As fake news verdadeiras

Manchete da Folha hoje: “A cada três dias, uma mãe entrega o filho para adoção”.

Isto significa cerca de 120 crianças por ano.

No Brasil, nascem cerca de 3 milhões de pessoas por ano. Ou seja, o número de crianças entregues para adoção representa 0,004% desse total.

Uma manchete do tipo “0,004% das crianças nascidas no Brasil são entregues para adoção” certamente criaria menos comoção.

As pessoas em geral têm muita dificuldade em lidar com números muito grandes. Malba Tahan, em um livro delicioso chamado “As Maravilhas da Matemática”, dedica um capítulo a fomentar o respeito pelo “milhão”. Ele demonstra como as pessoas usam a expressão “milhão” despreocupadamente, sem atinar para a verdadeira grandeza que esse número representa.

E se falarmos de bilhões? Aí é que a coisa se perde mesmo. Por isso, prosperam teorias simplistas, do tipo “basta acabar com a corrupção que o Brasil se torna um país rico”. Um grande complicador para o entendimento das finanças públicas é o fato de se contar aos bilhões (e a dívida pública está na casa dos trilhões!), ordem de grandeza que está longe da compreensão de quem não tem treinamento específico.

Os meios de comunicação se aproveitam dessa falha de cognição para estabelecer uma agenda. Isso acontece com o aborto, a pauta LGBT, a repressão da ditadura. Os números são geralmente muito menores quando colocados em sua real perspectiva. Mas o que importa é criar a comoção, como a manchete da Folha demonstra. Claro, uma mãe que entrega o filho para adoção já é uma tragédia em si. Mas estamos falando de políticas públicas, em que o Estado é chamado a mitigar inúmeras demandas competitivas, e a decisão de alocação não pode ser decidida pela “comoção”.

Khanemann e Tversky (o primeiro ganhou o Nobel) fundaram um ramo da economia chamado “finanças comportamentais”, que descreve as falhas de julgamento dos seres humanos diante de problemas envolvendo escolhas. Seu artigo, “Prospect Theory”, demonstra que as pessoas tomam decisões diferentes para o mesmo problema, dependendo da forma como este lhe é apresentado. Uma manchete do tipo “Cerca de 0,004% das mães brasileiras entregam seu filhos para adoção” descreveria exatamente o mesmo fenômeno da manchete original, mas com efeito oposto.

Enfim, é preciso ficar atento a esse tipo de coisa. Às vezes, as fake news não precisam ser falsas para serem fake.

Saudades do bom jornalismo

Está é a chamada. Você vai ler a reportagem e encontra o seguinte:

– não há uma única entrevista com moradores. Há um “dizem eles” e uma declaração do Coordenador de Direitos Humanos da Defensoria Pública.

– os militares ocupam um terço do artigo, que já é curto. Os dois terços restantes descrevem “abusos” em Icaraí, onde as forças militares sequer estão presentes. Os abusos são da PM mesmo.

– nesta segunda parte, o único entrevistado é um tal de Buba Aguiar, de um troço chamado “Coletivo Fala Akari”. É ele que fala em nome dos “moradores”.

Ah Estadão, que saudades do seu bom jornalismo.