Os 4 i’s do crescimento econômico

Neste segundo post sobre crescimento econômico, uma vez já feito o ponto sobre a importância do tema no primeiro post, vamos explorar os fatores que levam a um maior crescimento econômico e como o Brasil se encontra em cada um desses fatores. Para tanto, vou lançar mão de um artigo muito interessante e didático do INSEAD: The 4 I’s of Economic Growth, de Antonio Fatás e Ilian Mihov.

Os 4 i’s do crescimento econômico são:

  • Inovação
  • Condições Iniciais
  • Investimento
  • Instituições

Vejamos cada um desses pontos a seguir.

Inovação

Os autores começam por constatar que inovação é o fator que, antes de todos os outros, determina o crescimento do bem-estar econômico no longo prazo. Afinal, é a inovação que permite produzir mais com menos. Crescimento econômico é função da criação de valor. É somente quando se produz bens e serviços que agregam valor para as pessoas que ocorre o milagre do crescimento econômico. O PIB – Produto Interno Bruto – é a soma de todo o valor agregado à economia, transformado em unidades monetárias (dinheiro). E a inovação é o que permite criar mais valor com menos recursos, que é a própria definição de crescimento econômico.

Quando a roda foi inventada, o ser humano conseguiu deslocar coisas com muito menos esforço. A roda foi uma inovação que permitiu agregar valor (o deslocamento) com muito menos recursos.

A inovação não necessariamente envolve tecnologia de ponta. Chamamos de inovação qualquer rearranjo da produção que permita produzir mais com menos. A inovação é o que permite aumentar a produtividade dos fatores econômicos. Adam Smith dá o exemplo de uma fábrica de agulhas em comparação com a produção manual do mesmo produto. O mesmo número de homens produz milhares de vezes mais agulhas em uma fábrica do que se cada um fabricasse as agulhas individualmente. No processo produtivo estão envolvidas inovações tecnológicas do maquinário e da organização da produção.

Os autores do artigo assumem que os Estados Unidos representam a “fronteira tecnológica”, ou seja, o país com maior índice de inovação. Esta premissa parte da constatação de que a produtividade norte-americana tem sido a maior do mundo nos últimos 100 anos pelo menos. Portanto, os Estados Unidos, teoricamente, lideram a inovação no mundo. Parece ser uma ideia intuitiva. Por que isso é importante? Porque veremos, no próximo item, que os países mais distantes da fronteira tecnológica tendem a crescer mais.

Condições Iniciais

Como dissemos, países mais pobres estão mais distantes da fronteira tecnológica. Portanto, existem mais oportunidades de melhoria de processos de produção, o que, em tese, leva a um crescimento maior.

Assim, países mais pobres tendem a crescer a taxas maiores do que países mais ricos, simplesmente porque podem se beneficiar de tecnologias já desenvolvidas. Em tese, a fronteira marca o máximo de riqueza que pode ser criada com a tecnologia existente. Se toda essa tecnologia fosse aplicada imediatamente, o PIB/capita saltaria para a fronteira. Obviamente, não é assim tão fácil. Conforme veremos nos dois itens a seguir, não basta estar distante da fronteira. É preciso caminhar até lá. E, para isso, é preciso investir.

Investimentos

O investimento de hoje é a produção de amanhã. É o investimento que incorpora a tecnologia aos processos de produção.

Mas, o que é investimento? Investimento é a poupança em movimento. Para poder investir, um país precisa antes ter poupado. Ou precisa atrair poupança de outros países, caso não tenha poupança interna suficiente. A poupança é o consumo adiado. As empresas, ao invés de distribuírem dividendos, poupam para investir em suas operações. As pessoas, ao invés de consumir, guardam dinheiro. Este dinheiro é usado para financiar o investimento das empresas.

Acho graça quando ouço o raciocínio simplista “é preciso colocar dinheiro na mão do povo, para o povo ir até o mercado e comprar coisas e, assim, girar a roda da economia”. Sim, isso é verdade, desde que antes se tenha investido para produzir os bens a serem consumidos. O que gera crescimento econômico é o investimento, que somente existe se as pessoas poupam.

É preciso mobilizar esses capitais, tanto domésticos quanto externos, para serem investidos. E como se faz isso? Tendo instituições que facilitem o investimento.

Instituições

Ninguém, em sã consciência, investe para perder dinheiro. É preciso remunerar o capital proporcionalmente ao seu risco. E o risco é inversamente proporcional à chance de receber o dinheiro de volta.

É aí que entram as instituições. Quanto mais difícil for fazer negócios, quanto mais arriscado for um ambiente político ou jurídico, maior será a taxa de retorno exigida pelo capital. É certo que, em uma economia situada longe da fronteira tecnológica, o retorno proporcionado pelos investimentos aceita o desaforo de instituições fracas: afinal, a taxa de retorno exigida pode ser alta, pois o retorno do investimento é proporcional à distância da fronteira tecnológica. Mas, é óbvio também que, quanto melhores forem as instituições, menor a taxa de retorno exigida e, portanto, mais investimentos são viabilizados.

E o que são essas tais de “instituições”? São basicamente arranjos que aumentam a segurança e a eficiência dos investimentos. Dito de outra forma, diminuem o risco para os investimentos. Insegurança jurídica, corrupção, burocracia, são todos fatores que aumentam o risco para o investidor, e são embutidos na taxa de retorno exigida para os investimentos.

O Banco Mundial elabora, desde 2004, um ranking chamado “Doing Business”. Neste ranking, são medidos os desempenhos de 10 elementos que facilitam os negócios em um país. São eles: 1) Começando um negócio, 2) Conseguindo licenças de construção, 3) Obtendo eletricidade, 4) Registrando propriedade, 5) Obtendo crédito, 6) Protegendo acionistas minoritários, 7) Pagando impostos, 8) Comercializando no exterior, 9) Fazendo valer contratos e 10) Resolvendo inadimplência.

Cada um desses elementos torna mais ou menos difícil realizar negócios no país, e são uma boa medida das instituições necessárias para que o investimento tenha o retorno esperado.

O Brasil está preparado para crescer?

Vamos usar a ideia dos 4 I’s para entender se o Brasil tem condições de retomar um nível de crescimento econômico satisfatório. Comecemos pela Inovação. O Brasil produz ou incorpora tecnologia que lhe permita se aproximar da fronteira tecnológica?

A julgar pelo imposto de importação que incide sobre tecnologia, a resposta é não. Ainda somos um país muito fechado, onde os produtores nacionais podem oferecer “carroças” (no dizer do ex-presidente Collor) sem perder mercado. Claro, como diz o ministro Guedes, não se pode exigir que os empresários locais compitam com os chineses tendo as bolas de ferro dos impostos e da burocracia nos pés. Mas, ao invés de tirar as bolas de ferro (veremos o que são essas bolas de ferro mais à frente), colocamos impostos de importação. O remendo que piora o soneto.

Uma forma, dentre várias outras, de medir a criação e a absorção de tecnologia, é através do número de patentes requeridas em um determinado país. No gráfico a seguir, mostramos a evolução do número de patentes requeridas no Brasil e na Coreia, um país que, como sabemos, se aproximou da fronteira tecnológica nos últimos 40 anos.

Observe que, em 1980, havia menos patentes requeridas na Coreia do que no Brasil. Em 2018, último ano da série, a Coreia tem 8,5 vezes mais patentes requeridas do que o Brasil por ano. Não é preciso dizer mais nada.

O segundo I é Condições Iniciais. As condições iniciais são favoráveis ao Brasil. Estamos longe da fronteira tecnológica, o que nos dá, teoricamente, grande espaço para o crescimento acelerado. Mas este espaço, como vimos, é condição necessária, mas não suficiente para o crescimento.

Nos gráficos abaixo, podemos observar o comportamento do PIB/capita de 3 países escolhidos em relação à fronteira tecnológica, os Estados Unidos. São três trajetórias diferentes. A Coreia tem uma trajetória de convergência. Ou seja, seu PIB/capita vai se aproximando do dos EUA ao longo do tempo. A Venezuela tem uma trajetória de divergência, seu PIB/capita vai se afastando da fronteira tecnológica ao longo do tempo. Já o Brasil tem uma trajetória, em geral, paralela, com exceção da década de 80, em que a trajetória foi divergente. Ou seja, ao longo do tempo, o Brasil não consegue se aproximar do PIB/capita dos EUA, apesar de suas Condições Iniciais serem favoráveis. Vamos ver por que isso acontece nos dois próximos itens.

O próximo I é o de Investimento. O gráfico abaixo mostra o investimento dos Estados Unidos, Coreia e Brasil em percentual do PIB nos últimos 40 anos.

Podemos observar que a Coreia tem mantido investimentos da ordem de 30% a 35% do PIB ao longo deste tempo, tendo chegado a quase 40% no início da década de 90. Os Estados Unidos, por outro lado, investem algo como 20% a 25% do PIB, sendo raros os anos em que esse percentual fica abaixo de 20%. No Brasil é o inverso: são raros os anos em que os investimentos superam 20% do PIB. Isso aconteceu no início da década passada com os fortes aportes no BNDES, mas este ritmo se provou de fôlego curto. Hoje investimos cerca de 15% do PIB, metade do investimento da Coreia e abaixo até dos Estados Unidos, que, não custa lembrar, já são ricos.

É óbvio que não iremos a lugar algum com esse nível de investimento. Para aumentar o volume de investimentos é preciso: 1) aumentar a poupança interna e 2) atrair a poupança externa. O governo brasileiro, hoje, despoupa cerca de 3% do PIB, que é o tamanho de nosso déficit primário. E, com isso, atrai a parca poupança interna para financiar a sua dívida crescente. Quanto à poupança externa, somente é atraída com um câmbio muito depreciado, para compensar o risco do investimento.

Além do baixo nível de poupança, os investimentos no Brasil sofrem de outro mal: o baixo nível das instituições, o quarto I do crescimento econômico. No ranking de 2020 do Doing Business, o país aparece em 124º lugar entre 190 países. Na tabela a seguir, temos uma comparação do Brasil com a Coréia (5º lugar no mesmo ranking), em alguns itens de avaliação:

É possível perceber que, no geral, o empresário brasileiro precisa de mais tempo e passar por mais procedimentos para que as coisas sejam feitas do que o empresário coreano. Podemos nos questionar se estamos melhorando com o tempo, ou se estamos estagnados. O gráfico a seguir dá a resposta:

Observe como houve sim uma melhora: o Brasil saiu da faixa de 30% do ranking para algo entre 35% e 40%. Mas, convenhamos, para um país que precisa desesperadamente atrair investimentos, estar abaixo da média não é lá muito animador. E a Coreia, que já tinha índice bastante positivo, melhorou ainda mais, mostrando que sempre é possível melhorar.

Esta é apenas uma pequena amostra do que chamamos de Instituições, que incluem também segurança jurídica, estabilidade política e baixa corrupção. E por falar em corrupção, vamos ver como o Brasil se insere no contexto global neste quesito.

índice de Percepção de Corrupção (CPI na sigla em inglês), calculado pela Transparência Internacional, mede a percepção de corrupção por parte de empresários em relação ao setor público de cada país. A Transparência Internacional coleta dados do Banco Mundial, do Fórum Econômico Mundial (aquele que se encontra anualmente em Davos), de consultorias globais de risco e de think tanks globais.

Segundo a última edição do CPI, de 2019, o Brasil tinha índice de 35 (o índice vai de 0 a 100), ranqueando em 106º lugar dentre 198 países. A Coreia, por sua vez, tinha um índice de 59, ranqueando em 39º lugar. Vejamos, no gráfico a seguir, a evolução deste índice desde 2003:

Note que Brasil e Coreia tinham praticamente o mesmo índice em 2003. O que fizeram os coreanos para melhorar a percepção a partir daí em relação ao Brasil?

Note também a deterioração da percepção de corrupção no Brasil a partir de 2015. Lembre-se de que se trata de “percepção” e não de corrupção concreta e provada. Esta percepção, obviamente, é fruto de casos de corrupção que vêm à tona. Mas o interessante é que, mesmo com uma mega-operação anti-corrupção como a Lava-Jato, a percepção piorou, não melhorou. Uma hipótese é de que a Lava-Jato tenho sido vista como uma exceção, não como a regra. Os usos e costumes do país são percebidos como permissíveis à corrupção. De qualquer forma, há um longo caminho pela frente de recuperação deste importante quesito de competitividade.

Concluindo

O crescimento econômico não é um voo de galinha, obtido através de incentivos míopes ao consumo. O crescimento econômico é semelhante ao voo de uma águia, que atinge grandes altitudes em um voo estável e majestoso. Para isso, são necessárias asas com grande envergadura, só obtidas com Inovação, Investimentos e Instituições, que permitam aumentar o crescimento potencial da economia.

Alguns poderão argumentar que o que funciona mesmo são os incentivos de um governo com um grande plano de desenvolvimento. No entanto, coincidência ou não, todos os países ricos possuem, em maior ou menor grau, as características definidas neste texto. E, por outro lado, usamos e abusamos, aqui no Brasil, de grandes planos de desenvolvimento ao longo das últimas décadas, que acabaram por resultar em mais dívida e em menos crescimento. Não estaria na hora de fazer o feijão com arroz e deixar de lado as grandes pirotecnias?

O que precisamos são de pequenas mudanças institucionais na direção correta, acumuladas ao longo dos anos. É preciso trabalhar com perseverança, com visão de longo prazo. Isto não combina com os populismos das soluções fáceis e erradas. Saberemos, como sociedade, caminhar na direção correta com a velocidade adequada e, assim, vencer a estagnação das últimas quatro décadas?

A onda acabou

Pra não variar, artigo perfeito de William Waack. Em resumo, o fenômeno de 2018 foi único, voltamos à normalidade da política tradicional, onde quem comanda são os políticos profissionais e suas máquinas partidárias.

Não que Bolsonaro não seja um político profissional. Ninguém passa três décadas no Congresso sem sê-lo. Mas o capitão nunca teve apreço pela vida partidária, sempre agiu como um lobo solitário. Basta dar uma olhada na lista de agremiações às quais pertenceu durante sua vida parlamentar. Para concorrer à presidência, alugou uma sigla, para dela sair na primeira oportunidade.

Você já ouviu falar na Unidade Popular? Trata-se de (mais) um partido de esquerda radical, aprovado pelo TSE em 10/12/2019. Pois bem, se um troço desses consegue 500 mil assinaturas para ser aprovado, como um fenômeno popular como Jair Bolsonaro não consegue as assinaturas para fundar o Aliança Pelo Brasil? Só tem uma explicação: ele não quer a aporrinhação de ter um partido. Ele é um lobo solitário. Mesmo que, eventualmente, o Aliança pelo Brasil seja criado, provavelmente ele vai arrumar uma treta para sair do próprio partido.

2022 repetirá 2018? Muito difícil. A onda anti-PT, que coroou o mais anti-petista de todos, acabou, como disse Waack. Não que o PT tenha alguma chance nas próximas eleições. É justamente o inverso: como o PT claramente perdeu-se no caminho e está desaparecendo a olhos vistos como força política, o anti-petismo também perde o seu sentido. E, em uma eleição onde as narrativas perdem força, ganha o tradicional: os políticos tradicionais e suas máquinas partidárias. Foi o que demonstrou essas eleições municipais e o que, provavelmente, vai demonstrar as eleições de 2022.

Bolsonaro pode até ganhar a disputa pela reeleição. Mas, se ganhar, não será mais como um outsider, mas como um legítimo representante do sistema.

Tente ficar tranquilo

A “proposta” de Boulos para o equilíbrio da previdência dos funcionários municipais ganhou as redes pela sua jenialidade única.

Para quem quer um pouco mais de informação a respeito deste importante assunto, este artigo de ontem do Pedro Fernando Nery é bem esclarecedor. Tente ficar tranquilo depois de lê-lo.

Igualistão ou Crescimenistão: onde você gostaria de viver?

Este é o primeiro de dois posts sobre crescimento econômico. Neste primeiro, farei a defesa do crescimento econômico como estratégia principal para melhorar o padrão de vida dos mais pobres. No segundo, discorrerei sobre as condições necessárias para acelerar o crescimento econômico.

Estamos em uma era em que a distribuição de renda é o “zeitgeist” do debate econômico. A má distribuição das riquezas fere os espíritos mais sensíveis, e a falta de condições mínimas de subsistência de uma parcela significativa da população global clama por soluções.

Neste contexto, falar de crescimento econômico soa quase que como uma heresia. Delfim Netto, quando era ministro da Fazenda de Médici, cunhou a frase que resume o pensamento que hoje merece a fogueira: “é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Esta frase veio em um contexto que nos é familiar: as críticas ao modelo econômico do Brasil (“o milagre econômico brasileiro” do início da década de 70), que deixava uma parcela significativa da população de fora dos benefícios do crescimento acelerado.

Se discutir crescimento econômico já era pouco simpático na década de 70, hoje temos o ambientalismo como o novo ingrediente que faz do crescimento econômico o grande vilão. Afinal, em um planeta à beira de uma catástrofe ecológica, com recursos cada vez mais escassos, o crescimento “a todo custo” ou “desordenado” trabalha para levar o mundo para o caos. Confesso que não consigo definir o que seja “a todo custo” ou “desordenado”, mas são adjetivos frequentemente encontrados em discursos para qualificar o crescimento econômico nocivo.

Por outro lado, os que defendem a primazia do crescimento econômico, afirmam que os mais pobres são também beneficiados no processo. Podemos resumir o raciocínio utilizando um exemplo fictício. Sejam dois países, o Igualistão e o Crescimenistão, ambos com o mesmo número de habitantes. O PIB do Igualistão é de 100 moedas, enquanto o PIB do Crescimenistão é de 300 moedas. Portanto, o PIB/capita do Crescimenistão é três vezes maior que o PIB/capita do Igualistão. No entanto, o índice de Gini do Igualistão é igual a zero, enquanto o índice de Gini do Crescimenistão é igual a 0,5.

O índice de Gini mede o grau de desigualdade de renda de um país. Gini igual a zero significa distribuição perfeita de renda. Ou seja, não existem mais ricos ou mais pobres, todos têm a mesma renda. Por outro lado, quanto mais próximo de 1 for o índice de Gini, mais desigual é a distribuição de renda. Um índice de 0,5 pode ser construído da seguinte forma: os 10% mais ricos da população possuem 55% da renda do país, enquanto os outros 90% da população vivem com os restantes 45% da renda do país, sendo que a renda desses 90% está igualmente distribuída. Ou seja, somente os 10% mais ricos ganham mais do que todos os outros.

Com essas informações, podemos facilmente calcular a renda da população do Igualistão e do Crescimenistão. No Igualistão, os 10% mais ricos têm renda equivalente a 10% da renda do país (10 moedas), os 10% seguintes também têm renda de 10% da renda do país (10 moedas), e assim por diante. Ou seja, todos os habitantes do Igualistão têm a mesma renda. Deste modo, no final somamos as 100 moedas, que é a renda total do país.

Já no Crescimenistão, os 10% mais ricos representam 55% da renda do país, que é de 300 moedas. Portanto, a renda dos 10% mais ricos soma 165 moedas. Já os 90% restantes têm renda de 145 moedas. Como todos ganham a mesma coisa, cada estrato de 10% ganha 15 moedas. Temos então que os 10% mais ricos ganham 165 moedas, os 10% seguintes ganham 15 moedas, os 10% seguintes também ganham 15 moedas, e assim por diante, até completar a renda total do país, que é de 300 moedas.

Note que os cidadãos mais ricos do Crescimenistão têm renda/capita 11 vezes maior que o restante da população. Uma bela desigualdade. No entanto, o país é tão mais rico, que os mais pobres do Crescimenistão são 50% mais ricos que os cidadãos do Igualistão (15 moedas contra 10 moedas). Em outras palavras, mesmo em um país desigual, os mais pobres podem ter qualidade de vida superior ao de países mais igualitários. Basta que sejam mais ricos.

Obviamente, o ideal seria que tivéssemos o melhor dos dois mundos: a renda do Crescimenistão combinada com a igualdade do Igualistão. É possível? Sim. Não só é possível, como é o que normalmente acontece. No gráfico a seguir, mostramos a relação entre índice de Gini e renda/capita (conceito PPP) de 144 países. (A fonte para o índice de Gini é o Banco Mundial e para a renda/capita é o FMI).

Observe como a linha de tendência é levemente decrescente. Ou seja, quanto maior a renda/capita, menor tende a ser o índice de Gini. Em outras palavras, os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. Uma notável exceção são os Estados Unidos, que têm um Gini muito alto se considerarmos sua renda/capita. Voltaremos a este ponto mais à frente.

Fosse para encontrar alguma correlação, poderíamos dizer que uma forma de aumentar a igualdade seria simplesmente enriquecer, dado que os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. No entanto, podemos observar que também países muito pobres possuem índices de Gini baixos. Ou seja, é possível ser pobre e igualitário também. Em outras palavras, aparentemente, a igualdade não tem a ver com o nível de renda do país para os países mais pobres.

Para tentar inferir quais outros fatores poderiam afetar a distribuição de renda, fiz o ranking dos países mais desiguais (Gini mais alto) e países mais igualitários (Gini mais baixo).

Observe que, entre os países mais igualitários, temos uma predominância de países do Leste Europeu, além da Escandinávia. Mesmo países com renda mediana, como Moldávia e Ucrânia, apresentam Gini muito baixo. Será que o sistema socialista criou, de fato, igualdade nesses países? Ou será que a homogeneidade de suas populações levou naturalmente a uma igualdade maior de renda? Difícil dizer, sem termos acesso a uma série histórica. Mas o ranking dos países mais desiguais nos dará insights mais interessantes.

Podemos observar que, dos 10 países mais desiguais, 8 se encontram na África e 2 na América Latina. Sim, o Brasil faz parte desse ranking. Observe que Brasil, Botswana e África do Sul possuem mais ou menos a mesma renda/capita da Moldávia e Ucrânia, mas uma desigualdade muito maior. Ou seja, a pobreza não explica a desigualdade.

Será que o processo de colonização e o histórico de escravidão levaram às grandes desigualdades na África e na América Latina? A escravidão como fator de desigualdade também explicaria o alto índice de Gini nos EUA, muito acima da média dos países mais ricos. Além disso, é um país que recebe muitos imigrantes, o que torna sua população mais heterogênea em termos de condições iniciais, pelo menos em um primeiro momento.

Se isto é verdade, a forma de diminuir as desigualdades é tornando a população mais homogênea do ponto de vista das suas condições iniciais. E a forma de fazer isso de maneira estrutural é através da capacitação da mão-de-obra e do fomento de instituições que permitam o emprego dessa mão-de-obra capacitada. Não adianta de nada formar mão-de-obra e dificultar a vida das empresas que poderiam empregá-la. A mão-de-obra formada irá vazar para o exterior.

Por outro lado, se a preocupação não for com a igualdade, mas com as condições de vida dos mais pobres, o crescimento econômico talvez seja uma solução mais adequada. Como vimos acima, os pobres do Crescimenistão vivem melhor que os pobres do Igualistão.

Vou além: em países como o Brasil, as políticas que visam melhorar as condições iniciais dos mais pobres e, assim, aumentar a homogeneidade da população, são sequestradas pelas elites em seu próprio benefício. As escolas são sequestradas pelas corporações de funcionários públicos, as faculdades atendem os filhos das elites, o sistema de aposentadorias (tanto privado quanto público) suga os poucos recursos que poderiam estar sendo investidos na melhoria das condições iniciais da população mais pobre, os incentivos fiscais atendem empresas que poderiam andar com as próprias pernas, etc, etc, etc.

Temos décadas de políticas empilhadas visando tirar o Brasil do vergonhoso ranking dos países mais desiguais do mundo. O último é o Fundeb permanente, que provavelmente será sequestrado para pagar salários dos professores sem relação com a eficiência do processo educativo. Desconfio que daqui a 20 anos vamos ainda fazer parte desse ranking.

Para países como o Brasil, sequestrado pelas elites, a forma mais eficaz de melhorar a vida dos mais pobres é enriquecendo. Focar na redução das desigualdades é insistir nas mesmas ações que fracassaram nas últimas décadas. Qualquer ação nesse sentido acaba beneficiando as elites em detrimento dos mais pobres. Sem contar que estas ações exigem uma carga tributária mais alta, que acaba por pesar justamente sobre os mais pobres, além de prejudicar o crescimento econômico potencial do país. Acabar com essa hipocrisia já seria um bom começo.

Boulos é o novo Lula?

Virou lugar comum a comparação entre Guilherme Boulos e Lula.

Boulos seria o novo Lula. Inicialmente um radical de esquerda, Boulos seguiria os passos de Lula, constituindo-se em um novo fenômeno eleitoral. Boulos teria a sabedoria de caminhar para o centro, de modo a angariar o apoio de setores mais amplos da sociedade.

Não sei se estou perdendo algo, mas entre Lula e Boulos, a única semelhança que vejo é a barba.

Lula literalmente veio do povo. Retirante nordestino, metalúrgico, líder sindical, Lula não conheceu a realidade de seus representados de ouvir falar. Ele nasceu nessa realidade.

Boulos, por outro lado, nasceu na classe média paulistana. Assim como muitos de seus coleguinhas burgueses, Boulos sente na consciência uma dívida social que o faz simpatizante de ideias socialistas. E vai além: assume como sua a luta dos excluídos do sistema capitalista. Mas a sua postura trai a sua origem.

No debate com Covas na CNN, o ponto alto de Boulos foi a defesa que fez de sua experiência com o povo sofredor. Covas teria informações sobre este povo somente ouvindo seus assessores em seu gabinete, enquanto ele, Boulos, teria conhecimento direto das pessoas que sofrem, com nome e sobrenome.

Boulos não percebeu, mas se colocou acima dessas pessoas. Como se fosse um observador privilegiado em um zoológico. Lula teria dito “eu sou uma dessas pessoas”, e não “eu conheço essas pessoas”. Boulos não é uma dessas pessoas. É um ser estranho a este mundo, por mais que viva e compartilhe dessa realidade.

Lula transpirava autenticidade, Boulos transpira artificialidade. Um dos elogios e paralelos que é comumente destacado em Boulos é a facilidade que tem de falar, assim como Lula. Nada mais falso. Lula não falava bem, no sentido culto do termo. Lula era autêntico no que falava, o que é diferente. Boulos é correto no que fala, não agride a norma culta. Percebe-se que tem berço. E é isso que não casa com a figura de um político que pretende agir em nome dos pobres. Soa artificial. Foi isso que senti quando o vi no debate da CNN.

Quando Marina Silva surgiu no cenário político, também foi um frisson. Seu terceiro lugar na eleição presidencial de 2014 a fez uma estrela em ascensão, a Lula de saias. E olha que Marina, assim como Lula, tinha como ativo a sua origem humilde, uma brasileira comum. O pecado de Marina foi ter se tornado intelectual e, portanto, ininteligível para a grande maioria dos brasileiros. Fez o caminho inverso de Boulos, e tornou-se, também, artificial. Sumiu.

Pode ser que eu queime a língua, e Guilherme Boulos seja o grande líder que levará a esquerda de volta ao poder. A esquerda está desesperada atrás de um novo barbudo. Mas desconfio que tenha que procurar um pouco mais.

Uma coincidência estatística possível

Abaixo, imagens de apurações parciais do TSE e do TRE Paulista da eleição da cidade de São Paulo.

A primeira apuração é do TSE, com meros 0,39% dos votos apurados. As outras apurações são do TRE Paulista, com 37,77%, 57,77% e 100% dos votos apurados.

As diferenças entre essas apurações foram as seguintes:

  • Covas: 32,58%/32,79%/32,81%/32,85%
  • Boulos: 20,33%/20,32%/20,35%/20,24%
  • França: 13,95%/13,65%/13,65%/13,64%
  • Russomanno: 10,44%/10,53%/10,49%/10,50%
  • Arthur do Val: 9,74%/9,73%/9,77%/9,78%
  • Tatto: 8,79%/8,66%/8,58%/8,65%.

Observe como os números com apenas 0,39% das urnas apuradas praticamente se mantiveram ao longo da votação. Para justificar essa incrível coincidência, seria necessário que a apuração feita nas primeiras 0,39% urnas tenha representado uma amostragem absolutamente fiel do perfil da votação da cidade. Qual a probabilidade de isso acontecer?

Quanto maior a uniformidade da votação na cidade, maior a probabilidade de as primeiras urnas indicarem a tendência geral da eleição. Fiz o seguinte exercício: calculei a média e o desvio-padrão das votações nas diversas zonas eleitorais da cidade de João Doria em 2016 e de Bruno Covas em 2020. Os resultados foram os seguintes:

  • João Doria: média 53,85%, desvio-padrão 11,49%
  • Bruno Covas: média 33,05%, desvio-padrão 4,41%

Observe como o desvio-padrão da votação de Covas é muito menor do que o desvio-padrão da votação de Doria. Quanto menor o desvio-padrão, mais homogênea tende a ser a votação entre as diversas zonas eleitorais da cidade. Não por outro motivo, Covas ganhou em todas as zonas eleitorais da cidade, coisa que nem Doria havia conseguido, mesmo tendo ganhado a eleição no primeiro turno.

Mas esta é apenas uma hipótese. Resolvi testá-la utilizando os dados de votação das 58 zonas eleitorais da capital. Montei uma planilha Excel (quem quiser, pode me pedir no Messenger), em que sorteio a chegada dos votos para totalização. As 58 zonas eleitorais são sorteadas 20 vezes cada uma, totalizando 1.160 sorteios. Para cada vez que uma zona eleitoral é sorteada, 1/20 dos votos recebidos por Covas naquela zona são contabilizados. A cada 5 sorteios, temos um total de 100%/1.160*5 = 0,43% dos votos apurados. Vamos acumulando até chegar nos 100%.

Fiz 100 sorteios. Ou seja, simulei 100 possíveis caminhos para a apuração. Obviamente, quanto mais urnas são apuradas, mais o resultado chega próximo dos 32,85% obtidos por Covas, até chegar neste número quando se completa 100% das urnas apuradas.

Pois bem. O que nos interessa é o quinto número, aquele obtido com 0,43% das urnas apuradas. Das 100 simulações, 5 ficaram entre 32,55% e 33,15% (32,85%+/- 0,30%). Ou seja, em 5% das simulações, o número apontado por 0,43% das urnas apuradas já antecipa o resultado final com uma margem bastante aceitável.

5% é um número muito baixo. Mas não é zero. Ou seja, é possível sim que, logo no primeira divulgação, com apenas 0,39% das urnas apuradas, o número já estivesse próximo do resultado final, pelo menos para o resultado de Covas. Teríamos que simular o mesmo para os outros candidatos de maneira conjunta, mas aí a planilha ficaria muito pesada. Além disso, o mesmo fenômeno que ocorre com Covas, ocorre também com os outros candidatos: a votação é relativamente homogênea nas zonas eleitorais (desvio-padrão baixo) para todos eles (está na planilha também).

Para 37,77% e 57,77% das urnas apuradas, a simulação retornou, respectivamente, 61% e 78% de resultados dentro do intervalo especificado. Ou seja, a probabilidade de que os resultados já fossem próximos do real com 37,77% e 57,77% das urnas apuradas já é significativamente maior.

Não estamos, portanto, falando de um fenômeno estatístico a lá Mega-Sena. Existe uma probabilidade material, ainda que baixa, de que tenha acontecido exatamente isso: os primeiros números apontando o resultado final.

Sendo assim, mesmo tendo sido um fenômeno que chamou a atenção, o fato de não ter havido alteração nos números ao longo da apuração não é, em si, prova de nada. Na verdade, pode ser explicado por uma certa homogeneidade da votação na cidade, homogeneidade muito maior do que em eleições passadas.

O papelão que o TSE protagonizou ontem infelizmente dá margem a teorias da conspiração. Esta da “não mudança” na apuração da cidade de São Paulo é apenas mais um motivo de desconfiança, gerado pelo contexto de incompetência do árbitro das eleições. Podiam passar sem essa.

O Estado que queremos e o Estado pelo qual queremos pagar

Vou iniciar este artigo com um disclaimer: não tenho nada contra os funcionários públicos. Pelo contrário. Reconheço a importância de todos em um sem número de funções essenciais para o bom funcionamento do Estado. Portanto, o que vai a seguir não deve ser interpretado, nem de longe, como um libelo contra o funcionalismo público. Trago apenas números.

A minha fonte principal de dados é o Atlas do Estado Brasileiro, do IPEA. Trata-se de uma radiografia bastante completa do funcionalismo público brasileiro, cobrindo o período de 1986 a 2017. Usei especificamente os dados de 2017 para fazer a análise que vai a seguir.

Vamos do geral para o particular.

Em 2017, os três níveis de governo (Federal, Estadual e Municipal) gastaram R$ 751 bilhões com funcionários públicos da ativa. Isto significou 10,7% do PIB daquele ano. Como a carga tributária é de aproximadamente 33% do PIB e o déficit primário daquele ano foi de aproximadamente 2% do PIB, temos um total de despesas gerais do governo equivalente a 35% do PIB. Portanto, a despesa com funcionários públicos nos três níveis de governo representou algo como 30% (10,7% de 35%) de todas as despesas públicas. É o segundo maior item de despesas, somente atrás da Previdência Social, que já foi objeto de reforma. Portanto, o próximo item da pauta de controle de despesas é a despesa com salários dos funcionários públicos.

Claro que, como pressuposto básico, assumimos que é necessário fazer algum ajuste nas contas públicas. Temos uma relação dívida/PIB caminhando para 100% (muito acima de nossos pares emergentes), produzimos um déficit primário da ordem de 3% do PIB e temos uma carga tributária de cerca de 1/3 do PIB, também muito acima de nossos pares emergentes. Estes números nos levam à conclusão de que precisamos ajustar as contas, a não ser que sejamos partidários da tese de que podemos nos endividar indefinidamente ou podemos rodar a maquininha de imprimir dinheiro sem limites (o que vem a dar na mesma). Se você é partidário dessas teses, este artigo não vai fazer muito sentido para você.

Voltemos ao fio da meada. Tivemos, em 2017, um gasto anual de R$ 751 bilhões com salários de funcionários públicos da ativa. Para decidir onde e como cortar, precisamos analisar como se distribui este gasto. O Atlas do Estado Brasileiro traz alguns dados relevantes, que usei para fazer os meus próprios cálculos. É isso que veremos em seguida.

A distribuição dos gastos com o funcionalismo público

De maneira geral, podemos dividir os gastos com funcionalismo nas três esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal) e entre os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Uma primeira abordagem para analisar os gastos com o funcionalismo é levantar o salário médio dos servidores. Afinal, parece ser intuitivo que atacar os salários mais altos é a forma mais eficiente de controlar os gastos, pois é nesses salários que, supostamente, estaria a maior gordura. A tabela 1, a seguir, mostra os salários mensais médios de 2017 já atualizados
para 2019 pelo INPC:

Observe como os salários do poder Judiciário e da esfera Federal são muito maiores do que nas outras esferas e nos outros poderes. Uma crítica à reforma administrativa que foi enviada pelo governo para o Congresso é justamente a de não ter mexido com os supersalários do Judiciário.

Ocorre que a forma mais eficiente de cortar qualquer despesa é atacar as maiores despesas. Qualquer economia nas maiores despesas faz mais diferença do que se fossem feitos cortes nos menores itens de despesa. Os maiores salários estão no Judiciário. Mas será que este é o maior item de despesa? Não. A tabela 2 mostra o total gasto em cada nível de governo e em cada poder (estes números não estão no Atlas, eu calculei com base nos números do Atlas).

Observe como o grosso dos gastos encontra-se no poder Executivo (R$ 652,6 bilhões, representando cerca de 87% do gasto total). Isso acontece porque, mesmo tendo o nível salarial mais baixo entre os três poderes, o poder Executivo é o que tem, de longe, o maior número de funcionários públicos: são 10,7 milhões, representando 94% do total de 11,4 milhões de servidores em 2017, como podemos observar na Tabela 3.

E esse é o xis da questão. Enquanto os maiores salários estão no poder Judiciário e na esfera Federal, os maiores gastos, em valores absolutos, estão no poder Executivo e nas esferas Estadual e Municipal. Mesmo que conseguíssemos, por exemplo, cortar em 25% os salários do poder Judiciário nas esferas Federal e Estadual, teríamos uma economia anual de R$ 18 bilhões. Não é pouco, mas também não ajuda muito, em um déficit primário da ordem de R$ 200 bilhões por ano. Por outro lado, teríamos mais ou menos a mesma economia se conseguíssemos cortar os salários do poder Executivo nas três esferas de governo em algo como 2,8%.

Isso acontece porque a distribuição de riqueza no funcionalismo público segue mais ou menos o mesmo padrão do restante do Brasil: poucos ganham muito, e a maioria ganha uma miséria. Vamos pegar como exemplo os salários acima de R$ 20 mil/mês. No poder Executivo, apenas 0,1% dos funcionários públicos ganham acima deste valor nas três esferas de governo. No Legislativo, são 4,8%, enquanto no Judiciário são 12,5%. Em termos absolutos, o poder Executivo gasta R$ 5,5 bilhões/ano com esses salários, o Legislativo gasta outros R$ 5,5 bilhões/ano, enquanto o Judiciário gasta R$ 20 bilhões/ano. Portanto, o governo como um todo gasta R$ 31 bilhões/ano com salários acima de R$ 20 mil/mês, ou 4,1% do total dos gastos. Se conseguíssemos cortar em 25% esses salários, teríamos uma economia de apenas R$ 7,8 bilhões, a mesma economia que teríamos se cortássemos os salários abaixo de R$ 20 mil/mês em 1,1%.

Conclusão: mirar nos maiores salários é necessário, mas não suficiente

Mirar nos salários mais altos, nos privilegiados do setor público, é o equivalente a taxar grandes fortunas: funciona como efeito demonstração, mas tem efeito limitado sobre as contas públicas. Infelizmente, somos um país pobre, e se não taxarmos os pobres, ou não cortarmos os salários dos funcionários que ganham menos, não se tem o efeito pretendido.

Isso significa que não se deva mirar nos maiores salários? De maneira alguma! Politicamente, qualquer intervenção só funciona se houver um efeito demonstração. Os deputados, senadores e governantes deveriam começar cortando de seus próprios salários, e os magistrados com as maiores regalias deveriam ser os primeiros alvos de qualquer reforma administrativa. Mesmo que isso não signifique, como vimos, grande economia, demonstra para a grande massa dos funcionários públicos que a coisa é para todos e é para valer. Meu ponto aqui é que focar as reformas administrativas das três esferas do governo apenas nos maiores salários não funciona.

O Estado que queremos e o Estado pelo qual estamos dispostos a pagar

Os números acima mostram que o problema não está nos supersalários ou nos privilégios. O problema é mais embaixo: a grande massa dos funcionários públicos, aqueles que ganham menos e que prestam serviços diretamente à população, estes são os que representam os maiores gastos dos governos nas três esferas. A grande questão é que é fácil prometer o paraíso na Terra, mas pagar por isso é que são elas. Somos um país pobre, mas prometemos um Estado escandinavo para a população. É lógico que haja frustração, mesmo gastando 10,7% do PIB com salários de funcionários públicos (isso é só da ativa, não estou contando os aposentados).

A discussão de uma reforma administrativa passa pela discussão do Estado pelo qual podemos pagar. Para isso, é preciso, antes de mais nada, acabar com o mito de que, eliminando “penduricalhos” e acabando com os “marajás” do serviço público, os problemas estarão resolvidos. Não estarão. O grosso do gasto público se dá nos extratos inferiores, como vimos.

Já contribuímos com cerca de 1/3 do PIB em impostos. Trata-se de um nível somente inferior ao que se tem nos países nórdicos. E esta carga tributária não tem sido suficiente para pagar pelos serviços que demandamos do Estado. A solução é elevar ainda mais a carga tributária? Quem garante que a qualidade dos serviços do Estado melhorará simplesmente colocando mais dinheiro no sistema?

A questão não é se os funcionários públicos ganham muito ou pouco. A verdadeira questão é qual o tamanho do Estado pelo qual estamos dispostos a pagar. E aqui, vale a mesma lógica de um país pobre: o grosso da conta sempre vai recair sobre os pobres. Nunca esqueça esse fato.

Está mais do que na hora de acabar com o “me engana que eu gosto”

Encerro com o mesmo disclaimer que dei no início deste artigo: tenho o maior respeito pelos funcionários públicos e não quero usá-los como o bode expiatório dos problemas brasileiros. Meu único ponto neste artigo foi mostrar que, se queremos diminuir as despesas do Estado brasileiro (e essa é uma premissa importante), é preciso atacar a questão dos serviços que o Estado presta para a população e da remuneração dos funcionários públicos que prestam esses serviços. O fato é que os serviços demandados pela população não cabem no orçamento público, e alguém precisa dar essa má notícia.

Tenho consciência de que não se trata de assunto fácil, mas funcionários públicos de vários estados já estão sentindo na pele uma “reforma administrativa” não declarada, com o atraso sistemático de seus salários. Estamos vivendo um “me engana que eu gosto”, fazendo de conta que temos dinheiro para pagar os salários de todos. Não temos, e é melhor reconhecer este fato do que varrer a realidade para debaixo do tapete. O redimensionamento do Estado é a forma ordenada de resolver o problema. A maneira desordenada já conhecemos: inflação, que distribui para toda a população o ônus de uma conta que não tem como ser paga.