Como fazer manchetes: um pequeno manual

A notícia é um produto. E, como todo produto, é oferecido em uma embalagem. No caso da notícia, a embalagem é a manchete.

Como sabe qualquer estudante do 1o ano de marketing, uma embalagem atraente é mais de meio caminho para a venda. Por isso, os editores capricham nas manchetes.

Lembro de estar passando em frente a uma banca de jornal lá pelos idos de 1991. Estávamos à beira da primeira guerra do Iraque, Bush pai tinha dado um ultimato a Sadam Hussein, e o mundo prendia a respiração diante da guerra iminente. Na banca, o saudoso Notícias Populares sapecou o que, para mim, é a melhor manchete de todos os tempos: “MUNDO IMPLORA: ARREGA SADAM!” Tem coisa mais sensacional do que isso? Não, não tem.

Como eu ia dizendo, os editores quebram a cabeça para encontrar manchetes que vendam a notícia. Um truque comum é usar estatísticas que chocam. Variações percentuais sobre números pequenos, por exemplo, são um exemplo clássico. O número continua tão pequeno quanto antes, mas a variação é tão grande que chama a atenção.

Quanto mais visuais forem as estatísticas, melhor. Por exemplo: muito melhor do que dizer que foram desmatados 11.000 km2 da Amazônia em 2020, é afirmar que foram desmatados 1,3 milhões de campos de futebol. E, ainda melhor, um campo de futebol foi desmatado a cada 20 segundos! O leitor já fica imaginando um campo de futebol inteiro de árvores, e um enxame de serrotes pondo aquilo tudo abaixo em 20 segundos. Um horror! Claro que, se a manchete fosse “foram desmatados 0,22% da Amazônia Legal em 2020”’, o leitor muito provavelmente passaria ao largo daquele pacote embrulhado em papel pardo.

Um outro exemplo: ao invés de dizer que 3 milhões de pessoas já morreram de COVID-19 desde o início da pandemia, muito melhor sacar “já morreu um Catar desde o início da pandemia”. Meu Deus, um Catar inteiro! E como fica a Copa do Mundo??? Claro que dizer que morreu 0,04% da população mundial é bem menos sexy.

Isso tudo me veio à mente quando vi a manchete abaixo: a Índia registra 3,8 casos de COVID-19 por segundo!

O leitor conta 1 segundo e pá, lá já estão mais 4 indianos doentes. Um horror! Claro que, se a manchete fosse “Índia registra 190 casos/milhão na média móvel dos últimos 7 dias”, o leitor passaria batido pela prateleira. Mesmo porque, hoje o Brasil está com 300 casos/milhão e os EUA, que estão avançadíssimos na vacinação e são governados pelo champion da saúde pública, estão com os mesmos 190 casos/milhão. Enfim, quem mandou a Índia ser o 2o país mais populoso do mundo? É prato cheio para as manchetes bombásticas.

Por favor, não encarem esse post como uma crítica à imprensa. Como todo negócio, eles precisam vender os seus produtos. E as manchetes fazem parte da estratégia. Cabe a nós, consumidores de notícias, não nos deixarmos enganar pela embalagem. Tenha sempre em mente que todo número é relativo. Sempre pergunte: essa estatística, é em relação ao qué? Dessa forma, você terá uma visão mais equilibrada do mundo.

A metade que se tornou manchete

“Homicídios aumentam em seis regiões de SP”

Li a manchete e logo me saltou aos olhos a falta de uma informação fundamental para avaliar a notícia: quantas regiões existem em SP? É óbvio que a informação percentual nos daria uma noção melhor do que está acontecendo. Se essa informação não está lá, é porque não orna com o objetivo da manchete.

Batata: são doze regiões. De modo que uma manchete “Homicídios aumentam em 50% das regiões de SP” seria igualmente verdadeira, mas não cumpriria a sua missão. É claro que “Homicídios diminuem em seis regiões de SP” também seria verdadeira, mas nem pensar.

As regiões que tiveram aumento de homicídios têm um problema, o Estado de SP não necessariamente. Para avaliar a questão estadual é preciso analisar o número agregado. Este aparece no meio da reportagem e no gráfico anexo: aumento de 3,22% de homicídios entre 2019 e 2020.

3,22% é um número para se preocupar? É o início de uma tendência? É só erro estatístico? Essas são as questões relevantes, mas que certamente não justificam manchetes bombásticas.

Não sou especialista em crime, mas entendo um pouco de gráficos e números. Este aumento de 3,22% parece mais uma oscilação dentro de uma tendência geral de queda. Ou pode significar a interrupção dessa tendência, em que os números vão girar em torno de 8,0-8,5 daqui em diante. Afinal, não custa lembrar o fato óbvio de que o Estado de SP está dentro de um país chamado Brasil, cujo índice de homicídios é de 26 por 100 mil/ano. SP é um oásis neste aspecto, o menor índice brasileiro, mas tudo tem um limite: não dá para ter índices japoneses estando dentro do Brasil. Talvez 8 seja este limite, vamos verificar nos próximos anos.

A criminalidade da imprensa

Manchete na Folha de São Paulo:

Manchete no Globo:

Manchete no Estado de São Paulo:

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 veio com uma novidade: ao contrário de todos os outros anos, os responsáveis pela publicação acharam por bem divulgar os números do 1o semestre do ano. Normalmente, este Anuário é publicado em meados do ano, com os dados do ano anterior. Por algum motivo não explicado, neste ano foi publicado em outubro, com os dados de 2019 e também do 1o semestre de 2020. E, coincidência, os dados vieram piores do que 2019, o melhor ano da série histórica.

Fico me perguntando: por que esta mudança de metodologia, justamente no ano de maior queda de mortes violentas da série? Terá sido a dificuldade de se encontrar uma manchete condizente? A se pensar.

O prefácio do Anuário termina com o seguinte texto: “… infelizmente, é fato que o Brasil perdeu, entre 2019 e 2020, uma grande oportunidade de transformar a tendência de redução das mortes violentas intencionais observada entre 2018 e meados de 2019 em algo permanente e que servisse de estímulo para salvar ainda mais vidas. O Brasil perdeu-se em múltiplas narrativas políticas em disputa e a população, mais uma vez, está tendo que lidar com os efeitos deletérios e perversos de um modelo de segurança pública obsoleto e que até hoje não foi palco de grandes reformas, mesmo após a Constituição de 1988”. Bem, podemos ver os “efeitos deletérios e perversos de um modelo de segurança pública obsoleto” nos gráficos anexos, feitos a partir dos dados do próprio anuário (assumi que o número de mortes violentas do 1o semestre de 2020 se repetiria no 2o semestre).

No Brasil, depois de atingir o máximo de 30,9 mortes/100 mil habitantes em 2017, este número caiu para 22,7 em 2019 e aumentou para 24,3 em 2020, segundo menor nível da série nos últimos 10 anos.

No RJ, depois de atingir o máximo de 40,4 mortes/100 mil em 2017, este número caiu para 31,4 em 2020, terceiro ano consecutivo de queda.

Em SP, o número de mortes violentes vem caindo consistentemente desde 2014, ano em que ocorreram 13,2 mortes/100 mil, até atingir a mínima de 2019 de 8,9. Em 2020, houve um aumento para 9,5, mesmo número de 2018.

Será mesmo que esses números merecem o lamento das manchetes e da análise do Anuário? Não será que deveríamos investigar o que vem DANDO CERTO no combate à criminalidade e, especialmente, às mortes violentas? Os dados de 2020 mostram um repique no número de assassinatos em alguns estados e no número agregado brasileiro, mas estão longe de demonstrar uma volta a uma tendência negativa. Esta volta pode até acontecer, mas apenas um ponto (na verdade, meio ponto, porque só temos os dados do 1o semestre deste ano) parece pouco para chegar a qualquer conclusão.

A não ser que o objetivo seja criar manchetes negativas. Aí, bora procurar dados que corroborem a tese. Nem que, para isso, se tenha que mudar a metodologia de divulgação. Vale tudo por uma boa manchete.

Dissonância

Segundo o título da matéria do Estadão, o governo estaria estudando mexer no teto de gastos, “em caráter excepcional”.

Aí, pra não variar, você vai ler a matéria e é o justo oposto. Há estudos de todas as naturezas, MENOS sobre o teto de gastos.

Para mim, continua sendo um mistério os motivos que levam um jornalista ou o próprio editor a dar um título que não corresponde ao que vai na reportagem, o que é facilmente verificável por quem a lê. É falta de atenção, analfabetismo funcional ou desonestidade intelectual mesmo?

O repórter ainda afirma que economistas “de diferentes espectros ideológicos” passaram a defender uma flexibilização do teto de gastos. Em primeiro lugar, não li um único economista mainstream que defendesse isso. Pelo contrário. A reportagem entrevista a indefectível Monica de Bolle, eleita pelos heterodoxos como “a economista liberal com bom senso”, supostamente representando a ala liberal que defende flexibilizar o teto.

Mas o que a repórter revela nesta frase é mais do que isso. Para ela, a questão não passa de “ideologia”, não tem nada a ver com expectativas dos agentes e restrições financeiras. Para quem viu a reação do mercado de títulos públicos ontem após a derrubada do veto à ampliação do BPC, ficou claro que a coisa é muito mais do que “ranço ideológico”. Mas a ideologia da jornalista explica a dissonância entre título e matéria.

Duvída seríssima

A manchete diz: “Marco Aurelio tem dúvida seríssima sobre a existência dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro”.

Aí você vai ler, e a dúvida se refere somente à lavagem. Não há dúvida sobre corrupção. É “somente corrupção” ou “corrupção mais lavagem”.

Tenho dúvida seríssima sobre a capacidade de interpretação de texto do jornalista.

Interpretação de números

Se a inflação de março de 2018 tivesse sido de zero, a manchete seria “a inflação foi infinitos porcento maior”? E se tivesse sido negativa? “A inflação foi menos 20 vezes maior”?

Nem acho que seja má fé. É dificuldade mesmo de interpretar números.

Um desserviço da imprensa

Além de servir como slogan para acompanha do Ciro, pra que mais serve essa manchete de capa do Estadão?

No quesito “desinformação”, é 10. O Brasil tem 3 vezes a população da Itália, e qualquer fenômeno no Brasil será o equivalente a vários países menos populosos. A China deve ter uns dois Brasis de inadimplentes. O que isso significa? Rigorosamente nada.

Depois, esses números não batem uns com os outros. O país tem aproximadamente 55 milhões de famílias. Digamos, para simplificar e estressar o argumento, que todas sejam classificadas como pobres. Segundo a matéria, 26,7% dessas famílias estavam inadimplentes, o que significaria aproximadamente 15 milhões de famílias. Para que 63 milhões estivessem com contas atrasadas, seria necessário que cada uma dessas famílias tivesse, em média, 4 membros, e todos estivessem inadimplentes, incluindo crianças.

Há, obviamente, um problema conceitual aqui, que não permite conciliar essas informações. Mas o Estadão prefere a manchete bombástica do que o jornalismo esclarecedor. Muito triste isso.

Uma frase fora de contexto

“Confissão de Neymar divide opiniões”

Verdade. Alguns acharam ridícula, outros acharam estapafúrdia e outros ainda acharam que foi um tiro no pé.

Às vezes eu acho que os jornalistas aprendem uma série de frases feitas na faculdade, mas têm dificuldade de usá-las no contexto correto.