Um plano com a cara do Brasil

Finalmente, habemus arcabouço fiscal! Faltam ainda muitos detalhes, que somente serão conhecidos após a apresentação do projeto de lei. Portanto, o que vai a seguir é somente o que foi possível deduzir de uma apresentação em Powerpoint e de algumas poucas palavras do ministro Haddad durante a apresentação.

De toda a apresentação (aliás, a piada que corre no mercado é que, desde Eike Batista, essa era a primeira vez que alguém estava tentando enganar o mercado com um Powerpoint), apenas um slide, dos 12 da apresentação, traz a regra fiscal. Ou seja, ainda faltam muitos detalhes, que devem vir com a publicação do projeto de lei. A análise a seguir, portanto, conta com certas premissas que somente serão confirmadas quando sair o texto definitivo da lei.

O slide a que me referi é o seguinte:

O plano tem, basicamente, duas partes:

  • Um “compromisso” de superávit primário e
  • Uma regra de evolução de despesas (o novo “teto de gastos”)

Foquemos, inicialmente, na regra, que diz o seguinte: as despesas do ano seguinte crescerão, em termos reais, o equivalente a 70% do crescimento das receitas nos últimos 12 meses, também em termos reais. Estes “últimos 12 meses” referem-se sempre ao período de julho de um ano até junho do ano de referência, da mesma forma que o teto de gastos originalmente previa. Assim, as despesas de 2024 crescerão tendo como base o crescimento de receitas entre julho de 2022 e junho de 2023. Vale lembrar que esse período foi modificado, no caso do teto de gastos, para janeiro-dezembro, em uma das muitas mutilações que a regra do teto sofreu durante o governo Bolsonaro. Portanto, a depender da conjuntura, esse período poderá ser modificado também.

Além disso, esse crescimento real de despesas tem um piso e um teto, 0,6% e 2,5%, respectivamente. Acresça-se que, se o objetivo de superávit primário tiver ficado abaixo do piso da banda no ano anterior, o crescimento das despesas estará limitado a 50% das receitas, e não mais a 70%. Vamos ver uma tabelinha que resume a regra:

Crescimento de receitas no ano anteriorCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário for atingidoCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário não for atingido
-1%0,6%0,6%
0%0,6%0,6%
1%70% x 1% = 0,7%0,6%
2%70% x 2% = 1,4%50% x 2% = 1,0%
3%70% x 3% = 2,1%50% x 3% = 1,5%
4%2,5%50% x 4% = 2,0%
5%2,5%50% x 5% = 2,5%
6%2,5%2,5%

A regra, portanto, é bem mais frouxa e complexa do que o teto de gastos, que previa crescimento real zero de despesas em qualquer cenário. A questão é: qual o efeito disso sobre as contas públicas?

Para entender, é preciso assumir algumas premissas.

  1. Para o crescimento do PIB, taxa Selic e IPCA, vamos usar inicialmente os números do relatório Focus até onde estes existem (2027), e depois vamos repetir os números de 2027 até 2030.
  2. Também vamos usar o Focus como premissa para o déficit de 2023 (-1%).
  3. Precisamos de uma premissa para o crescimento das receitas. Vamos usar uma elasticidade crescimento de receitas / crescimento do PIB de 2 (para cada ponto percentual de crescimento real do PIB, teremos um crescimento real de receitas de dois pontos percentuais). Quando maior for este número, mais fácil será atingir os objetivos determinados pelo plano. Assumi 2 porque é um número que parece ser o mais prevalente, conforme o gráfico abaixo. Obviamente, a elasticidade pode variar muito de ano para ano em função de receitas extraordinárias, mas é preciso assumir alguma premissa para trabalharmos.

Com as premissas vistas acima em mãos, vamos fazer o cálculo do superávit primário alcançado ao longo dos anos. É o que podemos ver no gráfico abaixo, que chamo de Cenário 1:

Observe como, com as premissas adotadas, a meta de superávit primário do plano seria alcançado somente em 2030 (estou assumindo que o próximo governo adotaria a mesma meta de superávit primário). Até 2026, que é o horizonte do governo, o superávit primário fica muito distante da meta.

Vamos analisar um segundo cenário, em que assumimos um aumento permanente de receita da ordem de 1% do PIB a partir de 2024, mantendo tudo o mais constante. Teríamos o seguinte:

Aí está o truque: para cumprir a meta de superávit primário proposta, é preciso aumentar a receita em 1% do PIB, ou cerca de R$ 100 bilhões a mais de arrecadação por ano. Resta saber quem vai pagar a conta.

Vamos agora simular um terceiro cenário, em que tiramos esse aumento de carga tributária e introduzimos um ano de recessão de -1% em 2024, mantendo todos as outras premissas constantes. Vejamos:

Observe como uma recessão (ou um crescimento mais baixo) faz com que o superávit primário se afaste de maneira dramática do objetivo. Isso acontece porque as despesas continuam crescendo, independentemente da atividade econômica. No final, lá em 2030, o superávit primário é recuperado porque as despesas passam a crescer somente à razão de 50% das receitas enquanto a meta não é recuperada. Aliás, essa é a virtude desse plano, ou de qualquer plano que tenha controle de gastos: se obedecido, mais cedo ou mais tarde se consegue gerar superávits primários, desde que o país cresça.

Finalmente, vamos a um quarto cenário, em que combinamos a recessão com o aumento permanente da carga tributária em 2024:

Note que, neste cenário, o objetivo somente seria alcançado em 2027.

Agora, vamos ao que interessa: o que aconteceria com a trajetória da dívida pública em cada um desses cenários? É o que veremos a seguir:

Observe como a relação dívida/PIB só se estabiliza e começa a cair nos cenários em que ocorre o aumento da carga tributária. Essa é a ideia do plano: uma mistura de controle de gastos com aumento de receitas. Sem esse último ingrediente, a dívida não se estabiliza.

De alguma forma, há que se concordar que esse plano fiscal tem mais a cara do Brasil do que o teto de gastos. Somos uma sociedade que exige todo tipo de direito que, no final das contas, só podem ser pagos com mais arrecadação. Essa coisa de cortar gastos não está em nosso DNA, e o teto de gastos fracassou porque não considerou este traço brasileiro. Queremos mais direitos, e o plano do governo do PT tem o mérito de explicitar o custo dessa escolha da sociedade brasileira.

Uma última consideração. O arguto leitor terá notado que o item 4 do Powerpoint prevê que “excedentes” dos superávits primários produzidos ao longo do tempo poderão ser usados para investimentos. Então, uma simulação que podemos fazer é qual seria a trajetória da dívida se o superávit primário tivesse um teto de 1% do PIB, sendo todo o excesso investido. A resposta está no gráfico abaixo:

Se não deixarmos o superávit crescer além de 1% do PIB, a dívida pública não converge, considerando as premissas de PIB, inflação e taxa de juros do Focus para os próximos anos.

Claro, sempre alguém poderá argumentar que, se o excedente for utilizado “corretamente” para investimentos, o país vai crescer mais, permitindo a redução da dívida. Seria uma espécie de “troca” entre superávit primário e investimentos. Já tentamos isso em um passado não muito distante, e não deu muito certo. Quem sabe agora vai.

ERRATA: esta é a 2a versão deste post. Na 1a, havia usado uma relação dívida/PIB de 76,0% em 2022, quando, na verdade, a relação dívida/PIB havia fechado em 72,9%, o que mudou o nível dos gráficos de dívida/PIB, mas não a sua trajetória, que é o que importa.

O substituto do teto de gastos

Depois de meses de discussões, essa é a primeira vez que vaza alguma coisa concreta sobre o novo “arcabouço fiscal”, que irá substituir a regra do teto de gastos. Este é um primeiro comentário, outros virão na medida em que os detalhes (onde, como sabemos, mora o tinhoso) forem sendo conhecidos.

Por enquanto, a única coisa que sabemos é que haverá um… teto de gastos. O critério, porém, é pior. Ao atrelar as despesas às receitas, a nova regra torna-se pró-cíclica: quanto mais o PIB cresce, mais crescem as receitas e, portanto, maior o espaço para gastar. E vice-versa, se temos um crescimento menor do PIB, ou mesmo uma recessão, menor o crescimento de receitas e, portanto, diminui o espaço para o crescimento de despesas. Na regra anterior, as despesas cresciam nominalmente, independentemente do crescimento do PIB. Assim, quando o PIB crescia menos, as despesas passavam a representar uma fatia maior do PIB, em um movimento contracíclico.

Mauro Benevides, deputado do PDT e unha e carne com Ciro Gomes, afirmou que o caráter anticíclico da nova regra estaria na diferença de 70% do crescimento das despesas para 100% do crescimento das receitas, o que permitiria fazer um ”colchão” no tempo das vacas gordas para gastar no tempo das vacas magras. O problema é que essa dinâmica colide com um dos gatilhos mencionados na reportagem, em que o limite de despesas baixaria a 50% do crescimento das receitas no exercício seguinte em caso de extrapolação do limite de 70% no exercício anterior. Ou seja, o limite de despesas diminuiria ao invés de aumentar, em caso de fraco crescimento do PIB e consequente diminuição de receitas. Entre o repórter e o deputado, alguém não entendeu a regra.

Por fim, parece que haverá metas para o superávit primário. Não ficou claro, do que vazou, se essas metas são somente projeções ou serão restrições que acionarão gatilhos. Neste último caso, teríamos redundância de regras, e não seria realmente necessário ter regras de despesas. Vivemos durante 15 anos produzindo superávits primários sem a necessidade de regras de controle de despesas. Quando as receitas desabaram, a partir de 2013, os superávits sumiram. Qual a chance de qualquer regra de limite de despesa para preservar o superávit primário sobreviver a uma desaceleração forte do PIB? Despesas públicas são, por natureza, incomprimíveis, são como contratos com a sociedade, ninguém aceita abrir mão de “direitos adquiridos”. A regra de teto não sobreviveu quando mais precisávamos dela, e o mesmo vai ocorrer com qualquer regra de limitação de despesas quando a porca torcer o rabo.

As metas de superávit declaradas pelo governo são dacronianas perto do que se alcançaria com a finada regra do teto. Ou seja, a considerar essas metas, a nova regra seria ainda mais dura do que o teto de gastos. A não ser que tenhamos um brutal aumento de carga tributária.

A demonização como modus operandi

Eliane Cantanhêde nos traz insights de uma conversa que teve com Haddad. Dois pontos me chamaram a atenção.

O primeiro foi o reconhecimento de que o PROER, um programa para resgatar bancos em dificuldades após o fim da hiperinflação, foi importante para a solidez atual do sistema bancário brasileiro. Na época, o PROER foi demonizado incansavelmente pelo PT. É bom ver um prócer do partido reconhecendo a importância do programa. Antes tarde do que nunca.

Aliás, a prática do PT é essa: demonizar políticas impopulares, mas colher os seus frutos sem conceder o mérito. Foi assim com o Plano Real, PROER, LRF, sistema de metas de inflação, BC independente. O teto de gastos era para ser mais uma dessas políticas, se não tivesse sido desmoralizado pelo governo Bolsonaro. É bem capaz de o “novo arcabouço fiscal” incluir uma regra mitigada de teto de gastos. Receberá outro nome, mas o princípio será o mesmo, de modo que o PT possa continuar a demonizar o teto sem deixar de colher seus frutos.

O segundo ponto da coluna que me chamou a atenção foi a máxima de que “o objetivo não é aumentar alíquotas, é fazer quem não paga passar a pagar”. Não pude deixar de sentir uma sensação de deja vu, lembrando de uma entrevista no Roda Viva do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, nas vésperas do lançamento do Plano Real, em que o xará do atual ministro diz exatamente a mesma coisa. O resultado, ao longo do governo FHC, foi o aumento da carga tributária. E, adivinha, quem ganha mais continua pagando menos.

Para quê controlar gastos?

Felipe Salto escreve novamente sobre a sua proposta de arcabouço fiscal, agora com mais detalhes. O controle se daria para o nível da dívida em relação ao PIB. Haveria uma meta mais ou menos frouxa até 2026 (crescimento de 9 pontos percentuais em relação ao nível de 2022), e depois uma convergência suave nos 10 anos seguintes para um nível ainda 2 pontos percentuais acima do nível alcançado em 2022, e cerca de 20 pontos percentuais acima do nível que tínhamos quando ganhamos o selo de Grau de Investimento. Salto chama esse ajuste de “esforço fiscal relevante”, mas sem um “ajuste brusco”, pois isso não seria possível.

Na sugestão se Salto, já levada ao ministro Haddad, há um teto móvel de gastos, ajustado por metade do crescimento do PIB dos 5 anos anteriores. A rigor, essa regra seria desnecessária, dado que a meta é a relação dívida/PIB, e que pode ser atingida simplesmente aumentando impostos ou recorrendo a receitas extraordinárias, como privatizações. Mas Salto sabe que a credibilidade de qualquer arcabouço, hoje, passa por alguma regra de controle de despesas. Os outros componentes da dinâmica da dívida (juros reais, crescimento do PIB e inflação) estão além do poder de controle do governo.

Aliás, esse é o problema fundamental da proposta de Salto, e que já tive oportunidade de comentar aqui: estabelecer como meta a relação dívida/PIB sem que o governo não consiga, efetivamente, controlar todas as suas variáveis, é o equivalente a não controlar nada. O mercado vai simplesmente ignorar essa meta e focar na regra de controle de gastos para fazer as suas contas. Resta saber qual será a reação de Lula quando lhe for sugerido um teto de gastos, mesmo que mitigado. Não à toa, Salto sugere um espaço de 9 pontos percentuais de crescimento da dívida/PIB até 2026. Assim, o governo Lula teria menor pressão de controle, e deixaria o abacaxi para o seu sucessor. O qual, claro, continuaria a empurrar o problema com a barriga. Claro, se a coisa toda não explodir antes.

Não me espantaria, inclusive, se houvesse, por exigência de Lula, uma espécie de “waiver” nessa nova regra do teto até 2026, desde que se cumprisse essa trajetória de dívida/PIB. Ha mais formas de atingir essa meta, além de controlar gastos. Por exemplo, baixando juros por decreto. Assim, as despesas com juros diminuiriam e, de quebra, teríamos inflação mais alta, o que também reduziria a relação dívida/PIB. Quem disse que, para controlar a dívida, precisa necessariamente controlar gastos?

O artigo de Juca Kfouri para Lula

Juca Kfouri escreveu em seu blog sobre o Santos. Pede paciência para a torcida, enquanto o presidente “arruma o alicerce”, para depois construir a parede e o telhado. Sua tese: o Santos não voltará a ser o Santos enquanto estiver endividado.

Juca Kfouri está certo. Está tão certo, que, tenho certeza, não se furtaria a escrever para o seu presidente do coração, Lula.

Kfouri poderia escrever algo assim:

“O Brasil não voltará a ser o Brasil enquanto estiver endividado.

Por menos que os tapados queiram entender, assim é e assim será.

O presidente do Brasil precisa fazer a única política que resolve o problema: arrumar o alicerce para construir as paredes e, depois, o telhado.

Lula pode até fazer umas obras agora, como pedem os economistas desenvolvimentistas e o Centrão. O país vai fazer um brilhareco, como já fez no passado, quando cresceu por algum tempo e até convenceu a Economist de que era o país do presente.

Em seguida, lembremos, enfrentou a maior recessão da história.

O Brasil é grande o bastante para viver um pouco mais a sua história.

Não pode é viver numa montanha russa e, para tanto, precisa fazer o que Chile, Colômbia e México fizeram.

Com paciência e a consciência de que se trata de um trabalho de longo prazo.

Tem luz no fim do túnel.

Basta que os fanáticos imediatistas não a apaguem”.

Não. Juca Kfouri não vai escrever este artigo para Lula. A disciplina financeira é coisa que serve só para clubes de futebol. Para países, disciplina fiscal é coisa de banqueiro insensível, que não enxerga as necessidades do povo. O povo quer títulos, craques, um futebol bonito. Vamos gastar tudo e mais um pouco, porque o povo merece.

Emagreça dormindo

Não é a primeira vez que leio um artigo comparando um possível novo arcabouço fiscal com o regime de metas de inflação. Felipe Salto volta ao tema, propondo um regime de “metas de dívida pública”, a exemplo do exitoso regime de controle da inflação.

Só tem um pequeno problema nessa comparação: o BC é independente, e coloca a taxa de juros onde acha necessário para levar a inflação de volta à meta. Salto não menciona a necessidade dessa agência independente, guardiã do valor da moeda. Quem será a autoridade que implementará os ajustes necessários para garantir a convergência da dívida pública para a meta? O próprio governo? O Congresso, muitas vezes sócio do Executivo na gastança? Será o lobo tomando conta do galinheiro?

Salto, assim como outros que defendem a ideia, quer um arcabouço suficientemente flexível para suportar choques, mas que conte com regras que conquistem a credibilidade do mercado. O sistema de metas de inflação não é isso. Nesse sistema, a credibilidade emana do Banco Central, não de regras. O BC não segue regras pré estabelecidas para determinar as taxas de juros. O BC avalia a situação a cada momento e determina o nível de juros que acha mais adequado. E, o mais importante, conta com credibilidade junto aos agentes econômicos, que acreditam que a autoridade monetária fará, a cada momento, hoje e no futuro, o necessário para trazer a inflação para a meta.

Na falta dessa autoridade crível, um sistema de “metas de dívida pública” precisaria contar com regras. E regras, por definição, devem ser não discricionárias para funcionar, ou seja, devem ser cumpridas independentemente da vontade de quem as implementa. E, por definição, e esse é o ponto importante, regras são regras. Regras “flexíveis” são flexíveis somente até um determinado ponto. Caso contrário, deixam de ser regras. Uma barra flexível para exercícios físicos tem a capacidade para se sobrar, mas só até certo ponto. Quando chega neste ponto, a barra (a regra) se torna rígida, e voltamos ao ponto inicial, em que o governo se vê às voltas com uma regra que não consegue cumprir. É só uma questão de tempo.

O que Felipe Salto e outros que escrevem na mesma linha querem é uma especie de dieta sem esforço. “Emagreça dormindo” é o nosso sonho de consumo. A comparação com o sistema de metas de inflação serve só para tomar emprestado verossimilhança de algo que funciona, sem que haja a mínima condição para implementar algo semelhante.

Mais uma proposta para o teto de gastos

Felipe Salto, atual diretor-geral da Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado Federal, entra no debate sobre como reancorar as expectativas sobre a trajetória da dívida pública. A mudança casuística da sua regra de cálculo no ano passado e o discurso do PT contra o teto demonstram que a regra atual está morta, faltando somente o enterro.

Ao contrário de outra proposta que já tive oportunidade de comentar aqui, que propunha como parâmetro um etéreo “PIB corrigido pelo ciclo econômico”, além de prever exceções – por exemplo, investimentos- a proposta de Salto tem o mérito de ser simples, direta e de fácil entendimento por todos: estabelecida uma determinada meta de superávit primário necessária para atingir uma certa relação dívida/PIB, calcula-se o teto de gastos com base em uma determinada previsão de receitas. Ele dá um exemplo numérico, reproduzido abaixo.

A ideia, como eu disse, é boa por ser simples e de fácil entendimento. No entanto, como sempre, o diabo mora nos detalhes. Dois detalhes, para ser mais exato.

O primeiro é saber qual a condição limitante, ou seja, aquela que não será mudada aconteça o que acontecer. Digamos que haja uma frustração de receitas. O que seria mudado, o tamanho dos gastos ou a meta de superávit primário? Tomando o exemplo usado por Salto: se as receitas somarem R$ 1.800 bilhões ao invés dos R$ 2.000 bilhões previstos no início do ano, o ajuste se daria pela diminuição dos gastos para R$ 1.750 bilhões ou do superávit para menos R$ 150 bilhões? A resposta técnica seria manter o superávit e cortar gastos. A resposta política já sabemos qual é.

O segundo detalhe, que na verdade é O problema central de todo esse imbróglio, é que a proposta de Salto, para funcionar, precisa ser ainda mais draconiana que o atual teto de gastos. A previsão de déficit primário para este ano é de 0,7% do PIB. Para apontar para um superávit primário em um horizonte de tempo explícito e crível, seria preciso fazer um ajuste fiscal ainda maior do que o atual. A solução política, obviamente, será apontar para um ajuste beeeeeem suave, a lá Macri na Argentina.

A grande sacada do atual finado teto de gastos é tirar da mão dos políticos e da sociedade a decisão sobre os parâmetros que comandam a trajetória da dívida. A regra, se seguida, garante matematicamente, se o país tiver crescimento positivo, que produziremos superávits primários e estabilizaremos a dívida em algum momento no futuro. Para um país como o Brasil, que cresce pouco (1% ao ano), este ajuste é bem suave, mas aceito pelos credores, porque a regra garante a convergência. Mas mesmo esse ajuste suave não se mostrou suportável para os políticos e para a sociedade, que querem retomar para si o comando dos parâmetros da dívida.

A proposta de Salto permite a retomada desse comando, ao deixar para a decisão discricionária do Congresso como vamos controlar a dívida, se por aumento de impostos ou diminuição de despesas, e em que velocidade vamos colocar a casa em ordem. Alguém dirá que esta é a coisa certa a fazer. Afinal, é a sociedade, através de seus representantes, que deve decidir sobre como e quando pagaremos a nossa dívida. Justo. Só falta combinar com os russos.

De fato, o orçamento público não é como o orçamento privado

O economista Antônio Correa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, nos lembra que a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico não se aplica, porque o Estado tem “funções e prerrogativas próprias”. De onde se conclui que o Estado pode gastar mais do que arrecada, se for com o objetivo de cumprir suas “funções e prerrogativas próprias”.

Nem economista sou, quem sou eu para discutir com o representante máximo dos economistas brasileiros. Ele deve ter razão, afinal é professor-doutor da matéria. Mas, como todo aluno aplicado, fico cá com minhas dúvidas.

Economistas como Lacerda defendem que o Estado pode sim se endividar de maneira ilimitada, porque seus gastos teriam um “efeito multiplicador” na economia. Ou seja, gerariam impostos suficientes para pagar a dívida lá na frente. Seria preciso apontar para um “equilíbrio intertemporal”, em que os investimentos de hoje serão os impostos de amanhã, garantindo, assim, o equilíbrio da dívida pública e, de quebra, fazendo “a roda da economia girar”.

Claro que não é assim tão simples, e tenho certeza que Lacerda concordaria comigo. É preciso que esses gastos sejam “de qualidade”. Não adianta, por exemplo, contratar pessoas para cavar buracos e depois enterra-los. Isso não vai gerar o “efeito multiplicador” desejado, vai só queimar mais dinheiro, gerando mais dívida pública.

E é nesse “gasto de qualidade” que mora o problema. Lacerda não vai me desculpar, mas vou usar um exemplo de economia doméstica. Imagine uma família que gasta mais do que ganha e já altamente endividada. O marido, então, ao invés de cortar gastos, decide abrir uma barraquinha de pastel na feira. O raciocínio é simples: com esse investimento, vamos ter lucro suficiente para pagar o investimento e ainda cobrir o buraco dos gastos correntes da família. É óbvio que, para que o plano dê certo, é preciso que este investimento seja “de qualidade”. Ou seja, que realmente gere lucro.

Ocorre que, quase que por definição, os gastos do governo são de péssima qualidade. Os gastos de “boa qualidade”, aqueles que geram retornos suficientes, normalmente já são realizados pela iniciativa privada. Sobra só a carne de pescoço, disputada por grupos de interesses que têm a eficiência do investimento como último critério de escolha, quando têm.

Lacerda e seus companheiros, além de defenderem o “efeito multiplicador” dos gastos públicos, costumam brandir o argumento das “externalidades positivas”. Ou seja, um investimento pode não ter retorno em si, mas ajudará outros agentes econômicos que não pagam pelo investimento. O exemplo clássico é o da estrada que não tem fluxo suficiente para pagar o investimento em sua manutenção, mas que supostamente beneficia indiretamente as populações das cidades que são por ela ligadas. Tenho uma certa dificuldade em entender como uma estrada por onde não passa ninguém beneficia alguém, mas vá lá, digamos que seja assim. Mesmo nesse caso, em que a externalidade supostamente alavanca a arrecadação de impostos, é preciso que o investimento seja feito com critério, para maximizar as externalidades positivas. Como esse é um exercício dificílimo de ser feito, não surpreende que também acabe refém de decisões políticas.

De fato, a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico é inadequado, mas não porque o Estado tenha “prerrogativas e funções que lhe sejam próprias”. O orçamento público é diferente porque o Estado tem a prerrogativa de se endividar sem limites, pois tem o monopólio da emissão da moeda na qual são, por lei, feitos os gastos. Assim, as famílias, que não podem emitir seu próprio dinheiro, precisam ajustar o seu orçamento. Já o Estado, que pode captar dinheiro sem limite, não precisa se ajustar. Esqueça toda essa história de “efeito multiplicador” e “externalidade positiva”, não é disso que se trata, mas de abusar do poder de monopólio sobre a moeda.

Isso funciona se os financiadores da dívida não têm para onde escapar e há excesso de poupança privada. Caso contrário, a única forma de se financiar é rodar a maquininha, desvalorizando a própria moeda. Se uma família faz isso, vai presa. Se o Estado faz isso, o máximo que acontece é o governo de plantão não ser reeleito ou ser impichado, em função da inflação e do baixo crescimento gerados.

De fato, o Estado não pode ser comparado com uma família: nós não temos como produzir inflação para pagar nossas contas.

Equilíbrio fiscal verdadeiro

“Equilíbrio fiscal verdadeiro”.

Desde o “é proibido gastar” do discurso de inauguração do mandato de Tancredo Neves (lido pelo vice, José Sarney, dado que Tancredo encontrava-se hospitalizado), todos os governos da Nova República fazem juras de amor ao “equilíbrio fiscal”.

Destaquei abaixo três trechos de jornais antigos para ilustrar o ponto. O primeiro é do início do governo Sarney, em 1985, quando o então ministro Francisco Dornelles anuncia um pacote de “austeridade”.

O segundo, de um ano depois, mostra o então ministro Dilson Funaro prometendo “equilíbrio dos gastos públicos”.

Já o terceiro indica a expectativa com o Plano Bresser, que seria anunciado alguns dias depois, em junho de 1987: esperava-se “comprimir drasticamente as despesas públicas”.

Poderia continuar empilhando notícias, ano após ano, governo após governo, de promessas de “equilíbrio fiscal”. Talk is cheap, como dizem os americanos.

Agora, Ciro promete um tal de “equilíbrio fiscal verdadeiro”, o que pressupõe que o que estamos vivendo hoje é um falso equilíbrio fiscal. E o que nos está condenando a este “falso equilíbrio fiscal”? Claro, “essa ficção fraudulenta chamada teto de gastos”.

Equilíbrio fiscal é algo relativamente simples: o governo, em todas as suas esferas, precisa gastar menos do que arrecada. Há somente duas pontas: gastos e arrecadação. Se o teto de gastos é uma forma fraudulenta de atingir o equilíbrio fiscal, resta a ponta da arrecadação. Aqui é que entra o pensamento mágico, aquele que anima todas as propostas desse tipo: aumentar a arrecadação passa por “taxar os mais ricos” e “estimular o crescimento econômico”.

Como, cedo ou tarde, os governos descobrem que “taxar os mais ricos” é uma quimera e o “crescimento econômico” não costuma responder a grandes planos mirabolantes desenhados nos gabinetes de Brasília, o equilíbrio fiscal acaba sendo alcançado pelo truque mais manjado da história econômica brasileira: inflação.

O teto de gastos é a única forma honesta de se alcançar o “verdadeiro equilíbrio fiscal”. Fraudulento é Ciro Gomes, não o teto.

Método de emagrecimento ajustado ao ciclo psíquico

A jornalista Adriana Fernandes dá a sua contribuição para o debate eleitoral do ponto de vista do modelo de controle fiscal a ser adotado pelo país. Pena que seja a contribuição de alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe bem onde.

A tese central da jornalista é de que a regra do teto de gastos, da forma como está hoje, é inexequível, e dá margem a “pedaladas fiscais”, como foi o caso dos superávits primários. Portanto, seria necessária uma regra mais “flexível”, mais “moderna”, que fosse passível de ser cumprida e, ao mesmo tempo, contasse com a confiança dos credores da dívida pública. O que dizer?

Bem, em primeiro lugar, a regra dos superávits primários (que nunca foi escrita!) durou nada menos do que 15 anos! Portanto, não era tão inexequível assim. Na verdade, foi possível cumprir a regra enquanto as receitas do governo aumentavam 5% reais ao ano, cavalgando no crescimento global puxado pela China. Quando o mundo desacelerou, o governo Dilma até que tentou segurar o crescimento das despesas, mas sabe como é… Desse, modo, a regra dos superávits primários tornou-se “inexequível”, dando origem às pedaladas.

Portanto, essa história de uma regra ser ”exequível” ou “inexequível” é apenas uma outra forma de dizer que o Estado brasileiro tem pouquíssima flexibilidade para reduzir a velocidade de aumento das despesas e depende do cenário externo para se financiar. Nesse sentido, entende-se o adjetivo “pró cíclico” que a jornalista usa para a regra do superávit primário: quando as coisas vão bem, o governo tem espaço para aumentar as despesas, quando vão mal, precisa diminuir despesas ou aumentar impostos, o que piora o ciclo recessivo.

A regra do teto de gastos, por outro lado, é anticíclica: quando as coisas vão bem, a arrecadação aumenta, mas não pode ser usada para ampliar gastos. Trata-se de uma poupança forçada. Por outro lado, quando as coisas vão mal, as despesas podem continuar crescendo junto com a inflação e não é necessário aumentar impostos. Essa é a virtude principal da regra do teto, superior, nesse sentido, à regra dos superávits.

Mas mesmo tendo esse componente anticíclico reclamado pela jornalista, ainda assim a regra do teto não está boa, é “inexequível”. A proposta (e aqui entra o componente do galo cantando não se sabe onde) é uma tal “meta de resultado estrutural ajustada ao ciclo econômico”. Por trás do economês temos o bom e velho superávit primário (“resultado”), sem contar com receitas ou despesas não recorrentes, como privatizações (“estrutural”), e retirando o caráter pró cíclico (“ajustada ao ciclo econômico”). A proposta parece realmente excelente, flexível e moderna. Inclusive, tem o selo de qualidade “a exemplo do modelo europeu”. Há, no entanto, dois problemas com essa proposta, que esbarram nessa coisa chata chamada realidade.

A primeira é mais técnica: como definir o que é despesa recorrente? E, principalmente, como definir o “ciclo econômico”? A discussão dos precatórios demonstra quão difícil é definir a natureza das despesas. Auxílio emergencial por 3 anos, é recorrente ou passou a ser normal? Mas é na definição de ”ciclo econômico” que a tese encontra sua maior armadilha: qual o crescimento “normal” do país? Crescer a 1%, como tem sido a regra desde 2017, é normal ou estamos no ponto baixo do ciclo econômico? Essa é A questão relevante, pois, a depender da resposta, a regra poderá permitir a produção de déficits primários. Afinal, é preciso “estimular” a economia quando estamos na baixa do ciclo econômico.

Enfim, a coisa parece que funciona na Europa. Sim, porque lá é a Alemanha que dá as cartas. E, para os alemães, não há regras “inexequíveis”. Se há uma regra, se cumpre. Sem jeitinhos. No Brasil, e esse é o segundo problema, o tal “resultado estrutural ajustado ao ciclo econômico” somente daria mais graus de liberdade para os jeitinhos, deixando ainda mais distante a perspectiva de redução da dívida pública. O resultado serão taxas de juros mais altas, pois se os credores já desconfiam do cumprimento de uma regra rígida, imagine em relação a uma regra mais “flexível”, que praticamente institucionaliza o jeitinho.

No fundo, toda essa discussão só existe porque a sociedade brasileira quer que o Estado gaste mais. Qualquer limite sempre será “inexequível”. A única regra “exequível” será aquela que permitirá “flexibilidade” suficiente para tornar o processo indolor. É um pouco como acreditar em emagrecimento sem sacrifício. Acho que vou lançar um “método de emagrecimento com resultados estruturais ajustados ao ciclo psíquico”, em que não contam os períodos de festas e os momentos em que a pessoa está triste e precisa descontar na comida. Vai fazer um baita sucesso!