Balanço da economia no governo Bolsonaro

Chegando ao fim dos 4 anos de governo Bolsonaro, farei uma retrospectiva de seu governo do ponto de vista de políticas econômicas. Dividirei os eventos em positivos e negativos, de acordo com minha exclusiva e particular avaliação.

Eventos positivos:

– Reforma da Previdência: talvez a maior realização deste governo, a reforma da Previdência havia sido já “amaciada” durante o governo Temer, que não conseguiu levar adiante por conta do episódio Joesley. O governo Bolsonaro teve o mérito de retomar a discussão e conseguir aprovar uma reforma com o dobro da economia prevista na reforma de Temer. Teve a parceria de Rodrigo Maia no Congresso, o que não diminui o seu mérito, pelo contrário. A reforma aprovada está longe de ser suficiente, precisaremos discutir outra reforma em breve, mas o mérito dessa reforma foi ter aprovado o limite de aposentadoria por idade, agora é só aumentar a idade. O ponto negativo foi retirar categorias, como a dos militares, da reforma. Não era necessário para a aprovação, foi uma idiosincrasia do presidente.

– Aprovação de marcos regulatórios: reformas microeconômicas são tão importantes quanto as macro. O marco do saneamento, das ferrovias, a nova regulamentação do câmbio, a lei da liberdade econômica, são todas mudanças legislativas que permitirão, ao longo do tempo, um ganho enorme de eficiência dos investimentos.

– Autonomia do Banco Central: vivemos o ineditismo de um presidente eleito que não tem disponível o cargo de presidente do BC para nomear. Este é um avanço significativo para a segurança do arcabouço monetário brasileiro. A discussão sobre a autonomia já vinha amadurecendo, mas o governo Bolsonaro teve o mérito de aprová-la.

– Privatização da Eletrobrás: única privatização do governo Bolsonaro, mas uma privatização que vale por muitas. Veio às custas de vários jabutis que pesarão na contade luz do brasileiro nos próximos anos. Mas, apesar de tudo, melhor privatizada do que estatal. Privatizada, a Eletrobras poderá levantar o capital necessário para um plano de investimentos que permita aumentar a segurança energética do país.

Eventos negativos:

– Não encaminhamento das reformas tributária e administrativa. A tributária foi reduzida por Paulo Guedes a uma proposta de substituição dos impostos sobre a folha de pagamentos por algo como uma CPMF disfarçada, jogando fora anos de discussões em torno da PEC 45, que cria um IVA único. A administrativa passou longe de qualquer discussão séria.

– Ruído na relação com a Petrobras. Apesar de não ter havido interferência real nos preços, a troca constante de comando na estatal certamente não foi positiva para a empresa.

– Redução do ICMS sobre combustíveis e outras utilities. Os efeitos de curto prazo foram positivos (redução dos preços dos combustíveis), mas os efeitos de médio prazo serão negativos, pois os Estados precisam desses impostos para equilibrarem suas contas. A conta vai chegar mais à frente.

– Desmoralização da regra do teto de gastos. Para mim, a pior herança deste governo. Em outubro de 2020, Paulo Guedes chamou Rogério Marinho, então ministro do Desenvolvimento Regional, de “fura-teto”. Era a fase ortodoxa de Guedes. Um ano depois, Guedes protagonizou o que viria a ser conhecido como “waiver day”, em que jogou a toalha diante da mudança de critério para calcular o teto de gastos para o ano seguinte, 2022. O pior da pandemia já havia passado há muito, e ficou claro que o furo no teto ocorreu para turbinar os gastos em ano eleitoral. Com isso, legitimou-se qualquer desculpa para gastos adicionais, o que abriu caminho para a PEC da gastança proposta pelo governo eleito.

Considerando prós e contras, o balanço final do governo Bolsonaro na área econômica é, na minha opinião, regular. Podemos ver o reflexo disso nos preços dos ativos. Por exemplo, a bolsa denominada em dólar reflete tanto o movimento da bolsa quanto da moeda. A seguir, temos uma tabela com as rentabilidades em dólar dos principais índices de bolsa no mundo, no período que vai de 28/12/2018 a 28/10/2022 (véspera da eleição), da pior para a melhor:

  • Hong Kong: -42,6%
  • Seul: -12,0%
  • Londres: -4,9%
  • Ibovespa: -2,5%
  • Tóquio: +2,2%
  • Frankfurt: +8,4%
  • Shangai: +9,2%
  • Sidnei: +10,3%
  • México: +19,5%
  • Istambul: +24,6%
  • Bombaim: +40,1%

Podemos notar que a bolsa brasileira não foi a pior do mundo no período, mas ficou longe de ficar entre as melhores. Foi uma bolsa… regular.

Claro, o próximo governo, ao que tudo vem indicando, não promete ser melhor, muito pelo contrário. Mas, para quem esperava o “primeiro governo verdadeiramente liberal desde o descobrimento do Brasil”, acho que ficaram devendo.

Cristal trincado

A primeira medida de impacto do governo Temer foi a aprovação da PEC do teto de gastos, no final de 2016. Os credores da dívida olharam aquilo e pensaram: “Puxa, agora é pra valer! A disciplina fiscal está inscrita na Constituição! É muito difícil mudar isso, precisa de um quórum muito alto”.

De fato, o saldo positivo nas contas públicas durante 15 anos seguidos foi obtido sem que houvesse uma lei do “superávit primário”. O 2o governo FHC elevou a carga tributária, o governo Lula navegou uma onda de crescimento global e o governo Dilma, até 2014, varreu pra debaixo do tapete despesas (as famosas “pedaladas”), mas todos tinham um compromisso não escrito de manter o superávit primário, compromisso este crível, pois suportado por um track record de vários anos. Tanto era assim que, em 2015, quando o governo mandou pela primeira vez um orçamento prevendo déficit primário, foi um rebuliço tal que tiveram que mandar outro, prevendo superávit. Mas o cristal já estava trincado, principalmente porque começava a vir à tona os truques usados para obter os superávits nos anos anteriores.

Com o fim da era dos superávits primários, era necessário um movimento forte, que recuperasse a credibilidade do governo junto aos seus financiadores. Este movimento foi a PEC do teto de gastos. Inscrito na Constituição, o teto dava a garantia de que os superávits voltariam a ser produzidos no futuro. Era uma questão matemática: com as despesas aumentando somente com a inflação e as receitas aumentando com o PIB nominal, em algum momento estas ultrapassariam aquelas.

Bolsonaro, uma vez eleito, trouxe Paulo Guedes, um fiscalista de quatro costados, para comandar a economia. O ministro até cunhou um termo, os “fura-teto”, para se referir àqueles que, dentro do governo, tramavam despesas além do teto. Até que chegou o mês de outubro de 2021. Pressionado politicamente a encontrar solução para o aumento de gastos no ano seguinte, ano eleitoral, o governo patrocinou a PEC dos precatórios, que, além de postergar o pagamento dessas dívidas, espertamente mudava a data para a medição da inflação usada para o cálculo do teto. Essa mudança abriu um espaço adicional no teto, uma espécie de claraboia.

Guedes jurou que não se tratava de abandonar o teto, mas o estrago já estava feito. Ficou claro para os credores que o fato de ter uma PEC do teto não trazia segurança alguma. Uma outra PEC poderia modificá-la, e não era assim tão difícil obter quórum, se Executivo e Legislativo estivessem irmanados no mesmo objetivo de gastar além dos limites. Ali se quebrou um cristal, assim como havia acontecido em 2015.

O anúncio de uma nova PEC para subsidiar os combustíveis é apenas a confirmação dessa suspeita, a de que a PEC do teto não é um compromisso sério só pelo fato de ser uma PEC. O compromisso fiscal, no final do dia, depende da credibilidade do governo, não de uma lei.

O programa de governo do PT, recém divulgado, afirma, com todas as letras, que vai acabar com o teto de gastos, pois a regra “perdeu credibilidade”. É com dor no coração que falo isso, mas o PT está certo neste caso. O regime fiscal brasileiro perdeu credibilidade, porque fabricamos PECs ao gosto da necessidade do momento. Quem deveria guardar a chave do cofre, se presta a encenar óperas bufas, como o anúncio de ontem. Depois não entendem porque o mercado não vê muita diferença entre Lula e Bolsonaro.

Guedes e Galípolo dão-se as mãos

Uma pequena matéria de hoje afirma que a ideia de uma moeda única para o Mercosul uniria Lula e Paulo Guedes.

Fiquei surpreso, e fui googar. De fato, Guedes defendeu essa maravilhosa ideia em agosto do ano passado. Seríamos a Alemanha do bloco, aquele que carrega o piano nas costas.

Já tive oportunidade de escrever um post a respeito, por ocasião de artigo assinado por Fernando Haddad e o novo guru de Lula para a área econômica, Gabriel Galípolo, defendendo exatamente a mesma “ideia”.

Em resumo, trata-se de fazer o rabo abanar o cachorro: não é uma moeda forte que cria as condições para o crescimento e a estabilidade econômica, mas é o crescimento e a estabilidade econômica que criam as condições de se ter uma moeda forte.

Uma união monetária pressupõe um mínimo de homogeneidade fiscal. Caso contrário, um país estará financiando o déficit do outro. Para se manter no Euro, a Grécia teve que cortar fundo na carne, de modo a atingir um grau de sanidade fiscal compatível com a união monetária. A Alemanha, neste caso, serve de âncora fiscal, aquela que impõe a disciplina ao bloco.

A julgar pelo que vem ocorrendo com o nosso orçamento, com a flexibilização do teto de gastos no ano passado e a contratação de despesas que estourarão o teto de gastos no ano que vem, além da “rediscussão” do teto de gastos, que é uma unanimidade entre os candidatos, nossa situação fiscal logo estará semelhante à da Argentina. Aí sim, com essa “homogeneidade fiscal” estaremos prontos para uma moeda comum. Talvez seja a isso que Guedes e Galípolo se referem.

O orçamento e a tia do refeitório

A manchete de hoje é o “esvaziamento” da pasta da economia, com o ministro Paulo Guedes supostamente se tornando um mero subordinado de Ciro Nogueira, o ministro da Casa Civil e um dos chefões do famigerado Centrão. O que dizer?

Parece-me, na verdade, um ganho para o ministro da Economia, não uma perda, na medida em que o livra do desgaste de ser, sozinho, o guarda mau da praça, aquele que sempre diz não.

Para entender isso, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que a regra do teto de gastos ainda existe. Foi modificada em uma manobra pra lá de oportunística, mas ainda existe um limite formal para os gastos, inscrito na Constituição. Portanto, não estamos discutindo aumento de gastos, mas o seu remanejamento. Qualquer aumento de gastos por fora do teto precisa necessariamente passar por votação no Congresso, que tem a última palavra sobre o orçamento público.

Além disso, estamos falando de aproximadamente 5% do orçamento, que são os gastos não obrigatórios. 95% do orçamento já foi carimbado pelo Congresso, nessa e em todas as legislaturas anteriores, desde a proclamação da República. Por isso, acho graça de especialistas dizendo que a execução do orçamento será “politizada”, como se o ministério da Economia fosse uma espécie de ilha imune à política.

A execução do orçamento é sempre política, por definição. O ministério da Economia apenas executa o que os outros ministérios (ou, no caso de emendas parlamentares, os próprios congressistas) definem, tendo como guia a lei orçamentária. É o cara chato que tem como missão avisar que o dinheiro acabou, mas só isso.

Como a lei do teto não foi revogada, foi apenas modificada, o ministério da Economia faz apenas o papel da tia do refeitório, que enche o prato dos alunos com uma quantidade limitada de comida. A indicação do ministro da Casa Civil para dar anuência aos gastos é sinal de que a fila dos alunos virou uma zona, todo mundo querendo passar na frente e pegar mais comida. A tia da cantina não tem condições de avaliar quem tem ou não razão, por isso foi preciso chamar o bedel pra colocar ordem na escola. Só isso.

Essa decisão diz mais sobre o governo Bolsonaro do que sobre o ministro Guedes. Ao chamar o ministro da Casa Civil para organizar a fila, Bolsonaro demonstra que efetivamente perdeu a capacidade de arbitrar as prioridades políticas de seu governo, delegando esse poder ao Centrão de Ciro Nogueira. Tendo sido convencido de que a “nova política” não tinha futuro e não tendo vocação para a “velha política”, Bolsonaro abriu mão da política para dedicar-se às pautas que verdadeiramente lhe interessam, como agradar o baixo clero dos militares e cultivar as franjas do conservadorismo. O Centrão agradece.

A solução milagrosa para os nossos problemas

O ministro Guedes, tendo já resolvido questões prementes, como a reforma tributária (que finalmente livrou os empresários do nightmare tributário brasileiro) e a reforma administrativa (que colocou uma certa ordem na máquina estatal), lançou no ar mais uma ideia que, essa sim, vai resolver os problemas dos pobres brasileiros: a criação do Ministério do Patrimônio da União.

Segundo o ministro, o governo brasileiro tem “uns” R$ 2 trilhões, R$ 3 trilhões em imóveis e estatais, fora “uns” R$ 2 trilhões em “recebíveis”, o que quer que isso signifique.

Durante a campanha, o então candidato a ministro encantou plateias ao afirmar que o Brasil poderia arrecadar R$ 1 trilhão com a privatização de estatais. Com Guedes é assim, nada de pensar pequeno, a coisa é sempre na casa do trilhão. Tá certo que, três anos depois, não privatizamos uma estatalzinha sequer e criamos duas adicionais, a NAV e a ANSN. Mas, como qualquer boleiro experiente sabe, 2 x 0 é um placar perigoso pra quem está ganhando o jogo, e a torcida continua com fé que vamos virar essa partida.

Mas o mais legal é que a solução da pobreza brasileira está aí na esquina. Basta vender esse patrimônio, arrecadar esses trilhões e distribuir tudo. Como ninguém pensou nisso antes!

Não sei porque, isso me fez lembrar da fala da Dilma no dia do leilão do pré-sal. Fui recuperar esse discurso:

O pré-sal era o “passaporte para o futuro”, o dinheiro arrecadado seria investido em educação e saúde do povo. Oito anos depois, o pré-sal está aí, gerando royalties para o governo. Mas deu algum problema com o “passaporte para o futuro”, a PF ainda não conseguiu emitir.

E assim vamos, de trilhão em trilhão, enquanto os pobres brasileiros continuam a sonhar com dias melhores. Que certamente virão, quando, na próxima eleição, elegerem o presidente “certo”, que vai tirar da cartola outra dessas soluções milagrosas para todos os nossos problemas.

Com um pé no acelerador e o outro no freio

“Não podemos tirar 10 no fiscal e zero no social”. Com essas palavras, o ministro da economia enterrou a disciplina fiscal.

Imagine por um momento que o comunicado do Copom de ontem trouxesse uma frase desse tipo: “Não podemos tirar 10 na inflação e zero no social”. Já imaginou?

Estamos em um carro em que o governo está com um pé no acelerador e o BC está com o outro pé no freio. Quanto mais o governo acelera de um lado, mais o BC precisa apertar o freio do outro, caso contrário, o carro vai entrar acelerado na curva da inflação e capotar. O resultado é um carro instável na pista.

Se o BC tivesse a “consciência social” do nosso ministro da economia, não estaria acelerando a alta dos juros agora. No entanto, Campos Neto e seus companheiros de Copom sabem que o principal programa social é evitar a inflação, que é o imposto mais perverso, pois acaba com a renda dos mais pobres.

Ao abrir mão de “tirar 10” no fiscal, o governo forçou o BC a aumentar mais as taxas de juros, para “tirar 10” na inflação. No final, alguns milhares de empregos deixarão de ser criados por causa da desaceleração adicional da atividade econômica, causada pela subida adicional dos juros. Mas, tudo bem, o auxílio eleit… quer dizer, o auxílio emergencial será pago, dando uma ajuda para os pobres que nem sabem o quanto foram prejudicados para obter essa mesma ajuda. E, de quebra, vai sobrar um dinheirinho para reforçar as emendas parlamentares e o fundo eleitoral, que ninguém é de ferro.

Corno manso

Já escrevi aqui sobre o uso da conjunção adversativa “mas”. Trata-se de uma palavrinha que quer passar a ideia de que ambas as ideias ligadas são igualmente importantes, ainda que opostas. No entanto, quem tem algum treino de leitura, sabe que a segunda ideia domina a primeira, ainda mais se estão opostas uma ideia geral e conceitual e outra mais, digamos, prática, da vida.

Assim, por exemplo, na frase “sou a favor da fidelidade conjugal, mas sabe como é, a carne é fraca”, a fidelidade conjugal faz o papel de um objetivo desejável mas impossível de ser alcançado diante da fraqueza da carne. Claro está que a primeira ideia é somente uma declaração de intenções, enquanto é a segunda que determina a real intenção do orador.

O ministro da economia continua querendo nos convencer de que é um defensor da austeridade e do teto de gastos. Mas aí vem a palavrinha “mas”, com a ideia que realmente é importante: não dá para deixar 17 milhões de pessoas passando fome. Esta é a parte prática, a que realmente importa. Assim como o marido que trai a mulher (ou vice-versa, para não me chamarem de misógino), a tal fidelidade é somente uma declaração de intenções.

Infelizmente para o ministro da Economia, o mercado não é corno manso. Pelo contrário, costuma ser muito vingativo.

Perdendo a virgindade

Todos conhecem a piada do namorado que, tentando convencer a namorada virgem a transar, a tranquiliza dizendo algo que não vou repetir aqui para não ferir suscetibilidades.

Quando o ministro da Fazenda, que é, em tese, o guardião da disciplina fiscal, usa o mesmo artifício do namorado, sabemos que a virgindade foi para o espaço. No caso, o teto de gastos, para todos os efeitos, não existe mais.

Lula está esfregando as mãos. Com sua capa de defensor dos pobres, exige que o auxílio seja de R$600.

Por que não? Afinal, como sabe qualquer casal de namorados, uma vez iniciado o ato, é impossível qualquer tipo de controle. Por que só R$ 30 bilhões? Por que não 60 ou 100 ou 200? Afinal, os pobres estão precisando, e não podemos nos tornar escravos do mercado, como afirmou o sábio Mourão.

O Congresso já está falando de um auxílio de R$500, e para chegar nos R$600 de Lula é um pulinho. Lula não se importa com os eventuais ganhos eleitorais de Bolsonaro porque é reconhecido como o pai do programa, desde sempre vilipendiado por Bolsonaro. Além disso, a deterioração das condições macroeconômicas, com o aumento dos juros, dólar e inflação, pode significar uma perda líquida de popularidade para o presidente no final do dia.

Há um suposto embate ideológico encomendado para o ano que vem, com candidatos de esquerda e de direita polarizando as eleições. Nada mais falso. O inimigo do Brasil não é o comunismo ou o capitalismo. O verdadeiro inimigo do Brasil é o populismo, terreno em que a esquerda e a direita tupiniquim se encontram festivamente.

Abusando da inteligência do cidadão

“Se entrarem os precatórios, não há dinheiro para expandir as vacinas. Será que o jovem lá do IFI sabe disso? Ele prefere pagar o precatório e ficar sem vacina? Eu acho que os senadores, se estivessem bem assessorados, estariam bem informados disso”.

Essa fala calhorda foi pronunciada pelo nosso ministro da Economia, em audiência no Senado na última quinta-feira.

Seria mais ou menos o seguinte: o pai de família esbanja dinheiro com carros, viagens e amantes. É então condenado em uma ação judicial, mas diz para o juiz: “olha, não consigo pagar, senão vai faltar comida na mesa da minha família”.

Não é de hoje que o nosso ministro da Economia abusa da inteligência do cidadão brasileiro pagador de impostos.

As críticas de Guedes à Instituição Fiscal Independente

A IFI, Instituição Fiscal Independente, é um instituto ligado ao Senado Federal. Foi criada em março de 2016 e instalada em novembro do mesmo ano, como resposta ao trauma causado pelas “pedaladas fiscais” do governo Dilma.

Quem acompanhava de perto as contas do governo na época sabia que algo não estava se encaixando. Mansueto Almeida, por exemplo, mantinha um blog em que apontava as incongruências e bombas-relógio que estavam em gestação nas contas públicas da época. Com o objetivo de não depender da boa vontade de especialistas eventuais, o Senado, seguindo as melhores práticas internacionais, estabeleceu a IFI, que conta com diretores com mandatos fixos. O economista Felipe Salto foi escolhido para ser o primeiro diretor-executivo em um mandato de 6 anos, em função de seu extenso currículo em finanças públicas.

Ontem, o ministro da economia, Paulo Guedes, ao ser perguntado sobre uma determinada previsão da IFI, atacou a reputação de Felipe Salto.

Vou destacar aqui três afirmações:

  1. “A IFI disse que nós iríamos furar o teto de gastos no primeiro ano”
  2. “[A IFI] disse que nós iríamos furar o teto no segundo ano”
  3. “a IFI disse que a dívida iria chegar a 100% do PIB”.

Segundo Guedes, as três previsões se comprovaram furadas. “Previsões muito fracas” e “um economista que tem errado dez em cada dez”, foram as palavras usadas.

Fui verificar se, de fato, a IFI, sob a liderança de Felipe Salto, havia feito essas previsões. Para tanto, pesquisei os Relatórios de Acompanhamento Fiscal, produzidos mensalmente pelo Instituto. Já aviso que são trabalhos densos, muito bem elaborados.

A primeira menção ao teto de gastos durante o governo Bolsonaro ocorre no relatório de maio de 2019. Podemos ler o resumo a seguir:

Podemos observar que não há projeção de rompimento do teto de gastos até 2022. Portanto, a IFI não “previu” que o teto seria furado “no primeiro ano” e nem “no segundo ano”. Pelo menos, não nesse primeiro relatório.

O trecho a seguir, do mesmo relatório, mostra um pouco como é a metodologia de trabalho de qualquer economista que faz previsões:

Observe como o economista desenha um cenário e vai adaptando-o na medida em que novas informações vão sendo conhecidas. Existe um mal-entendido sobre o trabalho do economista: ele não é pago para “acertar” o cenário, não tem uma “bola de cristal” para isso. O economista apenas aponta a direção para onde o barco está indo. Se, no meio do caminho, o barco muda de direção, ele refaz as suas premissas. Paulo Guedes sabe disso, mas, acuado, atira no mensageiro. Sigamos.

No relatório de setembro/19, a IFI novamente não prevê furo do teto:

No relatório de novembro, a IFI volta a prever o “furo” do teto de gastos para 2021 (não 2019 e nem 2020). Trata-se do “cenário-base”. No cenário otimista, o teto seria rompido somente em 2024 e, no pessimista, também em 2021. Como podemos observar no trecho abaixo do mesmo relatório, não havia risco de descumprimento do teto de gastos em 2020.

Portanto, podemos observar que as duas primeiras afirmações de Guedes não tem sustentação nos fatos. Vejamos a terceira.

Com o surgimento da crise provocada pela pandemia, não fazia mais sentido falar em teto de gastos em 2020, pois os gastos foram muito acima do teto em função do auxílio emergencial. E quanto à dívida? A primeira menção da IFI ao tamanho da dívida foi no relatório de abril/2020, ainda com muita incerteza:

Note que estamos longe dos 100% do Paulo Guedes neste momento. Mas, como disse, havia muita incerteza, e esse número seria mudado ao longo do tempo. No relatório de maio, esta previsão havia subido para 86,6% do PIB, em junho uma grande revisão para 96,1% do PIB.

Esta grande revisão se deu porque houve uma grande revisão para baixo do PIB naquele momento (maio), no olho do furacão da crise. Esta previsão somente seria mudada em novembro, com os dados de outubro, revisando o PIB para cima:

Note que essa revisão se deu porque o IFI incorporou na receita impostos que haviam sido diferidos entre abril e junho. Conservadoramente, o Instituto não havia considerado esses impostos como receitas de 2020.

A relação dívida/PIB seria novamente revista no relatório de janeiro deste ano, de 93,1% para 90,1% do PIB:

Esta revisão se deu por três fatores: uma revisão de metodologia do IBGE, que elevou o PIB nominal de 2018 e, portanto, o restante da série, um queda menor do PIB real e uma inflação maior do que a prevista inicialmente, o que aumenta o PIB nominal, diminuindo a relação dívida/PIB.

E chegamos ao fim das previsões, a relação dívida/PIB do Brasil fechou 2020 por volta de 90%. Uma previsão que variou de 84,9% a 96,1% durante um ano estupidamente conturbado como o de 2020. Em nenhum momento a previsão atingiu os “100%” do Guedes.

Paulo Guedes vem se notabilizando por prometer muito e entregar pouco, muito pouco. Penso que não tem autoridade nem moral para criticar o trabalho de uma instituição séria como a IFI.