Jornalismo corroído pela metade

Essa matéria do G1, e que foi repercutida com estardalhaço pela Globo News, vai entrar para os anais do jornalismo brasileiro como exemplo de como os coleguinhas não têm a mínima noção do que estão fazendo.

Primeiro, a parte técnica: alguém pegou a série de renda REAL do PNAD, e tratou-a como NOMINAL. Ou seja, uma série que já é ajustada pela inflação do período (esse é o significado da palavra real) foi novamente descontada pela inflação do período. O resultado foi uma série em que a inflação entrou duas vezes, como se a inflação no Brasil tivesse o quadrado da inflação real. Ou seja, ao invés de uma inflação de 88% nesses 10 anos do estudo, a conta foi feita como se a inflação tivesse sido de 253%.

Mas, como eu sempre digo para os meus alunos, muitas vezes você não precisa saber a fórmula para acertar uma questão. Basta conhecer o conceito. Como qualquer grandeza agregada, a massa de renda deve mais ou menos acompanhar o PIB em prazos mais longos. Dizer que a renda caiu pela metade significa dizer que o PIB também teria caído mais ou menos pela metade nesse período, o que é uma rematada tolice. Uma tolice que ninguém no G1 ou na Globo News foi capaz de identificar. Não teve um, unzinho, que entendesse minimamente de economia para parar esse trem.

Por fim, e aqui falo somente de jornalismo, como e por que surge uma pauta dessas? Deixo em aberto essa pergunta, pois jornalismo não é minha praia.

Nada é tão simples a ponto de caber em uma manchete de jornal

Quem lê as reportagens nos jornais ou assiste aos telejornais, sai com a impressão de que Israel, através de seu bloqueio, é o único agente responsável pela falta de bens essenciais em Gaza.

Dá uma olhada no mapa abaixo.

Sem dúvida, a maior fronteira de Gaza é com Israel. Mas não é 100%. Gaza tem uma fronteira de 12km com o Egito, mais do que suficiente para permitir a entrada de bens essenciais. Ocorre que o Egito TAMBÉM mantém um bloqueio na fronteira com Gaza. Inclusive, está se organizando para impedir um êxodo de palestinos através dessa fronteira. Por que?

Para entender, precisamos voltar até 2014, quando o governo do Egito decidiu pelo bloqueio. O país, mais especificamente a península do Sinai (onde Gaza faz fronteira), vinha sofrendo uma série de ataques terroristas do braço egípcio do Estado Islâmico (ISIS). O ISIS, assim como seus co-irmãos Jihad Islâmica e Hamas, faz parte da Irmandade Muçulmana, que tem como objetivo a implantação de estados islâmicos regidos pela Sharia, como é o Irã. O Egito é um estado laico e, por isso, é atacado pelos extremistas.

Pois bem. O governo egípcio tinha evidências que os palestinos do Hamas colaboravam com seus co-irmãos do ISIS. Assim, para mitigar o risco, decidiu pelo bloqueio. O Egito, ao colaborar com o bloqueio de Israel, está resolvendo um problema doméstico. É Israel que vai sujar suas mãos de sangue ao acabar com o Hamas, mas ao governo do Egito também interessa o fim do grupo.

Nada é tão simples a ponto de caber em uma manchete de jornal.

Miss Congresso

O site Congresso em Foco promove anualmente um concurso de beleza cívica, com o objetivo de coroar os parlamentares mais belos, bons e justos de nosso Congresso. Para garantir o seu objetivo, faz uma lista prévia, em que retira todos os parlamentares que porventura sejam objeto de inquérito na justiça e, principalmente, não tenham praticado atos “em flagrante confronto com o Estado Democrático de Direito e o respeito aos direitos humanos fundamentais”.

Depois desse filtro inicial, sobraram 419 deputados e 64 senadores aptos a serem escolhidos. Com esses critérios, imagino a lista de parlamentares que ficou de fora.

A deputada Sâmia Bonfim foi a grande vencedora da noite, sendo eleita Miss Congresso tanto pelo júri popular quanto pelo júri dos jornalistas. Em seu discurso da vitória, a deputada, visivelmente emocionada, declarou: “esse prêmio de melhor deputada é uma resposta à violência política de gênero!”, uma fala que arrancou suspiros da plateia e certamente estará na edição revisada de O Pequeno Príncipe.

Houve três tipos de votação: popular (via internet), jornalistas políticos e júri especializado.

A lista dos 25 jornalistas escolhidos para o concurso foi a seguinte:

  • Reinaldo Azevedo – Folha / Bandnews
  • Ricardo Noblat – Metrópoles
  • Denise Rothenburg – Correio Braziliense
  • Wilson Lima – O Antagonista
  • Guilherme Amado – Metrópoles
  • Eduardo Bresciani – Jota
  • Rafael Moraes Moura – O Globo
  • Ana Lúcia Caldas – EBC
  • Eliane Cantanhêde – Estadão / Globonews
  • Isa Stacciarini – CBN
  • Cristina Serra – ICL Notícias
  • Dora Kramer – Bandnews / Jovem Pan News
  • Anthony Broadle – Reuters
  • Hiury Wdson – Radioweb
  • Rubens Valente – Agência Pública
  • Carla Benevides – TV Senado
  • Adriano Oliveira – Bandnews
  • Cristiane Sampaio – Brasil de Fato
  • Renata Varandas – Record TV
  • Julianna Sofia – Folha
  • Luciana Lima – Meio
  • Raphael Felice – Correio Braziliense
  • Edilene Lopes – Itatiaia
  • Isabel Mega – SBT
  • Iasmin Costa – Jovem Pan News

A lista dos 6 componentes do júri especializado foi a seguinte:

  • Mara Karina Sousa-Silva – ativista contra o racismo
  • Priscila Cruz – Todos Pela Educação
  • Adayse Bossolani – ambientalista
  • Sylvio Costa – fundador do Congresso em Foco
  • Carlos Melo – cientista político
  • Ricardo Sennes – analista político

Os resultados das três votações estão anexados. Duas observações a respeito desses resultados:

– o “júri popular” não escolheu sequer um deputado de direita (ou mesmo de centro) entre os 25 mais votados. Entre os senadores, Soraya Thronicke, Marcos Pontes e Otto Alencar são menções honrosas. O que demonstra duas coisas: 1) o tipo de público que lê O Congresso em Foco e 2) como essas votações na internet não servem como proxy de nada, dado que os congressistas mais votados nessa lista estão longe de serem os mais votados do Congresso. Aliás, essa é uma boa contraprova de como popularidade na internet não se traduz necessariamente em voto, um ponto frequentemente levantado para colocar em dúvida o resultado das eleições.

– o resultado da votação dos jornalistas está muito mais próximo do resultado da votação pelo júri popular do que pelo júri especializado. O que demonstra que os jornalistas, na média, estão mais para leigos com uma caneta na mão do que profissionais especializados no que fazem. E leigos com um determinado viés.

Sou conselheiro do Ranking dos Políticos, uma organização que, como o nome diz, ordena os congressistas de acordo com determinados critérios. Ao contrário desse concurso de beleza cívica do Congresso em Foco, o Ranking dos Políticos tem critérios bastante objetivos: os conselheiros atribuem pesos para cada projeto de lei a ser votado no Congresso, tanto positivo quanto negativo. A nota do congressista é resultado do seu voto concreto, ponderado pelos pesos dados pelos conselheiros do Ranking. Assim, a atuação dos parlamentares é medida pelo que mais importa: como votou o deputado, para usar a expressão eternizada pelo inesquecível Eduardo Cunha.

Além de objetivo, o Ranking dos Políticos não se pretende isento e imparcial. Seu viés liberal é público e notório, de forma que ninguém é enganado quando vê o resultado do ranking, que pontua melhor os congressistas mais liberais. Já o concurso de beleza cívica do Congresso em Foco é apresentado como se fosse a coisa mais isenta do mundo, em que os parlamentares seriam escolhidos por supostos “critérios universais”. Assim é se assim lhe parece.

O desafio da remuneração das empresas jornalísticas

O PL das fake news foi fatiado, e a parte, digamos, menos polêmica, será votada. Trata-se da remuneração dos veículos jornalísticos por parte das grandes plataformas.

Escrevo aqui no FB, e já tive artigos replicados em um site bolsonarista com milhões de seguidores. Mas em termos de prestígio pessoal, nada superou, nem de longe, os poucos dos meus artigos que chegaram às páginas do Estadão. Recebi congratulações como se tivesse atingido o próximo nível do jogo.

Apesar de tudo, o jornalismo profissional continua pautando os grandes debates na opinião pública. Note: a notícia que você está comentando hoje certamente foi publicada antes em um grande jornal. E a polêmica continua na medida em que a notícia continua sendo publicada. O jornalismo profissional é essencial para qualquer democracia. Não é à toa que a primeira providência de qualquer ditadura é estabelecer um periódico oficial e eliminar os independentes.

Tendo dito tudo isso, o PL que será votado na Câmara carece de qualquer lógica econômica. Não é o tráfego do Google (em tese, a plataforma a ser atingida por essa lei) que aumenta com o jornalismo profissional. É o justo oposto. Ao disponibilizar o link de uma reportagem, o internauta é direcionado para o site do jornal. Pode haver um pequeno trecho da reportagem na própria página de buscas, que serve como uma pista para o teor do conteúdo e facilita a vida de quem está buscando a informação, mas dizer que aquele pequeno trecho substitui a matéria inteira a ponto de o internauta dispensar a leitura do jornal é denegrir a própria imagem do jornalismo profissional, pois significa dizer que toda reportagem poderia ser resumida em um parágrafo.

De qualquer forma, isso é fácil de resolver: basta que o Google não reproduza mais os trechos de matérias de empresas jornalísticas. No limite, o Google poderia simplesmente suprimir esses links. Foi o que aconteceu na Austrália e no Canadá, onde legislações semelhantes foram aprovadas. Obviamente, tiveram que “ajustar” os termos, caso contrário, os sites jornalísticos estariam condenados ao ostracismo. Esse é o problema de leis que desafiam a lógica econômica: os agentes econômicos reagem de acordo com a sua própria lógica. No caso, não existe como obrigar o Google a listar determinados sites em sua página, o que não deixa muita alternativa aos sites jornalísticos.

A forma como consumimos notícias mudou com a internet, e trata-se de um movimento irreversível. Os grandes jornais precisam encontrar formas de se remunerar nesse novo ambiente, o que exige criatividade na elaboração de novos modelos de negócios, sempre preservando a essência do jornalismo profissional. Não é tarefa fácil, e não será com leis voluntaristas que desafiam a lógica econômica que se resolverá o problema.

Denuncismo vazio

O JN mostrou hoje uma pequena reportagem de 3 minutos sobre trabalho infantil, por ocasião do Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. Não, não assisti, li o conteúdo no site do jornal.

É daquelas matérias que terminam e você se pergunta: e? Qual a linha de ação para acabar com essa chaga social? Nada. O máximo que se conseguiu nesse sentido foi uma passeata em São Luiz, promovida por “entidades”. Realmente, vai resolver muito. – Ah, mas pelo menos vai conscientizar os brasileiros sobre o problema. Claro, eu mesmo não sabia que havia crianças pedindo dinheiro no farol, foi uma revelação para mim. Tenha a santa paciência.

Mas paciência mesmo precisa para ouvir, sem perder a compostura, a declaração de um juiz da vara da infância sobre os males do trabalho infantil. Além de ser contra a lei (sério?), o trabalho infantil impede a criança de brincar (?!?). E o que o juiz sugere? Que se prenda os pais? Que se arranque os filhos dos pais e os mande para um reformatório? Qual a sugestão exatamente?

Pois eu tenho uma sugestão. Que tal se os juízes, inclusive esse que deu a entrevista, abrissem mão dos seus 60 dias de férias remuneradas e, com o dinheiro poupado, se fizesse um fundo para ajudar na manutenção das crianças na escola?

Na boa, é muito blá-blá-blá, muito escândalo farisaico diante de uma realidade triste, mas ninguém está disposto a mover-se um milímetro de sua posição para mitigar o problema. A Globo, claro, acha que já contribuiu com 3 minutos de reportagem sobre o tema. Seus editores devem ter ido satisfeitos para a cama, com o sentido do dever cumprido. Amanhã, essas mesmas crianças da reportagem estarão nas ruas novamente. O que merecerá mais uma matéria daqui a um ano.

Dois massacres, dois critérios editoriais

Dois eventos separados por alguns dias e alguns milhares de quilômetros.

O primeiro, o massacre de 21 seres humanos no Texas, EUA, no dia 24/05. O segundo, o massacre de 50 seres humanos em Ondo, Nigéria, ontem.

A cobertura jornalística desses dois eventos, no entanto, foi completamente diferente. O primeiro teve direito a chamada de 1a página, página inteira e sucessivas reportagens nos dias seguintes, sem contar os inúmeros artigos a respeito.

O segundo mereceu uma nota de rodapé, e provavelmente não terá repercussão posterior alguma.

Pode-se questionar legitimamente a diferença de cobertura jornalística para dois eventos semelhantes, quais sejam, massacres de inocentes a tiros. Não sou jornalista, portanto vou apenas alinhar três hipóteses.

A primeira é o local dos acontecimentos. Os EUA são um país rico, com baixos índices de violência para os nossos padrões, onde se espera que as pessoas possam realizar suas atividades sem correrem o risco de serem assassinadas. A Nigéria, por outro lado, faz parte desse mundo selvagem, em que a América Latina se inclui, onde a vida não vale muita coisa. Além disso, muitos mais brasileiros visitaram os EUA do que a Nigéria. Consideramos os EUA como nossa segunda casa, ao passo que a Nigéria faz parte daqueles “roteiros exóticos”. Portanto, do ponto de vista jornalístico, um massacre nos EUA teria mais interesse dos leitores.

A segunda hipótese é a natureza dos fatos. No caso do massacre do Texas, crianças e professoras foram assassinadas. No caso de Ondo, famílias assistindo à missa dominical. Ambos parecem semelhantes em sua brutalidade gratuita. No entanto, a violência é tanto mais tocante quanto mais conseguimos nos colocar no lugar das vítimas e seus familiares. A experiência de ter crianças na escola é mais universal do que a de assistir a um culto no domingo. Além disso, as pessoas sempre serão mais sensíveis à morte de crianças do que de adultos.

Por fim, a terceira hipótese é sobre quem cometeu o crime. No caso do Texas, temos um jovem desequilibrado que comprou legalmente a arma usada no massacre. No caso de Ondo, é provável a ação terrorista de jihadistas. O massacre do Texas serviu para aquecer o debate sobre a posse legal de armas, o que é útil também para o debate político brasileiro, quando temos um presidente abertamente a favor de normas mais flexíveis nesse campo. Já no caso de Ondo, jihadistas lembram a violência islâmica, o que se tornou um tema politicamente incorreto. Além disso, massacre contra católicos não é exatamente uma agenda atraente, em um país cujo catolicismo é acusado, pela esquerda, de acobertar o “genocídio indígena” e pela direita, de acobertar “ideologias socialistas”. Você não lerá artigos sobre como é perigoso ser católico em algumas partes do mundo ou como o terrorismo islâmico tem feito vítimas ao longo do tempo. Mas continuará lendo muitos artigos sobre como a aquisição legal de armas tem efeitos deletérios para a segurança das pessoas.

Enfim, como disse, não sou jornalista. Mas sei contar, e percebi que o número de palavras usadas no massacre do Texas foi imensamente maior que o número de palavras usadas no massacre de Ondo. Algum editor escolheu o número de palavras para cada fato. As hipóteses (não excludentes) para essa escolha estão descritas acima.

Sobra boa vontade, falta matemática

Há muito venho falando que os jornalistas precisariam de uma formação melhor em matemática, até para que possam defender seus pontos com mais propriedade e credibilidade. A falha dessa formação acaba por desmoralizar a própria agenda defendida, às vezes até injustamente.

O caso de hoje é a campanha na imprensa pela volta da obrigatoriedade do uso de máscaras, principalmente nas escolas.

Não vou aqui entrar no mérito da questão, mesmo porque não sou infectologista. Meu ponto é somente relativo ao exemplo usado pelo jornalista para ilustrar a preocupação da presidente da APEOESP, a deputada estadual petista professora Bebel.

Segundo o site do sindicato dos professores da rede estadual de ensino de SP, 182 casos de Covid foram registrados em 16 dias.

Considerando que a rede estadual de SP conta com 3,5 milhões de alunos, fora professores e funcionários, temos uma média de 3 casos/milhão/dia. Perto dos 125 casos/milhão/dia registrados no estado de SP nos últimos 7 dias, segundo dados do ministério da Saúde, essa incidência nas escolas estaduais paulistas é um zero estatístico.

Claro, sempre se poderá dizer que o site da APEOESP não registra todos os dados da doença. Ok, digamos que seja verdade. Então por que raios esses dados foram citados na reportagem??? Eu digo porque: as pessoas, em grande parte, incluindo o jornalista, não fazem essa conta. Elas olham o número absoluto, 187 casos em 11 dias somente nas escolas, e realmente acreditam que se trata de algo assustador. Um jornalista minimamente formado em matemática descartaria usar esse número na reportagem, por depor contra a tese da matéria.

Com reportagens dessa qualidade, o uso obrigatório de máscaras continuará sendo um desejo distante.

Defesa estética da democracia

Ler Eugênio Bucci tem uma utilidade: entrar na mente da esquerda brasileira munido de GPS, e não às escuras e no meio do tiroteio que caracteriza as palavras de ordem e os discursos políticos. Podemos, assim, ter uma ideia mais clara de quais são os valores que levam alguém a votar até em Lula para tirar Bolsonaro do poder.

A tese do artigo de hoje é que o cidadão leitor de jornal (os “detentores do poder”) dão de ombros para os sistemáticos ataques à democracia perpetrados pelo governo Bolsonaro, de modo a evitar uma suposta “volta da corrupção” em um novo governo do PT. Estaria, assim, a imprensa fazendo papel de boba (daí o título do artigo), revelando coisas que os “detentores do poder” já sabem e com que pouco se importam.

Eugênio Bucci nunca me decepciona, e dessa vez não seria diferente. Sua análise peca em três dimensões: factual, moral e conceitual.

Na dimensão factual, a mais saliente e risível, Bucci afirma que não há que se ter medo de uma “volta da corrupção” porque “aquelas condutas criminosas foram julgadas e condenadas e muitos foram parar na cadeia”. Segundo essa narrativa, Lula seria uma espécie de ilusão de ótica, pois continua preso pela propina que recebeu na forma do triplex e da reforma do sítio do seu amigo.

O erro moral do articulista é considerar que a sua própria escala de valores é universal, e que as pessoas, conhecendo essa escala de valores e não a seguindo, não passam de seres cínicos abjetos. O ponto é que “corrupção” e “democracia”, os valores abordados no artigo, são apenas duas das dimensões que importam para escolher um candidato. “Economia” e “valores morais” são outras dimensões possíveis. Há pessoas, por exemplo, que não votam de jeito nenhum em um candidato que defenda que o aborto seja uma questão de “saúde pública”, assim como há pessoas que votam no primeiro candidato que lhes prometa uma cesta básica. Para essas pessoas, “democracia” e “corrupção” passam longe de suas principais preocupações, sem que se tornem, necessariamente, seres moralmente reprováveis.

Mas Eugênio Bucci escreve sobre e para os “detentores do poder”. E, para estes, “democracia” deveria ser um valor inegociável, no que tendo a concordar. Afinal, sem uma democracia plena, Bucci não poderia escrever o que escreveu, nem eu poderia estar escrevendo o que estou escrevendo. O problema está no conceito que cada um tem de democracia, o que vai influenciar o modo como analisa a realidade à sua volta. Este é o terceiro erro do artigo.

O articulista acusa o governo Bolsonaro da maior das corrupções: o aparelhamento do Estado e a sabotagem das instituições democráticas. Ele não nos fornece exemplos concretos, mas podemos imaginar o que vai em sua mente: pastores pedindo propina no MEC, ministério da saúde sabotando a vacinação, ministério do meio-ambiente queimando a Amazônia (esse exemplo ele deu), emendas secretas e por aí vai. Tudo isso pode ser muito grave, não vou aqui entrar no mérito. Meu ponto é outro.

Bucci realmente considera o governo do PT superior ao governo Bolsonaro em matéria de respeito às instituições democráticas. Pode parecer ilógico, mas não surpreendente. Afinal, o próprio Lula afirmou que a Venezuela de Chavez sofria de “excesso de democracia”. E a esquerda, até hoje, baba ovo para o regime liberticida de Cuba.

A questão central é que a anti-democracia de Bolsonaro só foi possível porque, antes, tivemos a anti-democracia do PT. Bolsonaro é cria do PT, um partido que já deveria ter sido extinto em 2005, quando se descobriu que pagou fornecedores com contas offshore. Aqueles que viram o rosto diante da feiúra do governo Bolsonaro são os mesmos que tinham reparos apenas protocolares aos “mal-feitos” do PT. Bolsonaro é somente o verso da tapeçaria da corrupção dos valores democráticos que o PT teceu com tanto esmero ao longo de seus anos no poder.

Eugênio Bucci seria muito mais crível em suas críticas aos “detentores do poder” se reconhecesse que o PT é tão deletério à democracia quanto Bolsonaro. No entanto, Bucci quer apenas virar o tapete novamente para cima, para que a destruição da democracia tenha, ao menos, uma cara elegante. A sua defesa dos valores democráticos é apenas estética.

A importância do jornalismo profissional, apesar de tudo

“Apesar de adotar objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este é o lead da matéria sobre o imbróglio que o governo Biden está enfrentando nessa questão da imigração. Digamos, em uma realidade alternativa, que o lead fosse o seguinte:

“Por causa de seus objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este segundo hipotético lead seria interpretado como propaganda do governo Trump e só poderia ter sido publicado em algum site alt-right. Já o primeiro é, supostamente, neutro. Só que não.

O uso do “apesar” também faz uma ligação entre as “políticas progressistas” e o “número excessivo de imigrantes”: trata-se de uma relação de não causalidade. Ao usar “apesar”, o jornalista está afirmando que as políticas progressistas NÃO SÃO responsáveis pelo número excessivo de imigrantes. A causa da crise humanitária deve ser procurada em outro lugar.

Sairá de mãos abanando os que procurarem, na matéria, possíveis explicações para o aumento do número de imigrantes. Parece mais uma força incontrolável da natureza, uma catástrofe que calhou de cair sobre os ombros do presidente democrata. Um azar, dado que justamente ele adotou “políticas progressistas”.

A matéria seria neutra se deixasse essa bobagem de “políticas progressistas” de lado. Existe uma crise humanitária e o governo Biden não está conseguindo enfrentá-la, ponto. Avaliações sobre “políticas progressistas”, em clara contraposição às “políticas reacionárias” de seu antecessor, só mostram o lado do jornalista. E abrem o flanco para um leitor medianamente inteligente chegar à óbvia conclusão de que são exatamente essas “políticas progressistas” que estão causando a vaga de imigrantes.

Para terminar: em favor do jornalismo profissional, é de se notar que esse tipo de reportagem sequer teria espaço em um veículo puramente militante. O Granma não publica os problemas do sistema cubano, como o fazem o NYT ou o Washington Post em relação aos problemas do governo americano, apesar dos vieses. O fato de se publicar matérias sobre a crise dos imigrantes, apesar da tendência do jornalista, mostra a importância de termos uma imprensa profissional independente em uma democracia. Cabe a nós, leitores conscientes, separar o joio do trigo, evitando jogar o bebê junto com a água suja da banheira.

A necessidade do jornalismo

Tentei destacar um ou outro trecho deste artigo de Carlos Alberto Di Franco, mas não consegui. O artigo inteiro é uma ode ao jornalismo de qualidade, escrito por alguém que vive o jornalismo por dentro. Fica uma conclusão, não escrita pelo autor: se os jornais estão hoje em crise, não é por conta da Internet ou do Google. O problema são os próprios jornalistas, que deixaram de fazer jornalismo.