Está aí o “projeto de País” de Luciano Huck: transformar o Estado brasileiro em uma grande agência filantrópica!

Huck fala como se nunca no Brasil tivesse havido algum projeto de redução de desigualdades. Desde 1994, fomos governados por presidentes inegavelmente preocupados com esse tópico. FHC é um dos grandes ídolos de Huck, o governo Lula mereceu elogios na entrevista por ter patrocinado “políticas sociais” e Dilma, bem, ninguém aqui vai duvidar das credenciais sociais de Dilma. Pois bem, foram mais de 20 anos de governos “preocupados com a desigualdade social”. Resultado? Explosão da dívida pública, da violência e uma desigualdade que agride almas sensíveis como a de Luciano.

Em 1994, a Coreia do Sul tinha uma renda per capita 36% maior que a brasileira. Hoje, a renda per capita do país asiático é 157% maior. Lá, os mais pobres estão em muito melhores condições que os mais pobres daqui. Não perca o seu tempo perguntando se no “projeto de País” da Coreia havia algo como “reduzir as desigualdades”. Não, Bolsonaro não tem o projeto de País de FHC, Lula, Dilma e Huck. Seu projeto, assim como foi o de Temer, é, primeiro, limpar a merda deixada pelos projetos de “redução de desigualdades” dos governos anteriores. Em seguida, aumentar a produtividade do País, de modo a retirá-lo da armadilha de eterno país de renda média. E isso só se consegue, em um país democrático, retirando o Estado da atividade econômica, não o inverso. Se a este projeto se der o mesmo tempo que se deu ao projeto de “Estado filantropo”, quem sabe daqui a 20 anos os mais pobres estejam em melhores condições do que hoje.

É bom ir se acostumando

Josué Gomes e Nelson Jobim são, respectivamente, o penúltimo e o último “nome novo” a entrar na arena e cair. Antes dele, Luciano Huck, Joaquim Barbosa e João Doria foram tentados.

O dito “centro político” tem tentado desesperadamente a “trindade impossível”: um nome ao mesmo tempo viável eleitoralmente, que seja “controlável” e que não esteja, de alguma maneira, ligado à velha política. Vão descobrindo que não existe.

Os candidatos são estes que estão aí. É bom começar a trabalhar com essa realidade.

O retrato da tragédia brasileira

Hoje fui à casa de meus pais. Como fazem todo sábado à tarde, estavam assistindo ao programa do Luciano Huck.

Um dos quadros é o tradicional “perguntas e respostas” valendo dinheiro. A convidada não conseguiu responder qual era a capital do Paraná, e quem escreveu a carta sobre o descobrimento do Brasil. Detalhe: nesta última havia somente duas alternativas: Pero Vaz de Caminha e Cristóvão Colombo.

Minha mãe, obviamente, respondeu às duas questões. Bem, nem tão obviamente. Minha mãe chegou aqui vinda da Polônia com 11 anos de idade (claro, sem dominar uma palavra de português), e completou apenas o que hoje é o Ensino Fundamental. A convidada do Luciano Huck, por outro lado, foi criada em uma favela do complexo do Alemão, e é estudante de jornalismo.

Ao comentar como podia uma estudante de jornalismo não responder duas questões tão básicas, enquanto minha mãe, quase sem educação formal, tê-las respondido de pronto, minha mãe matou a charada: “Claro, eu leio!”

Sim, minha mãe lê. Lê muito. Está sempre lendo alguma coisa. Eu aprendi a ler com minha mãe. É a única pessoa que conheço que conseguia ler na sala com a TV passando a novela. Prestava atenção nas duas coisas. Acho que logo notou que poucos neurônios eram necessários para entender a novela, então aproveitava os neurônios ociosos para ler um livro.

Voltando à estudante de jornalismo que não sabe qual é a capital do Paraná. O problema da Brasil vem muito antes da qualidade do ensino. O problema é que as pessoas não leem. E este não é um problema da escola. É um problema de formação familiar, de mesma natureza, por exemplo, de saber que não se pode jogar lixo na rua.

Sintomaticamente, a única pergunta que a estudante de jornalismo conseguiu responder sem a ajuda de algum “universitário” tinha a ver com os quesitos de julgamento das escolas de samba. Alguns dirão: “mas Carnaval é cultura popular!”. Sim, cultura que não exige leitura, apenas o acompanhamento da cobertura do Carnaval pela Globo.

A estudante de jornalismo que nasceu na favela é uma história de superação. É muito, mas é pouco, muito aquém do necessário para que o país passe para o próximo nível. É o retrato acabado da tragédia brasileira.