Circo de pulgas

O tamanho do programa do “carro popular” ficou em R$ 500 milhões para automóveis e R$ 1 bilhão para ônibus e caminhões. O que isso significa?

No caso dos automóveis, considerando um bônus médio de R$ 5 mil, estamos falando de 100 mil carros comprados através do programa. O total de automóveis vendidos em 2022 foi de aproximadamente 2 milhões. Tudo o mais constante, o programa representaria um aumento de 5% nas vendas em relação ao ano passado. No entanto, é preciso separar o que é efeito do programa do que é tendência natural do mercado. Até maio, haviam sido vendidos 750 mil automóveis, 10% a mais do que no mesmo período de 2022. Ou seja, o mercado já estava crescendo 10%. Se chegarmos ao fim do ano com crescimento abaixo de 15% (10% do crescimento natural e 5% do programa) dará para desconfiar da eficácia dos descontos.

A pergunta é: 5% de desconto (R$ 5 mil sobre um preço médio de R$ 100 mil) será suficiente para deslocar a curva de demanda de maneira permanente? Ou, de outra forma, não teremos apenas a antecipação do consumo, assim como tivemos seu atraso à espera do bônus? Um desconto de 5% será o suficiente para atrair o novo comprador, aquele que não estava pensando em trocar de carro any time soon? No meu caso, por exemplo, que estava planejando trocar de carro somente daqui a um ano, a conta é a seguinte: é melhor gastar R$ 95 mil hoje ou deixar esse dinheiro rendendo a, digamos, 10% ao ano, para trocar o carro com R$ 104.500 daqui a um ano? Se o carro aumentar menos de 4,5% em 12 meses, terá sido melhor esperar. De qualquer forma, trata-se de uma antecipação de consumo, não da atração de novos consumidores. Para isso, seria necessário que ocorresse um deslocamento permanente da curva de demanda, fruto, por exemplo, de um aumento de renda da população. Se eu comprar meu carro este ano, estarei subtraindo consumo de 2024, a soma será zero.

Já o programa para ônibus e caminhões tem uma pegada ESG: os beneficiários precisarão sucatear seus veículos usados. Pergunto: quem, com um ônibus ou caminhão em estado de sucateamento, tem dinheiro para comprar um veículo 0km, mesmo com algum desconto? Não conheço esse mercado, mas parece um pouco puxado.

O mais curioso é que quem vai custear esse programa serão os próprios donos de veículos a diesel, que terão o desconto do imposto cancelado antecipadamente. Tira de um bolso e coloca no outro. A não ser, claro, que a Petrobras dê uma mãozinha, e segure o aumento do combustível no peito. Assim, o desconto será pago pela minha, pela sua, pela nossa Petrobras. Enquanto isso, continuam faltando R$ 150 bilhões para que o governo consiga atingir sua meta de resultado primário.

Por fim, esse programa vai em linha com o estilo circo de pulgas desse governo: programas minúsculos anunciados como o maior espetáculo da Terra.

A ilusão do controle

O petróleo está sendo negociado a pouco mais de 70 dólares o barril, menor nível dos últimos 12 meses. Além disso, o dólar está comprando menos de 5 reais, próximo da melhor cotação dos últimos 12 meses. Portanto, mesmo que a Petrobras ainda estivesse seguindo o PPI (preço de paridade de importação) para precificar os combustíveis, haveria espaço para derrubar os preços. Aliás, a empresa segurou esse reajuste para baixo justamente para que seu presidente pudesse ligar o movimento com o anúncio da nova política de preços. Muito “esperto”.

Mas esse post não é sobre precificação. Esse post é sobre governança. O ministro da Fazenda, no mais puro estilo “olha mamãe como sou inteligente”, afirmou que “nós não baixamos (os preços dos combustíveis) tudo o que podíamos, justamente esperando o 1o de julho”. Em 1o de julho entra em vigor a segunda parte da reoneração dos combustíveis.

Haddad, todo serelepe, deixa escapar que “nós” determinamos os preços dos combustíveis. Nós quem? Claro, o acionista majoritário. Com que interesse? Compensar a reoneração e fazer um bonito com a classe média. Ou seja, os preços praticados por uma companhia aberta estão sendo determinados pelo seu acionista majoritário de acordo com suas próprias conveniências e não no melhor interesse da empresa. E não fui eu quem disse, foi o ministro da Fazenda.

Mas o que é mais interessante nisso tudo é a sempre presente ilusão dos petistas de que conseguem pilotar a economia desde os seus gabinetes em Brasília. Note a satisfação do ministro em poder contar como o governo vai coordenar a redução dos preços dos combustíveis nas refinarias com o aumento dos impostos, de modo a evitar solavancos nos preços ao consumidor. Isso não é acidental, trata-se de um modus operandi. A economia, se não tiver sido planificada pelos luminares petistas, restará refém dos gananciosos capitalistas neoliberais, alguns a serviço do imperialismo estadunidense. Já deveríamos saber onde isso vai dar.

A nova política de preços da Petrobrás

Tive oportunidade de ouvir um trecho da entrevista que o presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates, concedeu à CNN hoje à tarde. O tema, como não poderia deixar de ser, era a nova política de preços da empresa.

Antes de comentar, deixe-me lembrar uma coisa básica: o Brasil não é autossuficiente em derivados de petróleo. Portanto, precisa importar para abastecer o mercado doméstico. Se praticar preços dos derivados acima da paridade internacional, estará abrindo espaço para importadores privados ganharem mercado interno, pois estes poderiam praticar preços mais baixos. Se praticar preços dos derivados abaixo da paridade internacional, estará gerando prejuízos para os seus acionistas, pois a diferença será paga com o caixa da empresa. Até aqui, matemática.

Vejamos o que disse Jean Paul Prates. Comecemos pelas coisas positivas. Prates afirmou que países que praticaram preços completamente fora da realidade, como Venezuela e Bolívia, não obtiveram bons resultados. Também disse que, se houver um aumento significativo dos preços no mercado internacional, a Petrobrás não será capaz de segurar a barra sozinha, precisando da ajuda de um Fundo de Estabilização (o que quer que isso signifique). São declarações corretas em si, mas que definem apenas o que a Petrobrás NÃO VAI fazer. A coisa fica complicada quando tentamos entender o que a empresa VAI fazer.

– Presidente, se não é PPI (preço de paridade internacional), o que é?

– Será um modelo dinâmico (programação linear) considerando variáveis geográficas e custos de produção, e também o preço internacional.

O Chat GPT ou o Rolando Lero não responderiam pior. Não se tira nada daí, o que nos permite dizer que não há realmente uma regra. O preço será o que der na telha da diretoria da empresa.

O presidente da Petrobrás bateu várias vezes na tecla de que o PPI era um mito, um preço teórico que nunca foi realmente seguido. Lembra um pouco as críticas aos modelos econômicos, que nunca refletem exatamente a realidade. Claro! A realidade é dinâmica, e nenhum modelo tem a pretensão de replicá-la com exatidão. Mas os modelos nos permitem pensar e racionalizar a realidade, dar um norte. O PPI é isso, os acionistas da Petrobrás sabem mais ou menos o que esperar das finanças da empresa quando olham o preço do petróleo. Agora, não mais. O preço considerará outras variáveis, em um modelo opaco e sem transparência.

A Petrobrás, agora, está alinhada ao governo do PT: não vai ser um desastre completo, mas também não vai para as cabeças. Ficará ali, em uma posição medíocre, uma sombra do que poderia ter sido. Assim como o Brasil.

PS.: Marina Silva não curtiu.

Ainda os preços dos combustíveis

Já tive a oportunidade de escrever um longo artigo sobre esse “fundo de estabilização”. Aqui vai só mais um breve comentário.

O comentário é o seguinte: qualquer truque usado para diminuir os preços dos combustíveis, receba o nome que receber (fundo de estabilização, subsídios, manipulação dos preços por parte da Petrobras) significa uso de recursos públicos que, de outra forma, poderiam estar sendo usados para outras finalidades.

Por exemplo, o projeto de lei prevê o uso de recursos do pré-sal para o fundo de estabilização. Lembra que o pré-sal foi apresentado aos brasileiros como um passaporte para o futuro, com seus recursos sendo usados para levar a nossa educação a outro nível? Pois é, agora vai servir para tornar mais barato o combustível usado pela classe média. Estaremos literalmente queimando o nosso futuro.

Alguns defendem essa inversão de valores com base em um suposto efeito inflacionário do aumento dos preços dos fretes, o que prejudicaria os mais pobres. Os “mais pobres”, como sempre, são usados como escudo para defender os interesses dos “menos pobres”.

Bem, em primeiro lugar, está longe de ser certo que preços menores ou maiores de fretes chegam ao preço final das mercadorias. Há várias empresas no meio, que podem absorver esses custos em seus balanços, a depender da força da demanda por seus produtos. Mas, e principalmente, se for para aliviar a barra dos mais pobres, seria muito mais efetivo gastar esse dinheiro diretamente com eles, subsidiando comida e gás de cozinha, ou aumentando o Bolsa Família, algo muito mais barato do que manter um certo nível de preços para os combustíveis consumidos por todo o país.

Na verdade, já temos um fundo informal de estabilização. No momento em que o governo Bolsonaro decidiu cortar o PIS/COFINS dos combustíveis, o dinheiro não arrecadado, e que poderia estar sendo usado para outros fins, está servindo para manter mais baixos os preços. Ao decidir manter o corte do imposto “por enquanto”, o governo Lula, na prática, decidiu manter o fundo de estabilização informal. Neste caso, os dois governos se dão as mãos no tipo de uso que fazem do orçamento público.

Ilusão de controle

Serão mais dois meses de Isenção de impostos federais para os combustíveis. Assim, o novo presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, terá tempo de assumir e implantar uma “nova política de preços”, eufemismo para canetar para baixo os preços praticados pela empresa em suas refinarias.

Prates, no entanto, é um técnico, muito especialista na área. Ele conta com a ”sazonalidade” do preço do petróleo no mercado internacional, que, como “todos já conhecem”, cai com a aproximação do fim do inverno no hemisfério norte.

Fiquei confuso: afinal, pra que uma “nova política de preços” se o preço do petróleo “vai cair”? A “velha política de preços” é que dependia do preço do petróleo no mercado internacional. Esperava-se que a “nova política” não dependesse desse tipo de ”sazonalidade”.

Aliás, vejamos se o técnico Prates sabe do que está falando. No gráfico abaixo, podemos observar o comportamento do preço do petróleo nos últimos 5 anos. Os círculos vermelhos indicam os 3 primeiros meses de cada ano, o período em que Prates afirma que os preços do petróleo sempre caem, dado o “fim do inverno no hemisfério norte”.

Surpreendentemente, essa sazonalidade “que todos conhecem”, só aconteceu em 2020, por causa da pandemia, não tendo relação com as estações do ano. Dos outros 4 anos, em um os preços andaram de lado e nos outros 3 os preços subiram nesse período, sendo que, em 2022, explodiram por causa da guerra na Ucrânia. Mas, como Lula é um cara de sorte, pode ser que a tal “sazonalidade” dê as caras esse ano, dando uma mãozinha para o governo.

Se Prates estivesse correto, seria muito fácil ficar bilionário. Bastaria, no fim de cada ano, vender contratos futuros de petróleo como se não houvesse amanhã. Depois de passado o inverno no hemisfério norte, recompraríamos os contratos com um lucro fabuloso, e sem risco. Como não pensamos nisso antes?

O que é estupefaciente, mas não surpreendente, é a ilusão de controle que esse governo tem. Eles se acham os ases da pilotagem, levando o carro da economia na ponta dos dedos em uma estrada sinuosa e escorregadia. Notem como a decisão sobre impostos e política de preços são tomadas com precisão de meses, pois “sabemos como os preços do petróleo se comportam”.

É muito óbvio que uma política de preços que depende da necessidade arrecadatória do governo e de uma suposta sazonalidade dos preços do petróleo não confere segurança alguma ao investidor. Mas esse não passa de um rapinador dos recursos nacionais, como afirmou o presidente em seu discurso inaugural. Então, que se limite a continuar fornecendo o seu capital para a construção da grande Petrobras, e não reclame.

Não contem comigo

A vantagem (ou desvantagem) de ser mais experiente (velho não!) é lembrar-se das coisas mais antigas. No final de 2012, o então governo Dilma fez uma mandracaria regulatória (a MP 579) misturada com redução de encargos, que conseguiu baixar o preço da energia elétrica em 20% em 2013. Faço a análise dessa MP no episódio 6 da série A Economia Brasileira na Era PT. Pois bem. Os petistas, a exemplo dos bolsonaristas de hoje, não se cansavam de repetir que o governo do PT havia conseguido reduzir as tarifas, e quem criticava estava só exercitando o seu direito ao choro.

Nada como a perspectiva do tempo. Aquela MP se mostrou um desastre de proporções bíblicas, desarrumando o setor elétrico e cavando um buraco orçamentário que estamos pagando até hoje. E as tarifas de energia elétrica voltaram a subir com força nos anos seguintes.

Fast forward para 2022. Bolsonaristas comemoram a queda dos preços dos combustíveis no melhor estilo petista de 2013. Seria como que a prova definitiva de que, graças a Bolsonaro, a vida do povo está melhorando, e todo e qualquer “mas” não seria mais do que mimimi ou choro de perdedor. O problema, como sempre, é o teste do tempo.

A queda do preço dos combustíveis se deu pelo corte de impostos arrecadados pelos estados. Alguém aí viu algum estado anunciando um ajuste fiscal através do corte de despesas? Não, você não perdeu nenhum anúncio. É que não aconteceu. As despesas continuam exatamente do mesmo tamanho. Não é muito difícil antecipar o que vai acontecer nos próximos anos: depois de acabar a gordura da arrecadação por conta da inflação, os estados vão começar a quebrar um atrás do outro. E adivinha quem vai ter que socorrer? Você, que está economizando algum dinheiro com o combustível mais barato agora, sugiro que guarde o montante economizado para pagar a conta do aumento de impostos e/ou aumento dos juros e/ou aumento da inflação no futuro para pagar a conta.

Alguns petistas, quando escrevi a série sobre a economia brasileira na era PT, se disseram, com uma ponta de ironia, ansiosos para ver outra série sobre o governo Bolsonaro. Expliquei que, em economia, é preciso ter a perspectiva do tempo. Decisões que parecem boas hoje só mostram todo o seu potencial destrutivo ao longo do tempo. Portanto, seria preciso aguardar alguns anos após o fim do governo Bolsonaro para julgar a sua obra.

Nesse sentido, ainda é muito cedo para dizer que o governo Bolsonaro é superior ao governo PT em termos de política econômica. Na verdade, os primeiros 4 anos do governo Lula foram exemplares nesse aspecto. Se alguém escrevesse uma análise da economia brasileira no final do primeiro governo Lula, a balança seria francamente positiva. Claro que o ambiente externo havia ajudado, ao contrário desses 4 primeiros anos do governo Bolsonaro, mas Lula se ajudou também: aprovou uma reforma da previdência dos funcionários públicos, manteve a estrita disciplina fiscal, respeitou a autonomia do BC, aprovou algumas reformas microeconômicas. Nada faria supor o que viria nos anos seguintes.

Quer dizer, nada não. No segundo episódio da minha série de artigos, chamo a atenção para os sinais que já se faziam presentes ainda no 1o mandato de Lula sobre o desastre que estava por vir. Claro, tenho o benefício do hindsight, de já saber o final da história. Na época, pouca gente, inclusive eu, deu a devida importância a esses sinais.

Tendo a experiência como guia, os sinais emitidos pelo governo Bolsonaro são preocupantes. O populismo fiscal virou a norma. Pode não haver o viés ideológico que orientou os passos dos governos PT na economia, mas o efeito final sobre as contas públicas é o mesmo. Nesse sentido, os quatro primeiros anos do governo Lula foram claramente superiores aos quatro primeiros anos do governo Bolsonaro. Claro, sempre se pode dizer que, se Lula tivesse o mesmo azar de Bolsonaro, teria feito a mesma coisa ou ainda pior. Pode até ser verdade, não temos o contrafactual. Mas o ponto é que, se nenhum governante seria capaz de fazer algo diferente do que Bolsonaro fez, dadas as suas condições concretas, então, na prática, tanto faz quem vai ser colocado lá na cadeira do presidente. Essa espécie de “fatalismo econômico”, traduzido na frase “não tinha como fazer algo diferente”, é o aval para o voto nulo, dado que tanto faz mesmo.

Enfim, não contem comigo na comemoração de medidas econômicas populistas.

O estadista e o populista

Entre 1984 e 1985, Margaret Thatcher enfrentou e venceu uma greve de um ano dos trabalhadores das minas de carvão. Na época, as minas eram estatais, e o governo Thatcher anunciou uma reestruturação, com o fechamento de algumas minas, o que detonou a greve. Vale notar que o mesmo sindicato, 10 anos antes, havia derrubado o último governo conservador britânico, liderado por Edward Heath. Thatcher foi firme apesar de todas as consequências da greve, que terminou sem uma única concessão do governo.

O Brasil é um país onde este tipo de evento é inimaginável. Somos o país da contemporização. Em linguagem comum, do “jeitinho”. Nossa independência foi sem sangue, nossos golpes foram de gabinete, nossa guerras civis foram brincadeiras de crianças quando comparadas com as guerras fratricidas de outros países. Na guerra de secessão nos EUA, por exemplo, morreram 600 mil pessoas, o que equivaleria, em população de hoje, a nada menos do que 5 milhões. Foi o preço que Abraham Lincoln topou pagar para manter o país unido.

Thatcher e Lincoln eram estadistas. Enxergavam o efeito de suas ações além do seus mandatos. Atuavam pelo princípio, não pela conveniência imediata. O oposto de estadista é o populista. O populista está de olho no efeito imediato de suas ações. Mede os seus atos pela simpatia que levantam entre os seus. Sob a capa do “bom senso”, não medem as consequências do que fazem em termos de anos ou décadas, mas em termos de dias e semanas. O país, na mão de populistas, piora e nem sabemos exatamente porque, dadas todas as “coisas boas” que os populistas fazem.

Essa reflexão vem a respeito dos ataques à governança da Petrobras. Nossos liberais suspiram quando ouvem o nome de Thatcher, mas acham natural que um dos pilares do capitalismo, o respeito aos acionistas de uma empresa, seja atacado por conveniência eleitoral. A diferença entre o estadista e o populista não poderia ser mais clara neste caso. O estadista sacrificaria o curto prazo pelo princípio. Já o populista sacrifica o principio pelos supostos ganhos de curto prazo.

A mensagem desse ataque à Petrobras é muito clara: mesmo em um governo dito “liberal”, a governança de uma empresa tem pouco valor. Não se poderá, portanto, criticar um governo de esquerda que adote a mesma agenda. Este é o efeito deletério dessa ação, justificar o mesmo modus operandi daqui para frente. Aliás, nesse aspecto, mais respeitável é um governo de esquerda, pois intervirá na Petrobras de acordo com a sua visão de mundo, de acordo com aquilo que avalia ser melhor no longo prazo. Pode estar errado, mas, pelo menos, é coerente.

E o pior de tudo é que, mesmo atacando a governança da empresa, o governo Bolsonaro está longe de ter o efeito eleitoral desejado. É mais provável que colha aquilo que Churchill, outro grande estadista, vaticinou sobre Chamberlain: entre a desonra e a guerra, escolheu a desonra, e terá a guerra. Parafraseando, entre atacar os minoritários e perder a eleição, escolheu atacar os minoritários, e perderá a eleição.

Que falta faz uma Supermercadobras

Segundo o IBGE, nos últimos 12 meses até maio, o diesel subiu 52% e a gasolina, 29%. Portanto, é bastante compreensível que os agentes políticos, liderados por Bolsonaro e Lira, estejam buscando desesperadamente uma forma de controlar esses preços. O único problema é que, uma vez controlados esses preços, vão restar esses aqui (variações em 12 meses):

  • Farinha de trigo: +28%
  • Mandioca: +37%
  • Abobrinha: +82%
  • Pepino: + 78%
  • Tomate: +56%
  • Cebola: +49%
  • Cenoura: +116%
  • Açúcar: +36%
  • Alface: +40%
  • Laranja+ 38%
  • Mamão: +56%
  • Melão: +71%
  • Óleo de soja: +31%
  • Café: +67%

Uma pena que o governo não disponha de uma “Supermecadobras”, em que pudesse exercer seu poder de acionista majoritário para baixar os preços desses produtos. A Venezuela resolveu isso, colocando a PDVSA para distribuir alimentos para o povo. Está aí uma ideia. Se Arthur Lira estivesse realmente preocupado com o povão e não com os mais ricos, estaria pensando nisso.

É bem provável que Bolsonaro, Lira e seus companheiros tenham voltado a destruir a governança da Petro, depois de ter sido reconstruída a duras penas por Temer da destruição causada pelo PT, e não obtenham o seu objetivo de baixar a inflação para os mais pobres.

PS1: alguém pode dizer que, baixando o preço do diesel, o preço dos alimentos também cai, pois o preço do frete se reduz. Essa relação, no entanto, está longe de ser certa. A cadeia de produção é extensa, são muitas empresas envolvidas e que podem abocanhar o lucro que a Petrobras deixará de ter (inclusive os próprios caminhoneiros) e, acima de tudo, os preços dependem, em última instância, do equilíbrio de oferta e demanda, e não dos custos de produção.

PS2: Se, como querem alguns, Bolsonaro estaria apenas jogando para a torcida, colocando-se ao lado do povo contra a Petrobras para tentar se desvencilhar do problema, pode tirar seu cavalinho da chuva. Narrativas fazem sucesso nas bolhas. No final do dia, o povão quer ver o seu problema resolvido, e não historinhas. Quer queira, quer não, Bolsonaro agora é vidraça.

Bolsonaro e PT alinhados

“Grande parte dos minoritários são empresas de fundo de pensão dos Estados Unidos que ganham em média R$ 6 bilhões por mês. […] Eles não pensam no Brasil.”

Jair Bolsonaro, em discurso em culto evangélico, hoje, em Manaus.

“A Petrobras será colocada de novo a serviço do povo brasileiro e não dos grandes acionistas estrangeiros”.

Trecho do programa de governo do PT.

Acho que Bolsonaro, se pensar bem, votará no PT.

Para que serve uma estatal?

Brasília está em transe. Executivo (incluindo os pretendentes ao cargo), Legislativo e Judiciário juntaram-se para atacar a diretoria da Petrobras, após a decisão de mais um aumento de combustíveis.

Já escrevi aqui que a existência de uma empresa estatal somente se justifica por cinco razões:

1) Atuação em área estratégica para o país, em que a atuação privada poderia colocar em risco a segurança nacional;

2) Instrumento de fomento para o desenvolvimento do país;

3) Interesses políticos, em que a atividade da empresa pode render dividendos eleitorais;

4) Interesses corporativos dos funcionários e

5) Instrumento para acobertar esquemas de corrupção.

Desse objetivos, os dois primeiros são explícitos e os três últimos, implícitos. De qualquer forma, observe que, dentre esses cinco objetivos, não se encontra “gerar dividendos para os acionistas”.

Lembro de uma ocasião em que estive na Secretaria da Desestatização para uma reunião. Notei que o descanso de tela dos computadores exibia o artigo 173 da Constituição, que reza o seguinte: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Não está escrito “quando a atividade for lucrativa”.

Acho graça quando defendem que esta ou aquela empresa não precisa ser privatizada “porque dá lucro”. Na ausência de qualquer outro motivo, este é um motivo pelo qual a empresa deveria ser privatizada. Afinal, o governo tem mais o que fazer com nosso dinheiro além de especular na bolsa.

Diante dessa realidade, uma estatal de economia mista não faz o mínimo sentido, pois junta acionistas com objetivos completamente diferentes. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Sabesp e uma lista cada vez menor de empresas de economia mista sofrem de uma esquizofrenia insolúvel: precisam atender os cinco objetivos acima e, além disso, gerar dividendos para os acionistas, objetivos insanavelmente conflitantes.

Por que, então, acionistas minoritários aceitam ser sócios de estatais? Preço. Normalmente essas empresas são negociadas a preços mais baixos em relação aos seus pares privados, preço descontado pelo custo dos cinco objetivos acima. O problema, como sempre, é avaliar corretamente esse desconto. Ontem, as ações de Petrobras chegaram a cair quase 10%, em um sinal de que os acionistas minoritários reavaliaram o peso que o primeiro objetivo acima tem na matriz de decisão da empresa.

Como todo estudante do 1o ano de administração sabe, quanto mais valorizadas as ações de uma empresa, mais barato é o seu custo de capital. Em outras palavras, a empresa precisa emitir menos ações para obter o mesmo capital, e consegue se alavancar mais com dívidas por um custo menor. Para uma estatal, no entanto, esta não é uma preocupação, dado que seu acionista majoritário, em tese, sempre pode capitalizar a empresa a custo zero, via captação de impostos.

Claro que essa é uma possibilidade apenas em tese. Sabemos que a capacidade financeira do Estado é limitada por condicionalidades políticas. Todos gostam de ter uma empresa que subsidie combustíveis, mas ninguém gosta de pensar que pode ter seus impostos aumentados para bancar essa política. O resultado é que o custo para bancar o objetivo 1 acima torna-se igual ao de emitir dívida, que é bem maior que zero.

Alguns dirão que o governo não precisa capitalizar a empresa, afinal a empresa dá lucro, trata-se apenas de moderar o lucro em uma situação excepcional. Esse raciocínio tem dois problemas. O primeiro é a definição de “situação excepcional”. Uma vez aberta a porta, fica sempre a possibilidade de alguém achar que estamos em uma “situação excepcional”. Os acionistas minoritários sabem disso. Aliás, a única “situação excepcional” no momento é a coincidência de um preço alto de petróleo com um ano eleitoral.

O segundo e principal problema tem a ver com o natural ciclo das commodities. Os preços das commodities têm exatamente esse tipo de comportamento: sobem e caem ao sabor dos ciclos econômicos e dos choques de oferta. O que está acontecendo hoje não difere de tantos outros momentos “excepcionais” da história. Se tem uma coisa da qual podemos estar certos é de que os preços das commodities atravessarão “situações excepcionais”, tanto na alta quanto na baixa. As empresas que exploram commodities precisam aproveitar os pontos altos do ciclo para juntar reservas e para pagar dividendos excepcionais aos seus acionistas, de modo a compensar os períodos de baixa, que sempre ocorrem. Caso haja um teto para o lucro, a empresa e os acionistas terão somente o ônus do ciclo negativo, deixando de ter o bônus do ciclo positivo.

Um exemplo caricato mas real dos efeitos desse tipo de política é a PDVSA, petrolífera do estado venezuelano. Ao ser usada exclusivamente para atingir os cinco objetivos listados acima, e sem que o governo venezuelano tivesse condições financeiras para capitalizar a empresa, temos hoje a triste situação de as maiores reservas petrolíferas do mundo permanecerem deitadas em berço esplêndido por falta de capacidade de investimento em exploração.

É verdade que o preço alto dos combustíveis é um problema no mundo inteiro. Mas, para amenizar o problema, vemos países cortando impostos sobre combustíveis ou subsidiando-os com verbas orçamentárias, e não usando o balanço de uma estatal, ainda mais com sócios privados!

Voltando ao artigo 173 da Constituição e aos cinco motivos para a existência de uma estatal listados acima, entre os quais não se inclui “dar lucro”. A meu ver, a existência de uma estatal somente se justifica pelo fato de dar prejuízo. Esse prejuízo é a tradução financeira do atendimento de objetivos que, por construção, não são lucrativos para a iniciativa privada. Neste caso, o orçamento da estatal é usado como uma espécie de extensão do orçamento público para a implementação de políticas para o bem comum. Eu particularmente não gosto desse arranjo, pois tende a esconder o real custo das políticas públicas, mas, pelo menos, o uso da estatal está de acordo com os objetivos que justificam sua existência.