Resumo do orçamento para 2024

A quem interessar possa, estes são os números do nosso orçamento (sim, nosso, porque somos nós que financiamos o governo) para 2024, aprovado pelo Congresso:

  • Aposentadorias: 885 bilhões
  • Funcionalismo federal: 407 bilhões
  • Saúde: 232 bilhões
  • Educação: 180 bilhões
  • Bolsa Família: 170 bilhões
  • Emendas parlamentares: 53 bilhões
  • Todo o resto: 73 bilhões

Total: 2 trilhões

Feliz 2024!

30 anos. E os novos velhos problemas

Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.

– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.

– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.

– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.

– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.

– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.

– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.

O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.

Gasta, mas fala diferente

“É proibido gastar.”

Tendo sido empossado como presidente em exercício, José Sarney leu o discurso preparado por Tancredo Neves para a primeira reunião ministerial do novo governo, em 19/03/1985. Ficou para a história a frase “é proibido gastar”, supostamente indicando um governo austero. No entanto, lendo o parágrafo anterior, podemos observar que a ordem valeria enquanto os ministros não fizessem um diagnóstico em suas pastas, de modo a identificar investimentos com o objetivo de promover o “desenvolvimento econômico com a geração de empregos”.

Lula segue a tradição. Mas, em tempos de redes sociais, aggiorna a mensagem. No melhor estilo “vendedor de curso on line”, pede para os ministros trocarem a palavra “gasto” por “investimento”. Assim, o “é proibido gastar” se torna “é proibido usar a palavra gastar”. O efeito final é o mesmo. Afinal, que ministro admitiria que seus gastos não são “investimento”? Isso vale tanto para 1985 quanto para 2023.

Tancredo, no entanto, encontrou um quadro bem diferente do que temos hoje, em termos de transparência das contas públicas. Tendo que lidar com uma inflação anual de 3 dígitos e verdadeiras máquinas paralelas de impressão de dinheiro, como o Banco do Brasil e os bancos estaduais, Tancredo não tinha como saber o buraco em que se metera. Lula não tem essa desculpa. Depois de décadas de reformas, sabemos, com razoável precisão, de onde vem e para onde vai o dinheiro público. Se o “investir” de Tancredo precisava ser antecedido por um diagnóstico financeiro de suas pastas por parte dos ministros, no caso de Lula, o diagnóstico já está feito. Em ambos os casos, no entanto, o “investimento para gerar o desenvolvimento” sempre se justifica.

O “é proibido usar a palavra gastar” de Lula nos dá a impressão de que andamos em círculos nesses últimos 40 anos, sempre em busca do “investimento que gerará o desenvolvimento”. A julgar pela perda de relevância do nosso PIB em relação ao PIB global nesse período, não se trata só de uma impressão.

O truque por trás da mágica

Nada nessa mão, nada nessa mão e… o mágico tira da cartola R$ 20 bilhões para investimentos! O público, extasiado, aplaude a habilidade do ilusionista.

O estúpido teto de gastos impedia a mágica. Por isso, o orçamento do ministério era de somente R$ 6 bilhões. Agora não! Agora não há limites! Da cartola do mágico Lula, surge o dinheiro que antes não existia!

Mas Mister M revela o truque, que, na verdade, é muito simples: mais endividamento. O ministro da Fazenda promete um plano para encontrar esse dinheiro, mas a coisa está só na promessa, por enquanto. Vamos ver.

O fato é que aquele dinheiro para ajudar os pobres vai servir para Calheirinhos tocar obras por todo o país. A partir de agora, veremos várias políticas surgirem do anda, todas financiadas com o dinheiro da PEC do Bolsa Família. E você achando que aquele dinheiro todo era para ajudar os pobres…

Uma desculpa conveniente

A tática é velha conhecida: esconder-se atrás de uma ação meritória para fazer passar um trem da alegria. A manchete quer nos fazer crer que os políticos são uns desalmados e não estão colaborando com o novo governo para acabar com a fome no país.

A verdadeira história é a seguinte: o orçamento enviado ao Congresso pelo atual governo prevê R$ 105 bilhões para o Auxílio Brasil de R$ 400. Para acomodar a manutenção dos R$ 600 e mais um bônus de R$ 150 por criança (promessa do candidato do PT), o montante necessário seria de R$ 175 bilhões. Faltariam, portanto, R$ 70 bilhões em 2023. Se fosse este o tamanho do perdão para furar o teto de gastos, não estaríamos discutindo isso aqui.

Ocorre que o PT encaminhou (quer dizer, vai encaminhar) um projeto que libera o total de R$ 175 bilhões de cumprir o teto. E não só para 2023, mas para sempre. Aí, algo que seria usado apenas para pagar um Bolsa Família plus size, torna-se um cheque em branco para o PT no valor de R$ 105 bilhões anuais para gastar no que melhor lhe aprouver.

Então, essa historinha de ”estão dificultando o pagamento do Bolsa Família” é conversa pra boi dormir. O que estão procurando é uma licença adicional para gastar, sendo o Bolsa Família apenas uma desculpa conveniente.

O discurso faz a diferença

Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, já se sabia que a dinâmica de crescimento dos gastos constitucionalmente obrigatórios forçaria a revisão da regra em algum momento no futuro. Isso porque, com os gastos totais limitados pela inflação e os gastos obrigatórios (principalmente Previdência e funcionalismo) crescendo acima da inflação, os gastos discricionários (não constitucionalmente obrigatórios) seriam espremidos com o passar dos anos. Por isso, se previu uma revisão da regra para 2025. A ideia (ou esperança) era de que houvesse um amplo debate no país sobre os gastos obrigatórios, de modo a abrir espaço para os não obrigatórios.

Ocorre que o único debate que ocorreu foi o da reforma da Previdência, que ajudou, mas ficou muito longe do suficiente para estabilizar o crescimento dos gastos. Além disso, para juntar o insulto à injúria, veio a pandemia, que fez com que gastássemos, em dois anos, toda a poupança gerada pela reforma da Previdência em 10 anos. Além disso, cristalizou o valor de R$600 para o Bolsa Família / Auxílio Brasil, fazendo com que este programa saltasse dos anteriores R$ 35 bilhões/ano para os propostos R$ 175 bilhões/ano para 2023.

(Alias, só um parêntesis. Ainda vou entender como R$ 35 bilhões foram capazes de “acabar com a fome no Brasil”, e, com R$ 175 bilhões, “a fome nunca foi tão grande e intensa no país”. – essa frase contém várias ironias)

Assim, pressionado, por um lado, pelos gastos obrigatórios e, pelo outro, por um programa gigantesco de transferência de renda, não é à toa que o espaço para os gastos não obrigatórios tenha desaparecido. E o que são esses gastos não obrigatórios?

A notícia a seguir destaca um deles.

Os salários dos policiais da PF são gastos obrigatórios, mas o papel para confeccionar o passaporte, não. A mesma coisa, por exemplo, nas universidades federais: os salários dos professores e funcionários são gastos obrigatórios, mas o dinheiro para comprar o papel higiênico, não. Os funcionários do IBGE têm o seu salário garantido, mas a estrutura para fazer o censo, não. Programas como Farmácia Popular e incentivos à cultura são não obrigatórios. E por aí vai.

Por isso, o PT propôs tirar R$ 105 bilhões adicionais da regra do teto por 4 anos. A máquina do Estado corre o sério risco de parar se isso não for feito. Bolsonaro teria exatamente o mesmo problema se tivesse sido eleito. Pode-se discutir esse montante, mas alguma coisa teria que ser feita.

Os mercados entendem todo esse racional. O problema é a falta de perspectiva de que esse problema será resolvido algum dia. O mercado financeiro vive de trazer o futuro a valor presente. Quando Lula dá a entender que não está nem aí para o equilíbrio fiscal e o PT pede waiver para 4 anos, a leitura é de que Lula e o PT não têm apetite para resolver a questão de maneira mais estrutural e, portanto, teremos uma dívida explosiva no futuro. E isso é precificado pelos mercados hoje.

Alguns me perguntam, com sinceridade de coração, o que eu faria no lugar, dadas as condições postas. A resposta é relativamente simples: a mesma coisa, só que cuidando a mensagem. “Vamos pedir um waiver de R$ 175 bilhões este ano para acomodar as promessas de campanha. Entendemos que se trata de algo totalmente excepcional. Ao mesmo tempo, vamos trabalhar pelas reformas administrativa e tributária e por uma nova regra fiscal já no primeiro ano do governo, de modo a estabilizar a trajetória da dívida pública”. Obviamente, o mercado não compraria a promessa a valor de face a zero de jogo, e esse montante certamente faria (fará!) com que o BC tenha dificuldade de cortar juros no ano que vem. Mas, pelo menos, se evitaria todo esse estresse dos mercados que vivenciamos nos últimos dias, e o novo governo poderia começar em um ambiente melhor.

Lula tem se comportado como presidente de grêmio estudantil. Quando voltar a vestir o figurino de presidente (se um dia voltar), os mercados responderão positivamente.

De fato, o orçamento público não é como o orçamento privado

O economista Antônio Correa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, nos lembra que a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico não se aplica, porque o Estado tem “funções e prerrogativas próprias”. De onde se conclui que o Estado pode gastar mais do que arrecada, se for com o objetivo de cumprir suas “funções e prerrogativas próprias”.

Nem economista sou, quem sou eu para discutir com o representante máximo dos economistas brasileiros. Ele deve ter razão, afinal é professor-doutor da matéria. Mas, como todo aluno aplicado, fico cá com minhas dúvidas.

Economistas como Lacerda defendem que o Estado pode sim se endividar de maneira ilimitada, porque seus gastos teriam um “efeito multiplicador” na economia. Ou seja, gerariam impostos suficientes para pagar a dívida lá na frente. Seria preciso apontar para um “equilíbrio intertemporal”, em que os investimentos de hoje serão os impostos de amanhã, garantindo, assim, o equilíbrio da dívida pública e, de quebra, fazendo “a roda da economia girar”.

Claro que não é assim tão simples, e tenho certeza que Lacerda concordaria comigo. É preciso que esses gastos sejam “de qualidade”. Não adianta, por exemplo, contratar pessoas para cavar buracos e depois enterra-los. Isso não vai gerar o “efeito multiplicador” desejado, vai só queimar mais dinheiro, gerando mais dívida pública.

E é nesse “gasto de qualidade” que mora o problema. Lacerda não vai me desculpar, mas vou usar um exemplo de economia doméstica. Imagine uma família que gasta mais do que ganha e já altamente endividada. O marido, então, ao invés de cortar gastos, decide abrir uma barraquinha de pastel na feira. O raciocínio é simples: com esse investimento, vamos ter lucro suficiente para pagar o investimento e ainda cobrir o buraco dos gastos correntes da família. É óbvio que, para que o plano dê certo, é preciso que este investimento seja “de qualidade”. Ou seja, que realmente gere lucro.

Ocorre que, quase que por definição, os gastos do governo são de péssima qualidade. Os gastos de “boa qualidade”, aqueles que geram retornos suficientes, normalmente já são realizados pela iniciativa privada. Sobra só a carne de pescoço, disputada por grupos de interesses que têm a eficiência do investimento como último critério de escolha, quando têm.

Lacerda e seus companheiros, além de defenderem o “efeito multiplicador” dos gastos públicos, costumam brandir o argumento das “externalidades positivas”. Ou seja, um investimento pode não ter retorno em si, mas ajudará outros agentes econômicos que não pagam pelo investimento. O exemplo clássico é o da estrada que não tem fluxo suficiente para pagar o investimento em sua manutenção, mas que supostamente beneficia indiretamente as populações das cidades que são por ela ligadas. Tenho uma certa dificuldade em entender como uma estrada por onde não passa ninguém beneficia alguém, mas vá lá, digamos que seja assim. Mesmo nesse caso, em que a externalidade supostamente alavanca a arrecadação de impostos, é preciso que o investimento seja feito com critério, para maximizar as externalidades positivas. Como esse é um exercício dificílimo de ser feito, não surpreende que também acabe refém de decisões políticas.

De fato, a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico é inadequado, mas não porque o Estado tenha “prerrogativas e funções que lhe sejam próprias”. O orçamento público é diferente porque o Estado tem a prerrogativa de se endividar sem limites, pois tem o monopólio da emissão da moeda na qual são, por lei, feitos os gastos. Assim, as famílias, que não podem emitir seu próprio dinheiro, precisam ajustar o seu orçamento. Já o Estado, que pode captar dinheiro sem limite, não precisa se ajustar. Esqueça toda essa história de “efeito multiplicador” e “externalidade positiva”, não é disso que se trata, mas de abusar do poder de monopólio sobre a moeda.

Isso funciona se os financiadores da dívida não têm para onde escapar e há excesso de poupança privada. Caso contrário, a única forma de se financiar é rodar a maquininha, desvalorizando a própria moeda. Se uma família faz isso, vai presa. Se o Estado faz isso, o máximo que acontece é o governo de plantão não ser reeleito ou ser impichado, em função da inflação e do baixo crescimento gerados.

De fato, o Estado não pode ser comparado com uma família: nós não temos como produzir inflação para pagar nossas contas.

O truque da inflação

Documentários sobre a mãe natureza costumam nos brindar com cenas de tirar o fôlego. A aranha que ataca o inseto enredado em sua teia, por exemplo. Mas para se ter uma ideia exata do fenômeno, é preciso diminuir a velocidade do filme, mostrar a cena em câmera bem lenta. Vemos então, em detalhe, a fúria assassina da aranha em todo o seu esplendor.

Essa é a experiência sensorial que estamos vivendo neste momento no Brasil. A hiperinflação das décadas de 80 e 90 não nos permitia observar como o Estado brasileiro se financiava com base na inflação. A coisa era de tal maneira rápida e recorrente, que se tornava difícil distinguir os movimentos, tal como o ataque da aranha em velocidade normal.

O ano de 2021 nos permitiu ter a mesma experiência, mas em câmera lenta. A inflação foi bem acima da esperada pelos agentes econômicos e, por outro lado, os salários dos servidores públicos estão congelados. Ou seja, na prática, os salários do funcionalismo público foram reduzidos em termos reais. Por outro lado, a arrecadação acompanhou o aumento dos preços. Afinal, como já aprendemos no caso do ICMS dos combustíveis, a alíquota dos impostos é a mesma, mas a base de arrecadação é bem maior. Resultado: salários em dia e caixa em ordem.

O mesmo se pode dizer do governo federal, que vai produzir um déficit primário muito menor este ano e vai mostrar uma dívida pública bem menor do que as previsões mais catastrofistas. O segredo é o mesmo: inflação maior bombando a arrecadação e gastos com funcionalismo congelados.

Se a inflação não se acelerar em 2022, o truque se esgota. A arrecadação não cresce tanto e os funcionários públicos começam a fazer pressão por reajustes. Afinal, os caixas dos estados e da União estão em ordem. O que ainda não contaram para os funcionários é que aquele salário do passado é impossível de ser pago, o que vale e que pode ser pago em dia (por enquanto) é esse salário desidratado.

Em 2021, tivemos o privilégio de poder observar em detalhe como a inflação ataca os insetos que caem em sua teia, coisa que as pessoas das décadas de 80 e 90 não conseguiam observar a olho nu. A inflação é aliada do governo, a única forma de fazer caber suas promessas em um orçamento limitado. Pena que seja um truque que não possa ser usado de maneira recorrente.

O orçamento e a tia do refeitório

A manchete de hoje é o “esvaziamento” da pasta da economia, com o ministro Paulo Guedes supostamente se tornando um mero subordinado de Ciro Nogueira, o ministro da Casa Civil e um dos chefões do famigerado Centrão. O que dizer?

Parece-me, na verdade, um ganho para o ministro da Economia, não uma perda, na medida em que o livra do desgaste de ser, sozinho, o guarda mau da praça, aquele que sempre diz não.

Para entender isso, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que a regra do teto de gastos ainda existe. Foi modificada em uma manobra pra lá de oportunística, mas ainda existe um limite formal para os gastos, inscrito na Constituição. Portanto, não estamos discutindo aumento de gastos, mas o seu remanejamento. Qualquer aumento de gastos por fora do teto precisa necessariamente passar por votação no Congresso, que tem a última palavra sobre o orçamento público.

Além disso, estamos falando de aproximadamente 5% do orçamento, que são os gastos não obrigatórios. 95% do orçamento já foi carimbado pelo Congresso, nessa e em todas as legislaturas anteriores, desde a proclamação da República. Por isso, acho graça de especialistas dizendo que a execução do orçamento será “politizada”, como se o ministério da Economia fosse uma espécie de ilha imune à política.

A execução do orçamento é sempre política, por definição. O ministério da Economia apenas executa o que os outros ministérios (ou, no caso de emendas parlamentares, os próprios congressistas) definem, tendo como guia a lei orçamentária. É o cara chato que tem como missão avisar que o dinheiro acabou, mas só isso.

Como a lei do teto não foi revogada, foi apenas modificada, o ministério da Economia faz apenas o papel da tia do refeitório, que enche o prato dos alunos com uma quantidade limitada de comida. A indicação do ministro da Casa Civil para dar anuência aos gastos é sinal de que a fila dos alunos virou uma zona, todo mundo querendo passar na frente e pegar mais comida. A tia da cantina não tem condições de avaliar quem tem ou não razão, por isso foi preciso chamar o bedel pra colocar ordem na escola. Só isso.

Essa decisão diz mais sobre o governo Bolsonaro do que sobre o ministro Guedes. Ao chamar o ministro da Casa Civil para organizar a fila, Bolsonaro demonstra que efetivamente perdeu a capacidade de arbitrar as prioridades políticas de seu governo, delegando esse poder ao Centrão de Ciro Nogueira. Tendo sido convencido de que a “nova política” não tinha futuro e não tendo vocação para a “velha política”, Bolsonaro abriu mão da política para dedicar-se às pautas que verdadeiramente lhe interessam, como agradar o baixo clero dos militares e cultivar as franjas do conservadorismo. O Centrão agradece.

O reajuste do funcionalismo

Confesso que não entendo muito de serviço público, dado que passei minha vida toda na iniciativa privada e não tenho parentes próximos que sejam funcionários do governo. Portanto, convido qualquer funcionário público que seja leitor dessa humilde página a corrigir qualquer eventual erro deste post.

Em primeiro lugar, não entendo o que significa “entregar o cargo”. Até onde eu sei, cargos de chefia são conquistados via concursos internos. “Entregar os cargos” significa que esses servidores terão que prestar novos concursos públicos para obterem seus cargos de volta? Ou os cargos estarão lá, intactos, à espera de seus donos, quando estes decidirem retoma-los? Pergunto isso porque, se os cargos permanecem disponíveis, essa “entrega de cargos” nada mais é do que uma greve sem risco. Aliás, greve de funcionário público, por definição, é sem risco. Não há o risco de corte de ponto e, muito menos, demissão. E o pior: normalmente, o prejudicado é o cidadão, que é tomado como refém para obter o resgate. Em uma greve na iniciativa privada, o prejudicado é o patrão, que deixa de produzir e lucrar. Na greve do funcionalismo público, o patrão é o cidadão, que não recebe o serviço pago pelos seus impostos.

Não vou aqui discutir a “justeza” das reivindicações. Mesmo porque, em um país com milhões de pessoas que não conseguem um emprego formal, o “justo” é muito relativo. O fato é que, por mais justo que seja reajustar os salários do funcionalismo, o cobertor está curto, acabou o dinheiro. Quer coisa mais injusta do que não receber uma dívida do governo já transitada em julgado, como é o caso dos precatórios?

Os funcionários públicos federais têm o privilégio de ter seus salários depositados em dia, dado que o governo federal é o único que tem o poder de se endividar sem limites. Funcionários de estados e municípios pelo país não têm a mesma sorte, vários estão recebendo seus salários com atraso. Reajuste parece ser uma palavra de luxo, nesse caso.

Encerro contando um causo. Sou engenheiro pela Poli-USP. Engenheiros formados na Poli não costumam encontrar dificuldade de serem contratados e, normalmente, têm carreiras de sucesso. Qual não foi o meu choque ao saber que o melhor aluno da minha turma havia prestado um concurso para auditor fiscal da receita. Sua conta, no entanto, foi simples: seu salário começava muito acima do que ganhava um engenheiro júnior no mercado, tinha estabilidade e se aposentava com salário integral (era final da década de 80). Na integral da curva de salários (desculpem-me a linguagem de engenheiro), a sua esperança de renda ao longo das décadas seguintes era maior do que o que poderia esperar, na média, na iniciativa privada. Ou poderia ser até menor, mas a sua aversão ao risco fez com que preferisse o certo ao duvidoso. Meu colega de Poli fez uma escolha, com tudo o que essa escolha acarreta. Inclusive, a ausência de reajuste por falta de dinheiro.

Em um mundo ideal, o Estado arrecada o suficiente para pagar bons salários para os seus funcionários, de forma a prover os serviços que a sociedade delegou ao Estado. No mundo real, a sociedade quer o máximo do Estado pagando o mínimo de impostos e os financiadores desse gap cobram juros extorsivos. A conta só fecha com inflação, calote da dívida, serviços públicos ruins e baixos salários do funcionalismo. Normalmente, uma combinação dessas coisas todas.

PS1: não adianta colocar a culpa no “fundão eleitoral” ou nas “demandas do Centrão” ou, genericamente, na “corrupção”. Esse dinheiro é peanuts perto das necessidades de uma sociedade que exige cada vez mais do Estado.

PS2: o fato de Bolsonaro ter privilegiado um determinado segmento do funcionalismo seguiu a lógica dos “eleitos”, a mesma que escolheu os “campeões nacionais” da Dilma ou os “setores que mais empregam” para receber a desoneração da folha. Como não tem dinheiro pra todo mundo, o governo escolhe discricionariamente aqueles que serão beneficiados. Não acha justo? Encontre seu instrumento de pressão e arranque o seu benefício de Brasília. É assim que a coisa funciona.