Há quem diga que um país pode se endividar à vontade em sua própria moeda, pois os financiadores não têm escapatória, a não ser financiar o governo. Isto valeria especialmente para o Brasil, onde não são muitas as alternativas dos investidores além dos títulos públicos. No limite, o governo resolve seu problema rodando a maquininha de imprimir aquele papel de gosto duvidoso chamado Real. Não quer meu título de dívida? Tome aqui esse papel colorido e vai com Deus!
Em países onde prevalece uma longa história de respeito pelos contratos, isso até certo ponto é verdade. EUA, Alemanha, Japão, Reino Unido formam um grupo de países que podem, até certo ponto, abusar de sua prerrogativa de endividar-se. Do lado de baixo do Equador, no entanto, isso está longe de ser verdade.
Há três dias “comemorávamos” os 31 anos do confisco dos haveres dos brasileiros pelo Plano Collor. Foi o único calote de fato da dívida interna, incluindo o papel pintado. Os outros “calotes” se deram através da inflação.
Este preâmbulo serve como pano de fundo para analisar a decisão do BC de elevar a taxa Selic pela primeira vez nos últimos 5 anos. De todos os bancos centrais do mundo que importam, somente a Turquia está elevando juros. É compreensível: estamos em meio a um desastre sanitário sem precedentes, que atingiu o emprego e a renda de uma parcela relevante da população. Pensar em inflação nesse contexto parece fora de lugar.
Não no Brasil. Aqui, o BC reagiu a uma deterioração das expectativas de inflação, que ameaça romper a banda superior da meta esse ano e ficar acima da meta no ano que vem. Em princípio, essa deterioração vem do fato de que o câmbio está muito pressionado, contaminado vários preços da economia, a começar dos combustíveis.
Mas o câmbio é apenas o sintoma, não a doença. A doença é a percepção de que o governo brasileiro, em todos os níveis e esferas, não está a fim de cortar gastos. “Gasto é vida”, já disse uma ex-presidenta de triste memória. Sua desastrosa passagem pelas nossas vidas não foi o suficiente, no entanto, para arrancar esse mantra que permanece nos corações e mentes da sociedade brasileira.
Vejamos o exemplo concreto, que foi o gatilho para a piora substantiva dos preços no mercado financeiro nas últimas semanas: a aprovação do auxílio emergencial em troca de alguns “gatilhos” de contenção de gastos. O que são esses “gatilhos”? Basicamente o congelamento do salário dos servidores públicos quando as despesas obrigatórias (e salários são despesas obrigatórias) ultrapassarem 95% das despesas totais. O mecanismo que permitiria corte de salários e jornadas de trabalho foi descartado.
Não passou despercebido o seguinte: o efeito do congelamento de salários sobre os gastos do governo (em relação às receitas) é tanto maior quanto maior for a inflação. Os salários não são reajustados e perdem o seu poder de compra. Ou seja, o ajuste das despesas do governo PRESSUPÕE QUE EXISTA INFLAÇÃO. E, quanto maior, melhor. Se não houver inflação, esses gastos diminuem apenas na medida do crescimento da economia que, como sabemos, é muito fraco.
Quer dizer, a mensagem foi a seguinte: o ajuste fiscal se dará através da inflação. E, claro, com uma mensagem dessas, os financiadores da dívida pedem um prêmio mais alto para carregá-la, de modo a se protegerem da inflação futura. O BC apenas sanciona algo que já foi percebido pelos credores da dívida.
É claro que este é um círculo vicioso: taxas de juros mais altas produzem mais despesas financeiras, que por sua vez aumentam a dívida, piorando a percepção de risco. O BC tenta fazer a sua parte, mas é como dar um anti-febril para um paciente com Covid e mandá-lo de volta para casa. O vírus continua lá, fazendo o seu trabalho no pulmão do indivíduo.
Quando assumiu a presidência da Argentina, Maurício Macri tinha um plano de reorganização das finanças públicas argentinas. Como sabemos, fez muito pouco, muito tarde. Lá, como aqui, as dificuldades políticas são enormes para se cortar despesas. Lá, como aqui, os credores sabem que a inflação é o único remédio para esse problema. Macri pagou o preço. Bolsonaro aprenderá com seu vizinho do sul?