A narrativa e a realidade

Há alguns anos, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Aswath Damodaran. Para quem não é do meio, Damodaran é uma especie de “papa do valuation”, que é a arte de estimar o valor de uma empresa. Damodaran é professor da Universidade de Nova York e autor de vários livros na área, usados por cursos de administração no mundo inteiro.

Naquela palestra, Damodaran fez um exercício de valuation do Uber. Para tanto, desenhou vários cenários possíveis, que nós poderíamos chamar de “narrativas”. Cada uma daquelas narrativas levava a um valor da empresa completamente diferente. Não lembro exatamente dos números, mas a dispersão dos resultados era da ordem de dezenas de bilhões de dólares. Então, a depender da fé do analista em uma ou outra narrativa, a empresa podia valer quase nada ou uma fortuna.

Antes de continuar, é bom deixar claro que o valor de uma empresa, no final do dia, depende da sua geração de lucros ao longo do tempo. A narrativa faz o papel de convencer os investidores de que haverá lucros no futuro em tal e tal montante.

Aqui entra o papel da publicação de balanços das empresas. Na época, o Uber não tinha capital aberto e, portanto, não publicava balanços trimestrais. Para empresas listadas em bolsa, os balanços trimestrais servem como uma espécie de “check point” para que os analistas comparem os resultados reais com a sua própria narrativa. Claro, quanto mais no futuro estiver a promessa de retornos, mais paciência os analistas terão com resultados ruins de curto prazo. Por outro lado, quanto mais madura for uma empresa, mais importância ganha o balanço.

Depois deste longo preâmbulo, chegamos ao caso da Americanas, que chocou o mercado financeiro nesta semana. Não vou aqui entrar nas tecnicalidades ou de quem seria a culpa. O ponto é que, ao que parece, o balanço da empresa, nos últimos anos, não refletia a sua real lucratividade. Portanto, não servia como um “check point” adequado para conferir a narrativa.

Todos os grandes escândalos financeiros sempre foram encobertos por algum tempo com base em contabilidade, de alguma maneira, fraudada ou inconsistente. Estou agora assistindo à mini-série sobre Bernie Madoff, que aplicou um golpe de dezenas de bilhões de dólares contra investidores. Madoff forjou, durante anos, toda a contabilidade de seus investimentos. A bolha do subprime, de alguma forma, foi ignorada, durante um certo tempo, pela dificuldade de contabilização dos imóveis, dos contratos imobiliários e de seus derivativos. A ”contabilidade criativa” do governo Dilma nada mais foi do que usar truques contábeis para varrer o déficit primário para debaixo do tapete.

Uma velha anedota conta de um empresário que estava selecionando um contador. Para testar os candidatos, perguntava quanto era 2 + 2. Todos os candidatos que respondiam “4” eram eliminados. O primeiro que respondeu “quanto o senhor quer que dê?” foi contratado. A contabilidade tem essa aura do “jeitinho”, pois são inúmeros os critérios possíveis de contabilização, cada um deles chegando a resultados diferentes. Por isso, uma das grandes missões dos xerifes do mercado é uniformizar regras de contabilização, de modo que a contabilidade reflita a realidade econômica da empresa.

O caso da Americanas, ao que parece, é um daqueles em que a contabilidade não refletia a realidade econômica. De repente, como um choque, a realidade econômica chegou e se impôs. Sempre acontece. Não é uma questão de ”se”, mas de “quando”. Isso ocorre nos mais variados âmbitos, desde situações familiares, passando pelas empresas até chegar na economia dos países. A narrativa pode ser muito bonita, a contabilidade pode não ser transparente o suficiente para indicar problemas, mas a realidade econômica, mais cedo ou mais tarde, vai bater à porta. É o momento ”o rei está nu”, em que famílias, empresas e países são confrontados com a sua própria inviabilidade, e precisam reestruturar-se, por bem ou por mal.

PS.: a contabilidade das finanças públicas no Brasil melhorou muito nas últimas décadas, de modo que sabemos, com razoável precisão, o estado em que nos encontramos. Mas isso, ao que parece, não tem sido o suficiente para desmentir narrativas pouco aderentes à realidade econômica. No final, adivinha o que irá prevalecer.

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