Foi ou não foi tentativa de golpe?
Espantalhos são úteis como palavras de ordem que aglutinam paixões, enquanto desviam o foco das questões realmente relevantes. O espantalho do “golpe de estado” é tão real (e tão útil) quanto o espantalho do “comunismo”. Vamos focar aqui no primeiro, que está na ordem do dia.
Cantanhêde, e boa parte da intelligentsia brasileira, parece acreditar piamente que escapamos por um triz de um golpe militar a la 1964. Seria cômico se não fosse trágico. Essa crença ignora a dinâmica do golpe de 64, em que todas as forças institucionais do país concorreram para a deposição de Jango, no contexto global da Guerra Fria. Os militares simplesmente compuseram com as instituições, em um movimento elogiado pelos grandes órgãos de imprensa. Sério que querem comparar aquilo com Bolsonaro e seus camisas pardas?
A frase “golpe nunca mais!” e as condenações do STF colocam a intelligentsia brasileira e os lunáticos de Bolsonaro no mesmo nível: ambos os lados realmente acreditam que estávamos à beira de um golpe de estado liderado pelos militares.
Os auto-intituladas democratas do país davam risada (e com razão) dos acampamentos em frente aos quartéis, geradores de abundantes memes. Afinal, aquilo era nada mais que folclórico. A diferença concreta dos acampamentos para os eventos de 08/01 é que as poltronas dos ministros do Supremo foram quebradas, o que mereceria pena de morte, se houvesse essa previsão em nosso ordenamento jurídico. Aqueles eventos não avançaram um milímetro na direção de um golpe militar, a não ser na cabeça da Cantanhêde e dos lunáticos. E esse ponto é importante.
Aquela multidão realmente achava que estava provocando a reação dos militares. São abundantes as referências a uma suposta “intervenção militar”. Aliás, não é de hoje. Faixas pedindo intervenção e com os dizeres “eu autorizo” eram frequentes nas manifestações em apoio a Bolsonaro. Os acampamentos em frente aos quartéis fazem parte desse quadro. Nesse sentido, a condenação se explica: afinal, não é a impossibilidade concreta de cometer um crime que absolve a tentativa. Os acampamentos e a invasão tinham como objetivo a intervenção militar, por mais doidivanas que possa parecer. Portanto, na cabeça daquelas pessoas, havia sim um crime tipificado sendo executado, e não foi só a depredação, o que justifica a condenação.
O tom patético da coisa se dá pelo auto-nivelamento da intelligentsia (STF incluído) com o bolsonarismo mais rasteiro, ambos acreditando piamente que um golpe de estado estava no forno. Os champions da democracia se regojizam, como se combater o bolsonarismo fosse o suprassumo da defesa do Estado Democrático de Direito. Infelizmente, não existe crime de imbecilidade, que seria a tipificação correta para o caso. Então, que seja pelo crime de atentado às instituições democráticas, que, de fato, era a intenção. Mas, pelo menos, poderiam nos poupar do ridículo de elevar o caso a uma questão de vida ou morte para a democracia brasileira.
PS.: parabéns para a Justiça brasileira, que mostrou uma celeridade exemplar neste caso. Espero que seja a nova norma para o trâmite dos processos que não envolvam a quebra das poltronas dos ministros do Supremo.