Dois massacres, dois critérios editoriais

Dois eventos separados por alguns dias e alguns milhares de quilômetros.

O primeiro, o massacre de 21 seres humanos no Texas, EUA, no dia 24/05. O segundo, o massacre de 50 seres humanos em Ondo, Nigéria, ontem.

A cobertura jornalística desses dois eventos, no entanto, foi completamente diferente. O primeiro teve direito a chamada de 1a página, página inteira e sucessivas reportagens nos dias seguintes, sem contar os inúmeros artigos a respeito.

O segundo mereceu uma nota de rodapé, e provavelmente não terá repercussão posterior alguma.

Pode-se questionar legitimamente a diferença de cobertura jornalística para dois eventos semelhantes, quais sejam, massacres de inocentes a tiros. Não sou jornalista, portanto vou apenas alinhar três hipóteses.

A primeira é o local dos acontecimentos. Os EUA são um país rico, com baixos índices de violência para os nossos padrões, onde se espera que as pessoas possam realizar suas atividades sem correrem o risco de serem assassinadas. A Nigéria, por outro lado, faz parte desse mundo selvagem, em que a América Latina se inclui, onde a vida não vale muita coisa. Além disso, muitos mais brasileiros visitaram os EUA do que a Nigéria. Consideramos os EUA como nossa segunda casa, ao passo que a Nigéria faz parte daqueles “roteiros exóticos”. Portanto, do ponto de vista jornalístico, um massacre nos EUA teria mais interesse dos leitores.

A segunda hipótese é a natureza dos fatos. No caso do massacre do Texas, crianças e professoras foram assassinadas. No caso de Ondo, famílias assistindo à missa dominical. Ambos parecem semelhantes em sua brutalidade gratuita. No entanto, a violência é tanto mais tocante quanto mais conseguimos nos colocar no lugar das vítimas e seus familiares. A experiência de ter crianças na escola é mais universal do que a de assistir a um culto no domingo. Além disso, as pessoas sempre serão mais sensíveis à morte de crianças do que de adultos.

Por fim, a terceira hipótese é sobre quem cometeu o crime. No caso do Texas, temos um jovem desequilibrado que comprou legalmente a arma usada no massacre. No caso de Ondo, é provável a ação terrorista de jihadistas. O massacre do Texas serviu para aquecer o debate sobre a posse legal de armas, o que é útil também para o debate político brasileiro, quando temos um presidente abertamente a favor de normas mais flexíveis nesse campo. Já no caso de Ondo, jihadistas lembram a violência islâmica, o que se tornou um tema politicamente incorreto. Além disso, massacre contra católicos não é exatamente uma agenda atraente, em um país cujo catolicismo é acusado, pela esquerda, de acobertar o “genocídio indígena” e pela direita, de acobertar “ideologias socialistas”. Você não lerá artigos sobre como é perigoso ser católico em algumas partes do mundo ou como o terrorismo islâmico tem feito vítimas ao longo do tempo. Mas continuará lendo muitos artigos sobre como a aquisição legal de armas tem efeitos deletérios para a segurança das pessoas.

Enfim, como disse, não sou jornalista. Mas sei contar, e percebi que o número de palavras usadas no massacre do Texas foi imensamente maior que o número de palavras usadas no massacre de Ondo. Algum editor escolheu o número de palavras para cada fato. As hipóteses (não excludentes) para essa escolha estão descritas acima.

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