Risco zero não existe

Ainda estou passado com o assassinato do ex-primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe. Como pode, em um país que tem o pacifismo como uma marca de sua sociedade após a tragédia da 2a Guerra Mundial, onde as armas são estritamente controladas e a polícia atua sem armas, um atentado com arma de fogo tirar a vida de um político proeminente como Abe. Simplesmente inacreditável.

Ouço, aqui e ali, o raciocínio de que essa seria uma prova de que nada adiantaria o controle de armas. O mesmo raciocínio que se seguiu ao atentado de Chicago, feito com uma arma comprada legalmente em um estado com um dos mais restritos conjunto de regras para a obtenção de armas. Se apertar o controle de armas não foi o suficiente para evitar a tragédia, então é inócuo controlar armas para a diminuição da violência. Se armas fossem simplesmente proibidas, o assassino improvisaria qualquer outra arma, como aparentemente foi o caso no Japão. Armas não matam, pessoas matam, esse é o mantra.

Esse é um raciocínio falacioso. Quando falamos de segurança, a proteção nunca é 100%. A questão é saber se a proteção serve para aumentar o nível de segurança, não se a proteção elimina 100% do risco. Isso, obviamente, não existe.

Essa falácia se repete em toda parte. Na pandemia tivemos vários exemplos. “Usou máscara e pegou Covid”. “Tomou vacina e morreu de Covid”. Essas são frases usadas para “provar” que de nada adianta usar máscara ou tomar vacina, pois houve casos em que esses cuidados não funcionaram. Mas a questão não é essa. A questão é se, na ausência desses cuidados, o risco seria ou não maior. E, ao que tudo indica, máscaras e vacinas protegem, mas não 100%. Portanto, vale (ou valeu) a pena a sua adoção.

Podemos reduzir ao absurdo esse tipo de raciocínio usando outros exemplos. Há aviões que caem mesmo com a manutenção em dia. Portanto, manutenção não serve de nada. Há casas que são assaltadas mesmo com cercas elétricas e cães de guarda. Portanto, de nada adianta a adoção dessas proteções. Há motociclistas que morrem em acidentes mesmo usando capacete. Portanto, capacetes não servem para nada. E assim por diante.

Risco é medido pela probabilidade de um evento negativo. Se diminuímos a chance daquele evento, já há um ganho, mesmo que a probabilidade não seja reduzida a zero. O assassinato do ex-primeiro-ministro japonês e o atentado de Chicago não dizem nada sobre a eficácia de controle de armas, pois são eventos isolados. É preciso fazer um estudo com dados agregados de diferentes lugares com diferentes níveis de controle de armas, controlado por eventuais fatores correlacionados, para se chegar a alguma conclusão. Eventos isolados só servem como narrativa, não como evidência.

Dois massacres, dois critérios editoriais

Dois eventos separados por alguns dias e alguns milhares de quilômetros.

O primeiro, o massacre de 21 seres humanos no Texas, EUA, no dia 24/05. O segundo, o massacre de 50 seres humanos em Ondo, Nigéria, ontem.

A cobertura jornalística desses dois eventos, no entanto, foi completamente diferente. O primeiro teve direito a chamada de 1a página, página inteira e sucessivas reportagens nos dias seguintes, sem contar os inúmeros artigos a respeito.

O segundo mereceu uma nota de rodapé, e provavelmente não terá repercussão posterior alguma.

Pode-se questionar legitimamente a diferença de cobertura jornalística para dois eventos semelhantes, quais sejam, massacres de inocentes a tiros. Não sou jornalista, portanto vou apenas alinhar três hipóteses.

A primeira é o local dos acontecimentos. Os EUA são um país rico, com baixos índices de violência para os nossos padrões, onde se espera que as pessoas possam realizar suas atividades sem correrem o risco de serem assassinadas. A Nigéria, por outro lado, faz parte desse mundo selvagem, em que a América Latina se inclui, onde a vida não vale muita coisa. Além disso, muitos mais brasileiros visitaram os EUA do que a Nigéria. Consideramos os EUA como nossa segunda casa, ao passo que a Nigéria faz parte daqueles “roteiros exóticos”. Portanto, do ponto de vista jornalístico, um massacre nos EUA teria mais interesse dos leitores.

A segunda hipótese é a natureza dos fatos. No caso do massacre do Texas, crianças e professoras foram assassinadas. No caso de Ondo, famílias assistindo à missa dominical. Ambos parecem semelhantes em sua brutalidade gratuita. No entanto, a violência é tanto mais tocante quanto mais conseguimos nos colocar no lugar das vítimas e seus familiares. A experiência de ter crianças na escola é mais universal do que a de assistir a um culto no domingo. Além disso, as pessoas sempre serão mais sensíveis à morte de crianças do que de adultos.

Por fim, a terceira hipótese é sobre quem cometeu o crime. No caso do Texas, temos um jovem desequilibrado que comprou legalmente a arma usada no massacre. No caso de Ondo, é provável a ação terrorista de jihadistas. O massacre do Texas serviu para aquecer o debate sobre a posse legal de armas, o que é útil também para o debate político brasileiro, quando temos um presidente abertamente a favor de normas mais flexíveis nesse campo. Já no caso de Ondo, jihadistas lembram a violência islâmica, o que se tornou um tema politicamente incorreto. Além disso, massacre contra católicos não é exatamente uma agenda atraente, em um país cujo catolicismo é acusado, pela esquerda, de acobertar o “genocídio indígena” e pela direita, de acobertar “ideologias socialistas”. Você não lerá artigos sobre como é perigoso ser católico em algumas partes do mundo ou como o terrorismo islâmico tem feito vítimas ao longo do tempo. Mas continuará lendo muitos artigos sobre como a aquisição legal de armas tem efeitos deletérios para a segurança das pessoas.

Enfim, como disse, não sou jornalista. Mas sei contar, e percebi que o número de palavras usadas no massacre do Texas foi imensamente maior que o número de palavras usadas no massacre de Ondo. Algum editor escolheu o número de palavras para cada fato. As hipóteses (não excludentes) para essa escolha estão descritas acima.

Armas e homicídios: em busca de uma correlação

Com mais armas, homicídios voltam a subir no Brasil.

Esta é a correlação defendida pela manchete da reportagem do Estadão, com base nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Na matéria, ficamos sabendo que foram registrados 186 mil novas armas no Brasil em 2020, 97% a mais do que em 2019. Então, mais armas, mais homicídios, correto?

Seria assim se fosse assim.

Primeiro, porque não se faz análise de série temporal com 2 pontos.

Segundo, porque o número de armas registradas já havia aumentado de maneira significativa em 2019. De acordo com outra reportagem, da BBC News, em 2019 o número de armas registradas havia aumentado 84% em relação aos registros de 2018. E, no ano de 2019, o número de homicídios havia diminuído. Além disso, se esta correlação fosse verdadeira, deveria valer no nível de cada unidade da federação. Plotei um gráfico simples, com base nos dados do Anuário, relacionando variação de homicídios com variação do número de armas, por unidade da federação. O resultado pode ser observado no gráfico abaixo.

A correlação é virtualmente zero. Há estados, como o Ceará, onde o número de homicídios aumentou de maneira significativa sem aumento significativo do número de armas, ao mesmo tempo em que observamos estados como Minas Gerais, onde o número de armas aumentou de maneira significativa sem aumento do número de homicídios.

Claro que há outros fatores que explicam o aumento do número de homicídios. A desestruturação da Polícia Militar no Ceará deve explicar boa parte do aumento de homicídios naquele estado, o que, por sua vez, explica 78% do aumento de homicídios no país em 2020 (aliás, esta deveria ter sido a manchete).

Por outro lado, se o número de armas fosse outro fator relevante, deveria aparecer em uma análise cross-sectional simples como a do gráfico acima. Aliás, mesmo que aparecesse alguma correlação, esta poderia ser espúria, devida a outros fatores não considerados. Mas o oposto não ocorre: haver correlação e não aparecer em uma regressão como a que foi feita acima.

Resumindo: o aumento do número de homicídios pode até ter alguma correlação com o aumento do número de armas em posse dos cidadãos. Mas não são as estatísticas do Anuário da Segurança Pública 2020 que provam a tese.

Porte de armas

Ate três dias atrás, se algum instituto de pesquisa me abordasse na rua, perguntando minha opinião sobre a posse e o porte de armas, minha resposta teria sido um “tendo a apoiar”. Confesso que tenho mixed feelings a respeito do assunto, mas sou simpático à ideia de que as pessoas têm direito à autodefesa, e que proibir armas não vai impedir o acesso de bandidos a elas.

Isso foi até três dias atrás, quando um colega de trabalho, que se senta do meu lado, recebeu um telefonema da esposa. Ele ficou branco e, ao desligar, contou a história: a esposa dele havia atravessado inadivertidamente um tiroteio na Vila Mariana, um bairro nobre de São Paulo. Uma bala perdida havia penetrado no carro e, pela providência divina, não havia acertado nenhum dos passageiros, a esposa desse meu amigo e os pais dela.

Não tínhamos toda a história naquele momento, e começamos a conversar sobre como a cidade está violenta, etc etc etc. Somente no dia seguinte vim a conhecer a verdadeira história: uma briga por conta de uma negociação de um automóvel encontrou uma “pessoa de bem” de mau humor e armada, e o resultado foram os tiros que feriram dois policiais e quase terminou em tragédia, ceifando a vida de pessoas que passavam por ali sem ter nada a ver com isso.

Continuo tendo mixed feelings a respeito do assunto. Talvez o aumento da segurança geral gerado com o porte de armas mais do que compense o risco de uma tragédia. Mas, se algum instituto de pesquisas me abordasse hoje, minha resposta seria “tendo a não apoiar”. Acho que esse deve ser o sentimento médio do Congresso, razão pela qual Bolsonaro foi obrigado a retirar o decreto sobre armas. É preciso discutir isso aí melhor, talkey?