Uma discussão mais pé-no-chão faria bem

Abaixo vai a entrevista concedida por Luis Braido, relator do caso da Oi no Cade e voto vencido contra a venda da operação móvel da empresa para as suas três concorrentes. Se a qualidade de seu voto foi a mesma da dessa entrevista, não causa surpresa que tenha saído derrotado. Vejamos.

O relator começa dizendo que a margem de lucro das outras empresas gira ao redor de 40%. Este é um fact checking simples. Nos seus últimos balanços completos disponíveis (2020), observamos que a Vivo e Tim tiveram lucro líquido de 11%. A Claro não tem capital aberto no Brasil, então não achei o seu balanço.

E mesmo que tivesse sido de 40%? Qual o critério para definir a margem de lucro “razoável” para o negócio? Se é com base nessa “margem de lucro razoável” que as decisões são tomadas, seria mandatório definir o critério.

Em seguida, o conselheiro afirma que a Oi praticava uma política de descontos em suas tarifas, e que esta política provavelmente não terá continuidade. Bem, em primeiro lugar, talvez tenha sido por precisar dar descontos que a Oi foi à falência. Em segundo lugar, se a Oi realmente oferecesse preços menores ajustados pela qualidade do serviço, terminaria levando seus concorrentes à falência, monopolizando o mercado. Se, mesmo com tarifas mais baixas, a Oi não conseguiu atrair clientes em número suficiente para evitar a bancarrota, provavelmente a qualidade de seus serviços não compensava os preços mais baixos. Não existe almoço de graça.

O relator reclama que “as empresas estavam pouquíssimo dispostas a ceder”. Sério? O que ele esperava? Que as empresas assinassem um papel em branco apresentado pelo Cade? É muita ingenuidade para um membro sênior da administração pública. As empresas sabiam que tinham uma carta na manga, que era a falência da Oi, o que as deixaria virtualmente na mesma posição sem precisar conceder nada.

Aliás, o conselheiro chama de “terrorismo” a ameaça da falência da Oi. Segundo o bravo relator, somente os credores perderiam com a falência da empresa, não os consumidores. Oi? (sem trocadilho). É o mesmo que dizer que a morte do pai de família endividado é um problema só dos seus credores, não dos seus filhos menores. Um processo de falência descontinua, de uma hora para a outra, os serviços da empresa falida. Os usuários ficam na mão do dia para a noite. No processo de compra, pelo menos há uma transição ordenada, dando tempo para os usuários decidirem o que querem da vida. Fora que dizer “só os credores sairiam prejudicados” mostra uma incrível insensibilidade com os efeitos nefastos de um calote na economia das empresas e das famílias.

O relator tem uma bagagem acadêmica respeitável, é PhD por Chicago e professor da GV. Para o Cade, no entanto, talvez o perfil ideal de conselheiro, sem prejuízo de sua formação acadêmica, seja o requisito de ter encostado a barriga do balcão em um negócio de verdade, nem que fosse uma padaria. As discussões poderiam ser mais pé no chão, sem ideologias acadêmicas abstratas.

Whataboutism

O “whataboutism” é uma forma de argumentação que lança mão do oposto para relativizar a gravidade de uma condenação, apontando uma suposta hipocrisia do interlocutor. Por exemplo, “e o PT?” virou o meme de uma clássica resposta whataboutista para críticas ao governo Bolsonaro. Como se cada crítica a cada ator político precisasse ser sempre acompanhada de uma crítica igualmente virulenta ao seu campo oposto, sob pena de o crítico ser tachado de petista ou bolsonarista, a depender do lado da crítica.

Ontem, as redes foram invadidas de “whataboutism” com respeito ao affair Monark/nazismo. A crítica mais comum era a falta de igual condenação ao comunismo, que também foi responsável pela morte de milhões de pessoas inocentes. A pergunta que as pessoas se fazem, e que foi verbalizada por Monark e pelo deputado Kim Kataguiri, é porque um partido comunista é legal em vários países, inclusive no Brasil, e um partido nazista não o é. A porca torceu o rabo quando os dois avançaram o sinal, e sugeriram que um partido nazista deveria também ser legalizado.

Não vou aqui entrar no mérito dessa sandice, já objeto de meu post de ontem. Meu objetivo é procurar entender porque existe essa diferenciação de tratamento entre o comunismo e o nazismo. Que fique claro, desde o início, que o que vai a seguir é uma análise da realidade como ela é, não como eu particularmente gostaria que ela fosse, ok?

Para essa análise, será útil artigo de Eugênio Bucci publicado hoje.

Bucci é o arquétipo do intelectual de esquerda, e o que ele escreve é bastante útil para entender o que vai na cabeça desse pessoal. Hoje, o professor da ECA comenta o affair Monark/nazismo desde o ponto de vista do esquecimento da História. O jovem Monark seria o representante de uma geração que, esquecendo as lições da História, tende a repetir suas barbaridades. E é o canal por onde o fascismo, o grande inimigo da história, ressurge. Para ilustrar a sua tese, Bucci usa como exemplo o último filme de Almodóvar, Mães Paralelas. O trecho em destaque abaixo mostra duas mães, uma querendo se livrar de sua família “burguesa”, a outra, procurando o túmulo do bisavô morto pelo franquismo. Para Bucci, a História tem somente um lado: o fascismo, representado aqui pela burguesia e pelo franquismo, é o inimigo. No entanto, mais útil do que enfurecer-se com essa clara preferência por um dos lados da disputa, é procurar entender o por quê dessa preferência.

Pode ser uma imagem de texto que diz "mesmas: Ana (Milena Smit) quer se libertar da família bur- guesa, enquanto Janis (Penélo- pe Cruz), mais velha que a com- panheira de quarto, está empe- nhada em encontrar o lugar em que foi sepultado o seu bisavô, executado na Guerra Civil por tropas do franquismo. A partir daí, as verdades íntimas de cada uma delas se descortinam em paralelo com os fatos históricos que vão sen- do exumados. A subjetividade irredutível de Ana e Janis vai ganhando consistência no mesmo ritmo em que os cri- mes contra a humanidade são dados à luz."
Pode ser uma imagem de texto que diz "E o que é que não se cala? Ο fascismo. Dia desses, um rapaz -que dizem ser famoso nas re- des sociais defendeu publica- mentealegalização de um parti- do nazista no nosso País. É recalcado que retorna, nos bra- ços da ignorância e do esqueci- mento da história."

A crítica à existência do partido comunista, que mereceria a lata de lixo da história onde está o partido nazista, se resume a números. O comunismo foi também responsável por milhões de mortes de inocentes. Nesse campeonato macabro, deixa o nazismo no chinelo. Desculpem-me, mas quem usa esse argumento está errando o alvo de longe. Como teria dito Stálin, uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística. Para a narrativa, o que importa não é o número de mortes, mas as circunstâncias que levaram a essas mortes.

Por essa narrativa, o comunismo matou traidores da revolução: os chamados “inimigos do povo” e os kulaks, a burguesia da época. Passou um pouco da medida, é verdade, mas a sua intenção era boa, implementar uma sociedade nova, em que todos fossem iguais. Já tive a oportunidade de resenhar o livro “Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin”, onde isso fica bastante claro. Nada a ver, portanto, com o nazismo, que montou uma máquina de extermínio contra minorias étnicas.

O partido comunista, portanto, continua sendo o porta-voz desse ideal de uma sociedade nova. Teria abandonado os métodos stalinistas, canalizando a sua luta dentro da lei. Os milhões de mortos em suas costas foram como que um acidente de percurso, algo que não deveria ter ocorrido, mas que não é suficiente para nublar o futuro radioso que nos espera.

Na verdade, o partido comunista ser ou não legal é irrelevante, diante do zeitgeist que permite a uma Marilena Chauí gritar, para quem quiser ouvir, que “odeia a classe média”, a burguesia. O fato de ela mesma, e Eugênio Bucci, serem classe média, não os impede de colocar-se ao lado do “bem” contra o “mal”. E o mal é tudo aquilo que se opõe a um “outro mundo possível”.

Desse modo, não é de se estranhar que o partido comunista seja legal. Eles estão do lado do bem, do belo e do justo, mesmo que, para isso, tenham empilhado cadáveres ao longo da história. Se alguém defendesse que o nazismo tinha uma boa intenção, e teve que lidar com “inimigos do povo” (os judeus eram assim considerados), certamente seria tachado de genocida. O comunismo, no entanto, conta com essa licença poética, fomentada e compartilhada por uma intelectualidade que não consegue lidar com as “injustiças” criadas pelo “capitalismo burguês”.

Uma última observação, na forma de conselho: evite o whataboutism. Essa é uma argumentação que relativiza o outro lado, por mais que se coloque disclaimers avisando que também não se concorda com o outro lado. Se for necessário, escreva dois textos, um para condenar um lado, o outro para condenar o outro lado. Colocar as duas condenações juntas separadas por um “mas” inevitavelmente diminuirá a importância ou, até mesmo, inocentará o que vem antes da conjunção adversativa. Foi o que Monark sentiu na pele.

Pagando para alguém levar

A ANS vetou a venda da carteira de planos individuais da Amil para um fundo de investimentos chamado Fiord.

Quando você ouve a palavra “venda”, o que você pensa? Que o vendedor recebe o dinheiro do comprador em troca da mercadoria vendida, certo? Qual não foi minha surpresa ao ler que a Amil PAGOU a bagatela de R$ 3 bilhões para que o Fiord levasse a mercadoria embora. Fazendo a conta, isso resulta em mais ou menos R$ 27 mil por plano “vendido”. Ou seja, a Amil pagou esse montante para se livrar do negócio.

Quando ocorre uma negociação, os dois lados fazem conta: o comprador avalia se aquele dinheiro que está desembolsando vai resultar em um retorno atrativo e o vendedor, da mesma forma, avalia se o dinheiro recebido na transação pode ser aplicado em outro negócio mais rentável do que aquele que está vendendo. Como cada lado tem sua própria avaliação e seu próprio conjunto de oportunidades concorrentes, chega-se em um preço que é satisfatório para ambas as partes.

Pois bem: o preço do negócio de planos individuais da Amil, que foi acertado entre as partes, foi de MENOS 3 bilhões. Isso mesmo, 3 bilhões NEGATIVO. A Amil pagou para que alguém levasse o negócio embora, provavelmente porque concluiu que o prejuízo seria maior se continuasse com o negócio.

Lendo a reportagem dá para ter uma ideia do porquê. Como parte do negócio, a Amil se comprometeu a iniciar um plano de corte de custos, o que resultou em descredenciamento de alguns hospitais e laboratórios. Duas histórias são contadas na matéria, em que juízes determinaram o recredenciamento de hospitais, com base no “direito adquirido” do assistido. A Amil está condenada a ter prejuízo para sempre.

Não vou aqui entrar no mérito da justeza das reivindicações dos assistidos. Acho até muito justo. O problema é que o mundo é justo até acabar o dinheiro. A ideia de que as operadoras de saúde ganham rios de dinheiro explorando (ou melhor, mercantilizando) a saúde do povo cai por terra com o preço “pago” pela Fiord para ficar com o negócio.

No final, se a ANS não voltar atrás, só restará à Amil fechar as portas, deixando ao relento os seus clientes, pois nenhuma empresa é obrigada a operar com prejuízo. Terá sido um belo serviço prestado pela ANS aos usuários de planos de saúde.

Ah, e antes que eu esqueça, #VivaoSUS.

Liberdade de expressão, lá vamos nós novamente

Há alguns dias, publiquei um post criticando o manifesto dos jornalistas da Folha, que condenava a decisão do jornal de publicar artigo que se opunha ao conceito de “racismo estrutural”. Segundo os jornalistas da Folha, o artigo seria racista, pois contra um “consenso” do debate racial. Minha tese era de que há consenso somente em alguns círculos, e que o debate está em aberto. Portanto, impedir contrapontos a uma tese ainda em construção era agredir a liberdade de expressão.

Não demorou a surgir, como é comum nesses casos, o argumento “reductio ad hitlerum”. Do que se trata? Basicamente do seguinte: se você não é capaz de defender a sua tese referindo-se a Hitler ou ao nazismo, a sua tese não vale nada. Neste caso, a tese se aplicaria da seguinte forma: se você não pode usar a sua liberdade de expressão para defender Hitler ou o nazismo, então você também não pode usá-la para defender tal ou qual ideia, igualmente nefasta. No caso, a ideia de que o “racismo estrutural” é controversa, mas poderia ser qualquer outra ideia que conta com unanimidade apenas em certos círculos bem-pensantes.

Monark (que, para mim, até outro dia, era somente uma marca de bicicleta) e Kim Kataguiri caíram feito patinhos na armadilha do “reductio ad hitlerum”. Para defender o direito irrestrito à liberdade de expressão, tiveram que admitir que o nazismo é uma forma legítima de expressão de ideias. Não precisava ser assim, mas o “reductio ad hitlerum” não lhes deixou saída.

Qual foi o problema? Não admitir que a liberdade de expressão não é um território sem limites, que há coisas que caem fora de seus domínios. O nazismo é uma delas. Há uma unanimidade universal sobre a perversidade do regime nazista, que tinha como objetivo a eliminação de etnias “inferiores”. Tanto é assim, que Monark e Kataguiri fizeram questão de se descolar dessas ideias, deixando clara a sua rejeição. Mas não teve jeito: a coisa é tão pegajosa, que defender a liberdade de expressão de nazistas é equivalente a ser nazista. O nazismo é algo tão perverso, a própria perversão por antonomásia, que engole tudo à sua volta. Simplesmente não dá para discutir a liberdade de expressão “em tese” usando o nazismo como exemplo.

E esta é a pegadinha do “reductio ad hitlerum”: usa-se um caso extremo para se tirar uma regra geral: eu não posso defender a liberdade de expressão de Antônio Risério sem defender a liberdade de expressão dos nazistas. E esta pegadinha tem uma razão de ser: quem define, e com quais critérios, os limites da liberdade de expressão? Por que Risério pode defender que o racismo estrutural não existe, ao passo que os nazistas não podem defender suas ideias de eliminação das etnias mais fracas?

O mundo é sempre do jeito que as pessoas o veem. Por isso, há coisas que são intoleráveis para uns, mas são toleráveis para outros. Traçar uma linha divisória universal do tolerável é uma tarefa inglória, para não dizer impossível. Nessas horas, lembro da sentença do juiz da Suprema Corte americana, Potter Stewart, em julgamento sobre se um determinado filme deveria ser considerado pornográfico e, portanto, censurado para exibição livre. Em sua sentença, o juiz disse mais ou menos o seguinte: “não vou aqui procurar definir o que é ou não pornografia, e talvez nunca consiga fazê-lo de maneira inteligível. Mas EU SEI QUE É PORNOGRAFIA QUANDO EU VEJO PORNOGRAFIA, e o filme em questão não é isso”. A expressão em inglês que ele usou, “I know it when I see it”, tornou-se clássica para definir algo de bom senso, com que todo mundo concorda. Nesse sentido, todo mundo concorda que o nazismo é uma perversão, e nada justifica o direito à sua defesa.

Portanto, defender a existência de um partido nazista de modo a poder contrapor as suas ideias no campo democrático é o mesmo que, sei lá, defender um partido do PCC de modo a poder contrapor suas ideias de crime organizado em um debate no Flow. Isso não é liberdade de expressão, é somente uma idiotice.

Não caia na falácia do “reductio ad hitlerum”. As fronteiras do território da liberdade de expressão estão sempre em litígio. Podemos discutir se Risério pode ou não falar ou que falou. Mas o nazismo está definitivamente fora desse território. I know it when I see it.

O desastre da educação brasileira

A manchete é bombástica: nada menos do que 66% foi o aumento de crianças entre 6 e 7 anos de idade que não são alfabetizadas, entre 2019 e 2021.

Pode ser uma imagem de texto que diz "RAIO X Porcentual de crianças de 6 7 anos que não sabem ler e escrever cresce no Brasil Sabe ler e escrever? EM MILHÕES SIM 4,408 NÃO 4,321 4,197 4,119 4,454 4,382 4,298 4,299 1,729 1,779 1,801 3,838 1,777 3,475 1,439 1,507 2012 1,541 2,392 2013 1,885 1,439 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021"

No entanto, o que realmente me chamou a atenção não foi o desastre causado pelas escolas fechadas durante dois anos, um verdadeiro crime. O que deveria saltar aos olhos de qualquer um, mas nem sequer foi tema da reportagem, é que entre 25% e 30% das crianças brasileiras entre 6 e 7 anos de idade, a depender do ano, não sabem ler e escrever. Este número saltou para 40% durante a pandemia, mas a verdadeira tragédia é o número inicial, aparentemente tomado como coisa normal. Não é.

Ao menos um quarto das crianças brasileiras chegam aos 7 anos de idade analfabetas. Esse início pouco promissor irá cobrando o seu pedágio nos anos seguintes, pois ao invés de avançar nos conteúdos, a escola vai precisar recuperar o atraso. No final da linha, teremos jovens que mal sabem interpretar um texto, quanto mais se adaptar a um mercado de trabalho que cada vez mais exige preparação.

Aprendi a ler e escrever com 6 anos de idade, no antigo pré-primário, hoje 1o ano do fundamental. Era uma escola estadual. Na verdade, já tinha aprendido muita coisa em casa, naturalmente, com meus pais. Tive a sorte de nascer em um lar em que minha mãe gostava de ler e incentivava os filhos a lerem. Coloca-se um peso grande na responsabilização do sistema de ensino, mas arriscaria dizer que uma parte importante desse fiasco educacional começa em casa, onde os filhos não herdam dos pais o que os próprios pais não tiveram, em um círculo vicioso difícil de quebrar. A nossa miséria é mais complexa.

Já contei aqui a história de minha filha que, com alguns colegas de colegial, teve a ideia de dar aulas de reforço em uma escola da periferia, para alunos que quisessem prestar o vestibulinho para entrar em alguma escola técnica, como a que ela estava cursando. Conseguiram o apoio do diretor de uma escola e, qual não foi sua surpresa, quando viu que apenas meia dúzia de gatos pingados se interessou pela oferta de aulas aos sábados. Essas crianças certamente tiveram o incentivo de seus pais, coisa que deve ter faltado à maioria.

Nunca se teve tanto dinheiro aplicado na educação, o Fundeb está fora do teto de gastos e, mesmo assim, o percentual de crianças analfabetas continua o mesmo nos últimos 10 anos, tendo piorado durante a pandemia. Os analistas repetem a obviedade de que “precisamos reduzir as desigualdades”. A educação é vista justamente como um passaporte para a redução dessas desigualdades, mas o que se vê é que a educação reproduz essas mesmas desigualdades. Se, apesar de todo o dinheiro investido, a educação continua insuportavelmente desigual, talvez precisemos de uma nova fórmula para endereçar o problema.

Queremos ser sérios, mas não muito

Cláudio Adilson é um economista respeitado no mercado financeiro. Mas nem por isso não pisa na bola de vez em quando. É o caso do artigo de hoje, em que defende metas mais altas para a inflação.

Essa tese não é nova. Os governos do PT a colocaram em prática, mantendo a meta de inflação em 4,5% durante todo o período, mesmo com grande parte das economias emergentes estabelecendo as suas metas em 3%. A julgar pela performance econômica relativa, não podemos dizer que foi uma “taxa ótima” de inflação.

Cláudio Adilson parece fazer um “cherry picking” de papers, encontrando um que defende uma certa “taxa ótima” de inflação. Para a zona do Euro, essa taxa ótima seria de 4%! Imagine então para uma economia como a brasileira. No mínimo, uns 8%. Já imaginou uma meta de 8% para nós? Podemos contar com inflação de dois dígitos tranquilamente. Além disso, a Europa tem o problema inverso: eles não conseguem fazer a inflação subir de maneira consistente. 2% é uma meta inexequível, quanto mais 4%. Aqui é o inverso: em grande parte do tempo, a meta serve como piso para a inflação. Usar um estudo feito para a Europa para embasar uma decisão nossa parece ser inadequado.

A esperança de quem defende meta de inflação mais alta é termos taxas de juros mais baixas, pois o BC não precisaria subir tanto a taxa Selic para trazer a inflação para a meta. Isso é verdade, mas somente na primeira rodada do jogo. A partir da segunda rodada, os agentes incorporam essa meta mais alta em suas expectativas, e a meta mais alta só serve para termos uma inflação mais alta. O resto, taxa de juros real e crescimento econômico, permanecem os mesmos, na melhor das hipóteses. Digo na melhor porque taxas de inflação mais altas tendem a desorganizar a economia, trazendo ruído para as decisões dos agentes econômicos e, provavelmente, prejudicando o crescimento econômico no longo prazo.

A tese da meta mais alta confunde curto prazo com longo prazo de duas maneiras, uma conjuntural e outra estrutural. Em primeiro lugar, o mundo sofreu um choque sem precedentes, e a inflação mais alta é uma de suas consequências. Confundir as consequências desse choque conjuntural com uma incapacidade estrutural de conviver com inflação mais baixa é um erro. Na verdade, a soma de um Banco Central com credibilidade com uma meta mais baixa de inflação tornou possível que a nossa inflação neste ano ficasse apenas 3 pontos percentuais acima da inflação americana. É simplesmente um erro comparar os 10% desse ano com os 10% de 2015, quando a nossa inflação foi fabricada aqui mesmo, e ficou nada menos que 8 pontos percentuais acima da inflação americana. Usar esses números para defender que a meta está muito baixa é inadequado.

Em segundo lugar, estruturalmente, a meta de inflação serve para ancorar as expectativas dos agentes econômicos. Sem nenhuma informação adicional, os agentes esperam que a inflação esteja na meta no longo prazo, se o Banco Central tiver credibilidade. Com base nessas expectativas, os agentes formam os preços no mercado de taxa de juros. Se a meta for de 3%, o cálculo das taxas prefixadas mais longas partirão desse número. Se for de 4,5%, partirão de um número 1,5 ponto percentual maior. Uma meta maior, portanto, leva a uma taxa de juros nominalmente maior. Isso pode ser constatado hoje: mesmo com um quadro fiscal deteriorado, as taxas longas estão em cerca de 11% ao ano, muito mais baixas do que as taxas em grande parte do governo Dilma. Portanto, é o inverso do que se poderia esperar.

Meta mais alta de inflação é irmã da “flexibilização” do teto de gastos. Ambas são filhas da nossa falta de compromisso com a seriedade. Uma prima-irmã desse fenômeno é a resistência, em alguns círculos, à nossa adesão à OCDE, o que implica em adotar medidas “drásticas”, não compatíveis com a nossa “natureza”. É a visão de que o Brasil é um país vira-latas mesmo, que nunca alcançaremos o padrão de países mais desenvolvidos. Nem digo dos países ricos, um Chile já estaria de bom tamanho. Somos o país da malemolência, queremos ser sérios, mas não muito.

A fábula do articulador político

Neste curto artigo, Carlos Pereira faz picadinho da fama de Lula como grande articulador político, aquele que pode liderar um ”presidencialismo de conciliação”, no dizer do economista Nilson Teixeira. Mais uma fábula não suporta a luz fria da análise política. O que restará no final?

Os economistas do lado errado da economia

Meu amigo Cleveland Prates, o economista comunista mais neoliberal que conheço, enviou-me o link da notícia abaixo: uma entrevista do economista Antonio Correa de Lacerda ao portal GGN, de Luís Nassif, que dispensa apresentações. Lacerda é o presidente do Cofecon, Conselho Federal de Economistas, e já tivemos oportunidade de analisar suas, digamos, ideias, nessa página.

A reclamação de Lacerda e dos outros economistas envolvidos na entrevista é a preponderância de economistas ligados ao setor financeiro no debate de políticas econômicas no país. A imprensa buscaria somente esses economistas, deixando de lado aqueles ligados ao “setor real” da economia, que teriam muito a contribuir para o debate.

O problema é que os economistas que se formam na faculdade têm quatro caminhos: 1) trabalhar no setor financeiro ou em consultorias que atendem ao setor financeiro; 2) trabalhar no “setor real” em outras áreas que não economia; 3) trabalhar no governo ou 4) seguir carreira acadêmica. As empresas do chamado “setor real” simplesmente não têm um “departamento de economia”, pois não é este o seu core business. Por isso, normalmente, essas empresas recorrem aos seus bancos ou, eventualmente, contratam uma consultoria financeira, para desenhar cenários sobre os quais trabalham. Assim, os economistas que vão para a iniciativa privada normalmente trabalham no setor financeiro, pois o core business desse setor é, justamente, desenhar cenários para investir melhor o dinheiro.

Na verdade, a reclamação de Lacerda e seus colegas não é bem essa. O que os incomoda é a preponderância de economistas que têm uma visão mais ortodoxa da economia, aquela que diz que é necessário ter responsabilidade fiscal e que o crescimento econômico não vem com políticas mágicas, mas construindo um ambiente que atraia investidores. Faltaria consultar economistas como ele, que acreditam que um mundo melhor é possível, onde basta vontade política para que os agentes econômicos se comportem de acordo com os seus próprios livros texto.

Existe mais um componente nesta birra: a preponderância do setor financeiro na economia brasileira como um todo. Sou um engenheiro que foi abduzido pelo setor financeiro, assim como muitos de meus colegas. Lacerda certamente lamenta que o talento dos engenheiros seja empregado em algo que “não produz riqueza”, enquanto poderia estar a serviço do “lado real da economia”. Sem aqui entrar no mérito dessa dicotomia burra e sem sentido, é fato que o setor financeiro tem uma participação desproporcional na economia. Um retrato disso é a composição da bolsa: nada menos do que 24% do Ibovespa é formado por papeis do setor financeiro, sendo o setor mais importante da bolsa local. No S&P500, por exemplo, o peso do setor financeiro é de apenas 10%, nível que mais ou menos se repete em outras bolsas de países desenvolvidos.

Para entender por que isso ocorre, nos será útil observar a notícia abaixo, em que o presidente da Argentina, Alberto Fernández, reclama com o seu colega russo sobre o FMI. Putin, com o poker face que Deus lhe deu, deve ter pensado consigo mesmo: “o que este cara quer, dinheiro emprestado?”

Esse lamento de Fernández é da mesma natureza da reclamação da dependência do setor financeiro no Brasil. Não quer depender do FMI ou do setor financeiro? Simples: pague a sua dívida. O setor financeiro é hipertrofiado no Brasil porque vivemos em um país que se endividou para financiar planos grandiosos de desenvolvimento e um estado de bem-estar social nórdico. Claro, não conseguimos nem uma coisa e nem outra, mas os credores não têm nada a ver com isso, eles querem o dinheiro de volta.

Alguns poderão dizer que países ricos também têm dívidas gigantescas, e nem por isso o setor financeiro é predominante. Aí entra o segundo ingrediente dessa receita indigesta: somos um país pouco sério no trato da nossa dívida. Sempre encontramos um jeitinho de tungar os credores. O último movimento foi a postergação do pagamento dos precatórios, mas está longe de ser o único. A nossa história é marcada por pequenas e grandes intervenções que minaram, ao longo do tempo, a nossa credibilidade. Sem mencionar a inflação, que é a tungada por definição.

A julgar pelo que vem acontecendo recentemente e pelos “planos” dos candidatos a presidente, podemos contar que os “economistas ligados ao setor financeiro” continuarão sendo ouvidos por ainda muito tempo. Para desgosto de Lacerda e seus companheiros do “setor real”.

Justiça até o fim

Não conheço país que tenha os braços mais abertos a estrangeiros que o Brasil. Igual pode ser. Mais, não. No entanto, a julgar pela reportagem, viramos um país de xenófobos nazistas.

Um crime brutal contra um preto pobre, coisa corriqueira em nosso país violento e injusto, virou bandeira para que brancos “do lado certo da história” façam passeata pedindo “justiça”. Poucos dias depois do crime, em um país que elucida somente 8% de suas dezenas de milhares de assassinatos, três dos assassinos já estão na cadeia. Portanto, não é à justiça legal a que devem estar se referindo esses manifestantes. A sua pauta é bem mais ampla, pedem a justiça de um mundo moralmente mais justo e fraterno. Sabemos onde terminam essas boas intenções.

Os congoleses vivem no Brasil como todos os brasileiros de sua cor: têm dificuldade de encontrar moradia e emprego e sofrem preconceito. Nem a gozação com o sotaque é diferente: paulistas tiram sarro do sotaque de cariocas e vice-versa, baianos tiram sarro do sotaque de gaúchos e vice-versa, e assim por diante. Eu mesmo tirava sarro do sotaque de meus avós poloneses, que nunca aprenderam a falar direito o português. Seria eu um xenófobo?

Não me surpreenderia se fosse estabelecido um programa especial do governo para imigrantes africanos, com facilidades para conseguir moradia e emprego. Estaria sendo feita, assim, a “justiça até o fim”, pedida pelos manifestantes no MASP, que poderiam voltar justificados para as suas casas, pensando em como fizeram um mundo melhor. Enquanto isso, o brasileiro pobre, que teve o azar de não nascer em nenhum grupo “injustiçado”, vai continuar se ferrando todo dia para ganhar a vida, pois não tem ninguém para desfilar na Paulista pedindo justiça por ele. Verá mais um naco de recursos públicos sendo direcionado para grupos escolhidos a dedo pelos bem-pensantes.

O que importa é a estatística, o resto é narrativa

Duas histórias opostas me chamaram a atenção para a questão da vacinação infantil. A primeira refere-se à morte por parada cardíaca de uma criança, supostamente causada pela vacina contra Covid-19.

A segunda, em matéria do Estadão do dia 04/02, apresenta a história de uma criança supostamente vítima da Covid-19. 

Notem que coloquei a palavra “supostamente” nas duas causas de morte, o que já nos serve como porta de entrada para este artigo.

A palavra “supostamente” admite que um determinado fato seja possível, mas não se compromete com ele. Admite a possibilidade, mas relativamente remota, colocando uma sombra de suspeição sobre o fato. E cada um, desde o seu particular ponto de vista, ficará ou não revoltado com o uso da palavra. No exemplo acima, aqueles que acham que a vacina é um perigo, verão como um absurdo o uso da palavra “supostamente” para o óbvio fato de que a criança de Lençóis Paulistas morreu por causa da vacina, ao passo que avaliarão como adequado o uso da palavra ao qualificar a morte por Covid. Afinal, muitos morrem COM Covid e não DE Covid. E vice-versa, os que são favoráveis à vacina verão o “supostamente” bem colocado ao se referir à morte da criança de Lençóis Paulistas, pois o laudo médico garantiu que esta não foi a causa, ao passo que não aceitarão a palavra ao se referir à morte por Covid, pois esta também foi atestada pelo médico.

Não quero aqui, propositalmente, entrar na discussão científica deste ou daquele caso particular. Meu ponto é outro: essa discussão é irrelevante, ainda que ocupe o lugar principal no debate público. O que verdadeiramente importa é a estatística.

Os economistas geralmente são taxados de insensíveis e pouco empáticos, por teoricamente focarem-se somente nos grandes agregados e modelos gerais, e desprezarem as pessoas, suas histórias e sofrimentos particulares. E é verdade, ainda que isso não tenha nada a ver com empatia, mas somente com metodologia de trabalho.

É relativamente comum, em reportagens sobre grandes tragédias ou crimes, as vítimas reclamarem que não são cuidadas pelo governo, que viraram apenas uma estatística. Verdade. Cada ser humano importa e não deveria ser tratado como uma estatística fria. Mas a dura realidade é que se CADA ser humano é especial, segue-se que TODOS os seres humanos são especiais. E como não há recursos suficientes para tratar CADA ser humano de maneira especial, o que resta aos governos é tratar o CONJUNTO dos seres humanos da melhor maneira possível. E, para isso, não há outra maneira, a não ser tratar cada ser humano em particular como uma estatística. Quando isso não acontece, ocorre o que nós chamamos de PRIVILÉGIO. Como não há recursos para tratar a todos como especiais, alguns são escolhidos da multidão por critérios nem sempre transparentes.

Mas acredito que a aplicação de estatísticas para a elaboração de políticas públicas seja algo bem aceito, de bom senso. O que eu gostaria de demonstrar neste artigo é que a estatística é também a melhor forma de tomar decisões em nossa vida particular. Deveríamos admitir que não somos assim tão especiais quando se trata de fenômenos aleatórios. Nesse sentido, somos sim uma estatística.

Quando os economistas projetam cenários econômicos, costumam atribuir-lhes probabilidades. O cenário X tem 40% de chance de se concretizar, o Y 35% e o Z, 25%. Ocorre que, passado o tempo, apenas um desses cenários se concretizará, quando então a sua probabilidade passa a ser de 100%, enquanto as probabilidades dos outros cenários tornam-se zero. Aquele cenário que se concretizou “virou estatística”, que vai alimentar a confecção de novos cenários.

É neste ponto que a nossa mente nos trai. Uma história concreta faz com que aquela estatística (a probabilidade que se tornou 100%) ganhe uma chance em nossa mente muito maior do que realmente tem. Não é à toa que qualquer reportagem sempre traz uma história concreta, tornando a tese do repórter muito mais crível. Afinal, estatísticas são frias, histórias são quentes. Ocorre que as histórias magnificam a probabilidade de aquele fenômeno ocorrer conosco.

É bem estabelecido pela literatura acadêmica que a nossa mente lida com probabilidades de acordo com o viés de cada um. Em geral, eventos positivos, como ganhar a Mega Sena, assumem uma probabilidade muito maior na nossa mente do que realmente têm, ao passo que damos a eventos negativos, como ter um ataque do coração ou ser atropelado, probabilidade muito menor do que realmente têm. O viés político também influencia: anti-vacinas darão muito maior peso a estatísticas de mortes por vacinas do que mortes por Covid, ao passo que “coronalovers” farão o inverso.

O que deveríamos fazer para minimizar o erro de avaliação é simplesmente esquecer as histórias concretas e focar nas estatísticas. Se temos um amigo que tomou três doses da vacina e, mesmo assim, morreu de Covid, deveríamos transmitir os nossos mais profundos sentimentos à família, mas esquecer essa história particular para tirar conclusões. A história pode ser tocante, mas qual a estatística por trás? Essa é a questão relevante.

O que a estatística nos diz, por exemplo, sobre a vacinação de crianças, o exemplo usado no início deste artigo? No geral, de acordo com este estudo, publicado na Nature, a chance de uma pessoa qualquer desenvolver miocardite relacionada com a vacina da Pfizer é de 0,3-5,0 por 100.000 pessoas vacinadas (como referência, há 1-10 casos/100.000 de miocardite globalmente por ano). E isso não é morte, somente uma fração desse número vem a óbito. Por outro lado, a incidência de miocardite associada à Covid é cerca de 100 vezes maior, 1.000-1.400 para cada 100 mil pessoas. Ou seja, segundo este estudo, é 100 vezes mais provável desenvolver miocardite por Covid do que pela vacina.

No entanto, para crianças as conclusões não são tão preto no branco, mesmo porque, ainda estamos muito no início da vacinação nesta faixa etária globalmente. Este estudo, por exemplo, conclui que meninos entre 12-15 anos de idade e sem comorbidades, têm mais chance de desenvolver miocardite com a vacina da Pfizer do que com a Covid. Já com comorbidades, a chance é maior com a Covid. Talvez por isso, alguns países (ex.: Reino Unido) tenham indicado a vacinação infantil com vacinas de tecnologia mRNA apenas para crianças com comorbidades. No entanto, outros países (ex.: EUA, Canadá) recomendam a mesma vacina para todas as crianças. Ou seja, não há ainda um consenso científico aqui, talvez por falta de estudos conclusivos. Não encontrei estudo que focasse especificamente em crianças (confesso que não gastei muito tempo procurando).

O fato é que o cenário de óbito ou de sequela grave é muito raro em crianças sem comorbidades, tanto naquelas vacinadas (por causa da vacina) quanto nas não vacinadas (por causa da Covid). Por isso, qualquer evento, em si muito raro, é tratado como “o” caso que demonstra a tese.

Note que não estou negando que existam crianças que morram por causa da vacina ou de Covid. O que estou afirmando é que estes eventos não deveriam importar nada para a nossa decisão. O que importa é a estatística, o resto é narrativa.