Desmontando o desmonte da farsa

Desculpem-me, esse post vai ser longo. Quem quer acreditar no primeiro gajo que aparece falando bobagens, não precisa ler. Quem quer alguma informação com embasamento, peço um pouco de sua paciência.

Está rodando pelas redes sociais um vídeo “definitivo”, que “destrói a farsa do Coronavírus”. Trata-se de um PhD português, André Dias, PhD pela Universidade do Ártico da Noruega. Diz a apresentação no YouTube que se trata de uma das mais prestigiadas universidades do mundo na área de pesquisa epidemiológica. Visitando a página da tal universidade, encontram-se muitos campos de pesquisa em conservação ambiental, mas nada em epidemiologia.

Na verdade, no LinkedIn do PhD, e depois no próprio vídeo, a única experiência em epidemiologia que aparece é um período como pesquisador visitante na Universidade Técnica de Munique, no departamento de estatísticas médicas e epidemiologia. Mas isto foi entre 2008 e 2012. Depois disso, parece que derivou para outros campos.

Sua tese de doutoramento na Noruega (2013) foi a respeito da associação de doenças pulmonares com atividades físicas. Suas áreas de interesse são Inteligência Artificial e Sensores. Seu perfil no LinkedIn diz que ele trabalha na 3M da Inglaterra com reconhecimento de fala por algoritmos.

Mas, não costumo descartar argumentos descartando a pessoa que os expõe. Vamos analisar as ideias apresentados no vídeo.

Primeiro, o PhD português diz que o número de mortes na Europa está em níveis absolutamente normais. Mostra, para isso, o site euromomo.eu, que faz o tracking de mortes no continente. Não é on line como ele diz, tem uma certa defasagem, mas serve como estatística. O que ele mostra é o número TOTAL de mortes. Mas, visitando o site, vemos que a métrica que importa é o z-score, que é a distância para a média (esse gráfico ele não mostra). E o z-score está o dobro para esta época do ano. Ele até diz que se trata de uma gripe tardia, o que fez o pico atrasar um pouco, fazendo o número de casos ficar muito maior para a época do ano. Há dois problemas com esse argumento: 1) o que importa é o z-score, este indicador é o que mostra que há algo estranho, fora do padrão e, principalmente 2) o PhD compara períodos sem qualquer isolamento social com um período (o atual) com estritas regras de isolamento. E, mesmo assim, o número absoluto de mortes está semelhante. Ora, se com isolamento social, o número absoluto de mortes está no mesmo nível de períodos normais sem isolamento, então obviamente tem alguma coisa muito errada acontecendo.

Depois, o PhD mostra a curva de evolução de casos ativos na China, mostrando que se trata de uma curva normal. Ou seja, as medidas de isolamento não mudaram o formato da curva, que sempre é normal em casos de epidemia. Ora, há aqui uma falácia: a curva é de casos ATIVOS, ou seja, depois de infectados. Claro, as medidas de isolamento não vão mudar o curso da doença DEPOIS DA INFECÇÃO. O que o isolamento faz é DIMINUIR O NÚMERO DE INFECTADOS. Ou seja, a curva de infectados sempre será normal. O que muda é o TAMANHO DA CURVA. Se com o isolamento o pico da curva é de X infectados, sem isolamento será um certo múltiplo de X. Mas será sempre uma curva normal. O formato da curva não diz nada sobre a eficácia do isolamento. Este ponto é muito importante, porque o PhD vai se apegar a ele para deslegitimar o discurso de que o isolamento achatou a curva. Ele pede “mostre-me a curva, então”. E a curva é uma curva normal. Todas as curvas são normais, sempre. Não prova nada, nem de um lado, nem de outro. A única “prova” seria o contrafactual no mesmo país, com isolamento e sem isolamento, o que obviamente é impossível.

Depois, o PhD diz que “a OMS entregou ao governo chinês a informação de que o índice de letalidade é de 13%”, assim, sem mais. E diz que o governo chinês sobre reagiu a este número. Ora, o PhD quer me fazer crer que os médicos chineses não sabem metodologia estatística, que compraram a valor de face essa informação (se foi essa informação mesmo que foi relatada ao governo chinês, o PhD não cita a fonte da informação) e as repassaram às autoridades chinesas assim, sem mais. Ou seja, somente André Dias sabe metodologia estatística, ninguém na China (país em primeiro lugar no PISA de matemática, diga-se de passagem) sabe. É sério isso?

Ele afirma que não há que ter pânico, porque a letalidade do vírus está decrescendo a cada nova revisão das estatísticas. Primeiro que isso não é verdade. Em todos os países do mundo, o índice de letalidade cresce e se estabiliza em um determinado patamar (veja o gráfico abaixo). Segundo, porque, mesmo que fosse verdade, o que importa é a capacidade hospitalar, não o índice de letalidade. Se a letalidade for baixa mas a capacidade de contaminação for muito alta, o sistema hospitalar pode não dar conta, aumentando a letalidade. Explico isso no meu post anterior.

O PhD fala que Boris Johnson tomou a decisão de fechar o Reino Unido por medo, por pressão dos eleitores, e contra o conselho dos epidemiologistas. Ora, foi justamente o contrário! Ele revogou sua decisão de não fechar quando recebeu estudo assustador do Imperial College, essa sim, uma das mais prestigiosas universidades do planeta quando o assunto é epidemiologia. De onde o PhD tirou que “os epidemiologistas aconselharam a não fechar”?

Ele ataca a fama do Imperial College. Bem, o Imperial College aparece em 13º lugar no ranking de universidades de saúde pública, enquanto a Universidade de Munique aparece na faixa de 100-150. A própria USP aparece entre 76-100 no mesmo ranking! Ou seja, a USP ranqueia melhor que a universidade onde o PhD adquiriu sua experiência. Ele cita um suposto “erro” do Imperial College na epidemia da vaca louca, em 2001. Não cita a fonte de sua informação, a não ser uma manchete de um artigo de um blogueiro. Talvez ele esteja incorrendo aqui no mesmo erro básico que está acontecendo agora: como houve sacrifício massivo de bovinos e ovelhas no Reino Unido, a epidemia teve pouco efeito final. Claro, o próprio sacrifício foi o responsável pelo efeito limitado da doença. Dizer que a doença “não foi tudo isso” para demonizar o Imperial College é ignorar o efeito do que foi feito para detê-la. Parece óbvio.

Depois, faz uma leitura política da ação de Boris Johnson, à luz de uma carta aberta de 295 cientistas urgindo o primeiro-ministro inglês à ação. Diz o PhD em política, quer dizer, em epidemiologia, quer dizer, em inteligência artificial, que Johnson agiu para preservar seu mandato. Seria a primeira vez na história que vemos um mandatário destruir a economia para preservar seu mandato. Pena que Bolsonaro ainda não sacou essa estratégia sensacional.

Quanto à fala do Bill Gates, o PhD espertamente coloca somente a frase que interessa à sua tese: “O modelo do Imperial não é o que se verificou na China (…) felizmente parece que os parâmetros usados são demasiadamente negativos”. Bill Gates fala mais coisas. Por exemplo: “Uma grande coisa é aderir à abordagem “shut down” em sua comunidade, de modo que as taxas de infecção caiam dramaticamente e nos permitam voltar ao normal o quanto antes”. Com relação ao modelo do Imperial, além do que foi dito acima, ele diz também: “Eles (a China) fizeram o seu “shut down” e foram capazes de reduzir o número de casos. Eles estão testando amplamente de modo que eles são capazes de ver ressurgimentos da doença imediatamente e até agora não têm sido muitos. Eles evitaram um alastramento maior”. Bem, obviamente, o modelo do Imperial previu números gigantescos sem as medidas tomadas. E o contexto da resposta de Gates pode ser melhor entendido se virmos a resposta a uma questão anterior: “Precisamos ficar calmos, mesmo que esta seja uma situação sem precedentes”. Ou seja, a ideia de Gates é acalmar as pessoas, dizendo que, se fizermos o que tem que ser feito (distanciamento social), as previsões catastróficas não se confirmarão. Por fim, sobre este assunto, a China acabou de rever o número de óbitos para cima. Quantas mais revisões haverá? Quão confiáveis são os números da China para validar ou não qualquer modelo?

Depois, sobre os serviços funerários que “congelam”. Realmente não entendi. Por que os serviços funerários em Bergamo e na Espanha estariam mais lentos? Não dá pra entender o raciocínio do PhD. Interessante que, ao contrário do que ele faz logo no início, desta vez ele não mostra nenhum gráfico de mortes na Itália ou na Espanha para suportar a sua tese. Ele só fala. Então eu mostro pra vocês, tirado do mesmo site euromomo.eu. Na Itália, temos um z-score de cerca de 15, enquanto na Espanha o z-score alcança cerca de 20. Isso significa que o número de mortes alcançou, respectivamente, 15 e 20 desvios-padrão acima da média. Uma enormidade. Dizer que não houve mais mortes é simplesmente uma mentira.

Em seguida, o exemplo da Áustria para reforçar o tal argumento da “curva normal”. Desta vez, no entanto, ele pega o gráfico de NOVOS CASOS, ao invés de CASOS ATIVOS, como foi no exemplo da China. Mas o problema é o mesmo: o isolamento não vai mudar o formato da curva, vai apenas achatá-la. Continuará sendo uma curva normal. Aliás, ele prediz que “a Áustria em 3 dias estará em ‘zero estatístico’, com 10 novos casos”. Bem, esse vídeo é de 16 de abril, não sei a data em que foi gravado. Ontem, 18 de abril, a Áustria registrou 76 casos. Mas não vou pegar no pé, isso é erro estatístico. O ponto dele é que diminuiu bem, o que é verdade. Nosso ponto de discórdia é o motivo para ter diminuído.

O próximo ponto é o efeito dos raios UV, trazidos pela primavera, para diminuir as mortes pelo covid-19. O ponto é que essa diminuição teria ocorrido de qualquer maneira, porque a chegada da primavera faria o serviço a partir da semana 19. Pena que os dados não correspondam à realidade. Se isso fosse verdade, deveríamos ver uma queda generalizada nos casos nas semanas 12/13, conforme ele mesmo diz. Semanas 12/13 correspondem à segunda quinzena de março. Isso aconteceu, de fato, na Itália, em que o pico de casos ocorreu na 3ª semana de março. Mas em outros países o pico aconteceu depois: por exemplo, nos EUA, o pico ocorreu agora na 2ª quinzena de abril, enquanto em outros países da Europa, como Bélgica e Reino Unido, ocorreu na 1ª quinzena de abril. De qualquer forma, mesmo admitindo a hipótese, esperar os raios UV para dar cabo do vírus poderia significar um colapso do sistema de saúde muito antes do raio redentor chegar. Se a hipótese for verdadeira, e efetivamente se observar uma queda no número de casos/mortos, Europa/EUA poderão sair antes da quarentena, o que é uma boa notícia. Pena que talvez os raios UV não sejam páreo para o Covid: o Equador está aí para demonstrar quem manda em quem.

Depois ele faz uma preleção sobre “imunização de rebanho”. Ele está certo, mas não sei de onde ele tirou que “ouvimos ad nauseam que 80% da população deve ter sido infectada para atingir imunidade de rebanho”. Eu não ouvi isso. Ouvi 50%-60%. Ele diz 30%, o que me parece pouco. Mas eu não sou epidemiologista, nem ele, como ele faz questão de afirmar. Portanto ambos estaremos chutando. Trata-se do velho truque de atribuir uma afirmação absurda ao adversário, que nunca foi dita, e refutá-la para “ganhar” a discussão.

Ele critica a OMS por usar menções em redes sociais para fazer o monitoramento de epidemias. Fico com o pé atrás com afirmações jogadas no ar, assim. Onde está a fonte? Como posso consultar a metodologia usada pela OMS para o monitoramento de epidemias? Poderia até fazer uma pesquisa, mas ajudaria muito se o PhD disponibilizasse a fonte de sua informação. Senão, fica parecendo essas verdades “que todo mundo sabe”. Além disso, a última conferência sobre o tema da qual ele participou foi em 2014. Não me parece que esteja muito atualizado.

Com relação às escolas, o documento da OMS que ele cita é este aqui. No próprio vídeo, se você souber inglês e prestar atenção no que está escrito, está claro ali: “mantenha suas crianças na escola, A MENOS QUE UMA AUTORIDADE PÚBLICA DE SAÚDE […] TENHA EMITIDO UMA ORDEM QUE TENHA AFETADO A ESCOLA DO SEU FILHO. Bem, no caso, os governos fecharam as escolas! A OMS não disse: mantenham as escolas abertas. A OMS disse: mantenham seus filhos na escola se estas estiverem abertas. Acho que dá para entender a diferença. Ele insiste o tempo inteiro que a OMS recomenda que as escolas fiquem abertas, o que não é verdade.

O PhD defende a manutenção das escolas abertas porque as crianças “não ficam doentes” e depois vão “aspirar” os vírus por aí. Bem, talvez ele não tenha filhos pequenos. Quero ver pai ou mãe de crianças que não ficam doentes… Mas ok, as crianças vão à escola, passam duas semanas sem visitar os avós, retiram-se os funcionários mais velhos da escola durante duas semanas e… voi lá!, tudo volta ao normal depois. Como se todas as crianças do mundo pegassem o vírus ao mesmo tempo, e se pudesse resumir tudo a “duas semanas de isolamento”. Realmente me escapa a genialidade do raciocínio.

Todas as escolas no mundo foram fechadas, inclusive na Suécia! Por quê? Simples. Sabe-se que o grau de letalidade é mais alto para os mais idosos, mas não se sabe o grau de “infecciosidade” por faixa etária. Ou seja, não sabemos se crianças ou jovens pegam mais ou menos o vírus. O número de infectados mais velhos, hoje, é maior, mas simplesmente porque se testa mais os mais velhos, que são os que chegam aos hospitais. Não sabemos quantos infectados há por aí que não estão testados. A Islândia vem conduzindo um experimento espetacular de testagem ampla da população. Vou analisar este experimento em um próximo post, e que pode ser uma boa notícia para as escolas.

Ele cita um pesquisador alemão (interessante que só há citação de pessoas que concordam com sua tese), que disse que vai haver mais mortes por suicídios do que pelo vírus. Bem, nem fui atrás de saber quem é esse tal “pesquisador alemão”. Como você monta um modelo para chegar a essa conclusão? Sem comentários.

Ele termina o vídeo com um raciocínio que coroa de maneira brilhante todo o monte de bobagens acumuladas até aqui. Parte da informação de que, na Alemanha, descobriu-se que 14% da população está infectada (ele mesmo diz que os testes não foram aleatórios, então não dá para fazer extrapolação nenhuma, mas vamos com esse número aí). Então, ele diz que o número de infectados já era imenso quando da decretação da quarentena, e que, portanto, a quarentena não serviu para nada. Ou pior, a quarentena aumentou o número de infectados, pois com 10%-15% de infectados, foram introduzidos um infectado em cada família, em cada casa, e ficaram trancados em casa. Oi? Em primeiro lugar, ou a decretação da quarentena “não serviu para nada” ou “aumentou em muito a contaminação”. As duas coisas ao mesmo tempo não dá. Em segundo lugar, se a quarentena aumentou em muito a contaminação, e 14% é supostamente o número de infectados HOJE, então o número de infectados ANTES da quarentena era muito menor. Portanto, não foram introduzidos um infectado em cada casa, em cada família. Ou seja, há uma contradição em termos aqui. Finalmente, em terceiro lugar, as pessoas deixariam de morar em suas casas se não houvesse quarentena? Provavelmente não. Então, os infectados iriam infectar suas famílias com quarentena ou não, certo? Não foi a quarentena que fez infectar as famílias, essas seriam infectadas anyway. O que a quarentena fez foi diminuir a contaminação FORA das casas, não dentro. Não parece ser um raciocínio muito sofisticado, acho que dá para entender.

Desculpem-me novamente pelo longo texto. Mas é que esse vídeo do PhD português está se espalhando como um vírus pela internet, e não podia ficar sem resposta.

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