A matemática é cruel

Tem muito frenesi sobre hidrogênio verde ultimamente. O Brasil seria candidato a ser grande produtor do combustível, por contar com uma matriz de geração de energia elétrica menos poluente. Para quem não sabe, o hidrogênio verde recebe esse nome porque, para a sua produção, só é usada eletricidade com origem “verde”, ou seja, de combustíveis não fósseis. O hidrogênio do mal recebe outras cores.

Fui tentar entender onde estamos nesse assunto. Fiz uma rápida pesquisa na internet e descobri alguns números interessantes. Por exemplo, para se produzir 1 kg de hidrogênio verde são necessários 55 kWh de energia. Esse número em si não quer dizer muita coisa, mas se juntarmos com a informação de que a bateria de um Tesla precisa de uma carga de 80 kWh de energia para ficar completa, concluiremos que uma bateria de Tesla equivale a aproximadamente 1,5 kg de hidrogênio.

Pois bem. Se a autonomia de um Tesla com essa bateria é de 500 km, qual seria a autonomia de um automóvel movido com 1,5 kg de hidrogênio? Considerando a informação da reportagem de que o poder calórico do hidrogênio é de 3 vezes o da gasolina (1 kg de hidrogênio = 3 kg de gasolina), e que cada litro de gasolina pesa mais ou menos 0,75 kg, podemos afirmar que 1 kg de hidrogênio equivale a mais ou menos 4 litros de gasolina em termos de poder calórico. Considerando um consumo de mais ou menos 8 km/l de gasolina, um tanque de 60 litros equivaleria a mais ou menos uma bateria de 80 kWH, ambas podendo rodar 500 km. Se 1 kg de hidrogênio gera o mesmo poder calorífero de 4 litros de gasolina, então teríamos que ter um tanque de 15 kg de hidrogênio para andar os mesmos 500 km. Ou, de outra maneira, cada 1,5 kg de hidrogênio serve para andar 50 km, 10 vezes menos do que a bateria de lítio que usa a mesma quantidade de eletricidade. Visto de outra forma, se para gerar 1 kg de hidrogênio são necessários 55 kWh de energia elétrica, para 15 kg seriam necessários 825 kWh . Ou seja, para andar 500 km, um Tesla gasta 80 kWh enquanto um carro movido a hidrogênio gastaria 825 kWh. Peço a alguém entendido no assunto que confira as contas acima.

Mas não é só isso. Em 2022, foram produzidos 28.700 TWh de energia elétrica no mundo. Se para andar 500km são necessários 825 kWh, o total de energia elétrica produzida no mundo poderia mover todos os carros, por ano, por cerca de 17,4 trilhões de quilômetros. Para os aproximadamente 1,4 bilhões de carros no mundo, isso equivaleria a cerca de 12,4 mil km/ano. Ou seja, se toda a eletricidade do mundo fosse transformada em hidrogênio, isso seria o suficiente para que cada carro rodasse por pouco mais de 10 mil km/ano.

Mas, obviamente, trata-se de um hipótese heróica. Não podemos abrir mão de toda a eletricidade do mundo só para mover carros. Além disso, grande parte da eletricidade é gerada de fontes sujas, que não servem para produzir hidrogênio verde. De todas as fontes de eletricidade, somente 39% são de fontes “limpas”. Então, a conta seria de 4,8 mil km/ano/carro se toda a energia elétrica limpa fosse transformada em hidrogênio verde.

As contas acima, se estiverem corretas, mostram que estamos longe, muito longe, de ter um substituto para a bateria de lítio, quanto mais para o petróleo. Obviamente, não se trata de desmerecer iniciativas como a do hidrogênio verde. Um dia teremos tecnologia para que esse combustível seja economicamente viável. O problema é achar que estamos às portas de uma revolução, quando, na verdade, estamos muito distantes. E o pior é que, por mais que tenhamos crescimento na geração de energia limpa, a demanda por energia, essa danadinha, cresce ainda mais rápido, fazendo com que a geração de energia suja mantenha seu crescimento. E se a demanda por hidrogênio verde aumentar, adivinha, não vai ter como manter a oferta de energia elétrica sem aumentar a geração de energia suja.

Bem, tudo isso pra dizer que palavras são bonitas, mas no final do dia o que importa é a matemática. É ela que vai definir qual tecnologia será adotada. Discursos inflamados e chamadas para a ação não substituem uma boa conta econômica. E, no caso do hidrogênio verde, a julgar pelos números acima, ainda temos muito a caminhar até chegar lá.

O petróleo é nosso. E será ainda por muito tempo.

Hoje, publiquei um post analisando artigo publicado no Estadão que criticava a intenção do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, de acelerar os planos de exploração de petróleo enquanto o ouro negro ainda tem algum valor, antes de completarmos a transição energética. Em resumo, o artigo afirma que em menos de 100 meses (até 2030), as emissões de gases de efeito estufa deveriam ser cortados pela metade se o mundo quisesse cumprir os compromissos do Acordo de Paris, e limitar o aquecimento do global em 1,5o C. Nesse contexto, seria um erro estratégico insistir na produção de petróleo, pois seria um produto com os seus dias contados. Como se intenções, pelo fato de serem boas, automaticamente se materializassem.

Por coincidência, hoje tive acesso a um extenso relatório recém-divulgado pelo J.P. Morgan, em que se analisa de maneira bastante completa o atual balanço entre oferta e demanda de petróleo e o prognóstico até o ano de 2030. O relatório do J.P. corrobora a posição da petroleira, pois prevê que não somente o consumo de petróleo não vai diminuir, como vai aumentar até 2030. A previsão é de um aumento de demanda de 7 milhões de barris entre 2019 e 2030. Sem as iniciativas de de-carbonização que estão sendo colocadas em prática, este aumento seria de 10,9 milhões de barris. Um ganho, sem dúvida, mas muito longe de aposentar o petróleo até 2030.

Vejamos, a seguir, os principais pontos desse relatório.

A estimativa de demanda por petróleo até 2030

O petróleo é a principal fonte de energia no mundo hoje, representando 32% do consumo global de energia, seguido pelo carvão (27%) e gás natural (24%). Só por aqui já vemos a dificuldade que enfrentamos: cerca de 83% de toda a energia produzida no mundo depende de combustíveis fósseis. Mas vamos focar no petróleo.

A primeira coluna mostra o valor calorífico de cada combustível (em megajoule por litro), a segunda traz o preço do litro no varejo de cada combustível nos Estados Unidos e a terceira é simplesmente a divisão entre o preço e o valor calorífico: quanto menor, mais barato é o combustível por unidade de energia produzida. Salta aos olhos a diferença entre os combustíveis fósseis e suas contrapartes sustentáveis. No caso de diesel e biodiesel, por exemplo, a diferença é de quase três vezes.

Mas existe uma questão até anterior ao preço: a viabilidade tecnológica de acesso confiável ao fornecimento de energia a um preço razoável. Na tabela a seguir, adaptada do relatório, listamos os diversos usos de energia, quanto representam da emissão de gases de efeito estufa (usaremos, daqui em diante a sigla GHG – Greenhouse Gas), quanto representam da demanda por petróleo e, mais importante, se há um substituto sustentável tecnologicamente viável no horizonte de tempo do estudo (até 2030).

Podemos observar que, tecnologicamente, temos somente três campos onde é possível a troca do uso do petróleo por energias limpas no curto prazo: geração de eletricidade, aquecimento/refrigeração e veículos leves e motos. Estas áreas representam 41,5% da emissão de GHG globalmente. Ou seja, em tese, seria possível cortar em quase metade as emissões se as tecnologias já existentes fossem empregadas extensivamente nessas três áreas. No caso da fabricação de produtos, em que combustíveis fósseis são empregados diretamente na movimentação de máquinas, até é possível trocar por eletricidade, mas o custo é tão mais alto, que o J.P. coloca como “tecnologia não disponível”, a menos que haja um imposto sobre emissões, o que nivelaria o custo por cima. No caso de veículos pesados, navios e aeronaves, nem isso é possível, pois não há tecnologia no horizonte.

Essa tabela guarda um paradoxo. Cortar GHG significa, na prática, trocar combustíveis fósseis por eletricidade. No entanto, a geração de eletricidade, hoje, representa cerca de 27% da emissão de GHG. Na medida em que mais setores adotarem a eletrificação, se a origem da eletricidade não for limpa, haverá apenas uma transferência de emissão de GHG de um setor da economia para outro, talvez com algum pequeno ganho, mas longe de ser suficiente. Portanto, é essencial que a geração de eletricidade tenha como origem uma fonte limpa e, tão importante quanto, confiável. Apesar de o relatório do J.P. colocar a geração de eletricidade como sendo uma tecnologia economicamente disponível, o aumento do seu uso pela de-carbonização de outros setores coloca um desafio adicional. Somente o desenvolvimento do hidrogênio verde ou o uso extensivo da energia nuclear, que não abordaremos aqui porque o foco é no uso do petróleo, poderá resolver essa equação. Mas esse desenvolvimento não está no horizonte até 2030.

Além disso, uma parte do uso industrial do petróleo não está relacionada com energia, mas com insumo. É o caso da indústria de plásticos, asfalto e outros produtos que usam o petróleo como matéria-prima. Assim, mesmo na hipótese de substituição do petróleo por energia elétrica na indústria, o uso do petróleo neste setor não será zero, assim como a emissão de GHG no processo produtivo.

Considerando todos esses fatores, o relatório do J.P. estima que a demanda por petróleo deve crescer globalmente em 7 milhões de barris, tendo como base o ano de 2019. Os maiores contribuidores para este aumento estão na tabela a seguir:

Note que há uma previsão de queda de uso gasolina equivalente 1,5 milhão de barris/dia, em função do aumento do uso de carros elétricos, que discutiremos em seguida.

Dos 7 milhões de barris adicionais de demanda, os emergentes serão responsáveis por 11,6 milhões, ao passo que os desenvolvidos reduzirão em 4,6 milhões de barris. Este fato é muito importante. Sempre que ouvimos sobre alguma experiência exitosa em algum país da Europa sobre eletrificação de frota (e veremos o case da Noruega mais à frente), podemos ter a impressão de que estamos às portas de uma grande virada global no uso de combustíveis fósseis. Nada mais longe da realidade. A Europa é um caso à parte, inclusive quando comparada com os Estados Unidos. Lá, há uma combinação única entre governos realmente comprometidos com as metas do clima, população mais consciente e com grande poder aquisitivo. Essa combinação não se repete, por enquanto, em nenhum outro lugar do mundo. Portanto, é sempre bom interpretar com um grama de sal qualquer notícia de de-carbonização vinda da Europa, pois não se trata de uma tendência de curto prazo para o restante do planeta.

Eletrificação de veículos leves

A partir deste ponto, o relatório do J.P. entra nas premissas utilizadas em cada setor para a redução do consumo de petróleo. No caso de veículos leves, temos a frente mais promissora. Aqui, vários governos já anunciaram metas de proibição de vendas de veículos movidos a combustíveis fósseis em algum ponto no futuro. Na Europa, região mais adiantada no processo, cerca de 39% dos veículos vendidos foram elétricos ou híbridos em 2021. Na China, este número está em 21% e nos Estados Unidos, em 11,6% agora em 2022, até fevereiro.

Temos aqui uma frente que, de fato, tem avançado de maneira cada vez mais rápida. O único problema é que, apesar de demandar 28% do petróleo utilizado no mundo, esse setor é responsável por somente 7,5% da emissão de GHG. Ou seja, ajuda, mas não é a bala de prata que alguns pensam ser. O caso da Noruega é emblemático.

A Noruega tem o programa de eletrificação de frota mais avançado do mundo. Graças a incentivos governamentais dos mais diversos, cerca de 21% da frota norueguesa de veículos leves é elétrico, contra uma média global de apenas 3,6%. No entanto, apesar desse avanço significativo, a demanda por petróleo vem crescendo a 6% ao ano desde 2016, e atingiu novo recorde em 2021. O consumo de GLP cresceu mais de 40% no país desde 2016, mais que compensando a queda no consumo de gasolina, que de fato ocorreu.

A substituição da frota é bem mais lenta do que sugere o número de veículos vendidos anualmente. Como vimos, atualmente, apenas 3,6% da frota global de veículos leves, estimada em um bilhão, é de veículos elétricos. Estima-se que esse número suba para 20% até 2030, mesmo nível da Noruega hoje. Considerando o crescimento vegetativo da frota nesse período, o número de veículos movidos a combustíveis fósseis será praticamente o mesmo daqui a 8 anos, ou seja, um bilhão. A diminuição do uso do petróleo para este fim virá mais da mistura de biocombustíveis à gasolina do que pela diminuição da frota. Mas essa mistura tem uma limitação dada pela capacidade de produção dos biocombustíveis. Ou seja, a queda do uso do petróleo por veículos leves se reduzirá, mas muito marginalmente.

Eletrificação de veículos pesados, aeronaves e navios

A viabilidade de eletrificação desses veículos é inversamente proporcional ao seu peso. Nesse sentido, dentre os veículos pesados, os ônibus são os candidatos mais naturais a serem eletrificados, pois levam cargas mais leves. Da mesma forma, os pequenos caminhões urbanos. Com os caminhões de grande porte, por outro lado, a dificuldade é maior. Para que um caminhão possa rodar 1.000 km sem recarregar, é necessária uma bateria de 14 toneladas. Como o caminhão em si pesa 18 toneladas e a carga máxima permitida nas estradas americanas é de 40 toneladas, sobrariam apenas 8 toneladas livres para carga, contra 22 toneladas para caminhões com motor a combustão. No caso de uma viagem de 1.500 km, a bateria pesaria 22 toneladas, simplesmente zerando o espaço para carga. Por isso, a eletrificação de caminhões pesados, por enquanto, é inviável economicamente. Sendo assim, o caminho para a de-carbonização de caminhões no curto prazo passa pelo desenvolvimento de biocombustíveis. Mas, como vimos, os biocombustíveis ainda são mais caros do que os combustíveis fósseis, e sua adoção ocorre somente por mandato legal. Para além de 2030, a solução deverá ser o hidrogênio verde.

No caso de aeronaves o problema é ainda pior, e certamente não passa por eletrificação. Se o combustível fóssil representa algo entre 20% e 40% do peso da aeronave, uma bateria para gerar a energia equivalente deveria pesar 30 vezes o peso da aeronave. A IATA tem um plano de substituir combustíveis fósseis por uma mistura de biocombustível (principalmente) e hidrogênio (secundariamente) até 2050. Mas até 2030, nada deve acontecer de relevante. O mesmo se pode dizer dos combustíveis para navios.

Para que o plano da IATA seja cumprido, a produção de biocombustível de aviação deve crescer dos atuais 100 milhões de litros para 450 bilhões de litros produzidos anualmente. No caso do hidrogênio, além dos problemas de produção, deve-se encontrar uma solução de engenharia para os aviões, pois o tanque para o hidrogênio deve ser 4 vezes maior do que atual tanque para combustível fóssil. Fora o problema da própria produção do hidrogênio, que consome uma quantidade grande de energia. Hoje, 99% da energia usada para produzir hidrogênio tem origem em combustíveis fósseis. No futuro, mas não até 2030, espera-se que a produção de hidrogênio utilize principalmente fontes limpas.

Processos industriais

Cerca de 31% da emissão de GHG e 28% da demanda por petróleo vem de processos industriais. Desses 28%, cerca de metade vai para a indústria petroquímica, principalmente na produção de plásticos. Não temos, hoje, como produzir plástico sem emitir carbono. A reciclagem poderia ser uma saída, mas tem suas limitações. Hoje, apenas 9% de todo o plástico produzido no mundo é reciclado. Isso acontece porque reciclar plástico é caro, e sua qualidade se deteriora rapidamente, permitindo apenas uma ou, no máximo, duas reciclagens.

Outros usos industriais do petróleo incluem a produção de ferro, aço e cimento, que demandariam soluções de eletrificação que não existem no momento e tampouco estão no horizonte.

Uso residencial e na agricultura

O uso residencial refere-se principalmente ao aquecimento de casas e apartamentos no inverno, que usam combustíveis fósseis no inverno. O relatório do J.P. nos informa que, na União Europeia, 36% do total de GHG emitido vem dos sistemas de aquecimento, sendo que a média global é de 7%. Não é à toa que os governos da região vêm emitindo regulamentações para aumentar a eficiência do uso de energia residencial, enquanto a eletrificação não é possível.

Na agricultura, que representa 19% das emissões de GHG, as soluções são ainda muito incipientes, enfrentando os mesmos problemas dos caminhões de grande porte.

Geração de eletricidade

A geração de eletricidade é um setor onde a substituição do petróleo está mais adiantada, mas ainda há um longo caminho a seguir. Nesse setor, a demanda por petróleo deve cair até 2030, mas o setor representa apenas 5% da demanda global por petróleo atualmente.

Conclusão

Aparentemente, o presidente da Petrobras tem razão ao apontar para a aceleração da produção de petróleo no curto prazo. O seu consumo deve continuar crescendo nos próximos anos, e o seu declínio deve estar ainda a uma geração de distância, no mínimo. Se isso significa que as mudanças climáticas terão consequências mais catastróficas, então é melhor já começarmos a pensar em um plano B para enfrentá-las.

Autoritarismo do bem

Um abaixo-assinado publicado hoje no Estadão (na verdade é um artigo, mas tem tantos autores que virou abaixo-assinado) dá um conselho à Petrobras: ao invés de investir em uma fonte de energia que será abandonada em breve, a empresa deveria investir em “alternativas neutras em carbono”.

O abaixo-assinado é uma reação a um artigo do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, em que se defende a aceleração da exploração do pré-sal enquanto o petróleo ainda tem algum valor. O interessante é que tanto o abaixo-assinado quanto o artigo de Silva e Luna concordam no essencial: um dia, o petróleo deixará de ser uma fonte importante de energia. A divergência está no timing: para os abaixo-assinados, “em menos de 100 meses” as emissões de gases de efeito estufa terão de ser cortadas pela metade para que tenhamos alguma chance de limitar o aquecimento global em 1,5o, ao passo que, para o presidente da Petrobras, ainda teremos um bom tempo antes que isso aconteça, tempo suficiente para ganhar algum dinheiro com o petróleo do pré-sal.

Não vou entrar no mérito de quem está certo, mas esse artigo é, no mínimo, estranho. Será que os abaixo-assinados estão realmente preocupados com o futuro da Petrobras enquanto empresa e estariam dando um conselho de amigo? Pouco provável. Parece mais uma tentativa de empurrar uma profecia auto-realizável: sem produtores de petróleo daqui a alguns anos, o consumo cairá por falta de oferta, não de demanda. Ou seja, por trás desse “aviso amigo” de que a demanda despencará no futuro, está a tentativa de reduzir a oferta. Nice try, abaixo-assinados.

Além disso, soa patético o pedido de que a Petrobras se dedique à produção de “energias limpas”. É um pouco como pedir para um ortopedista realizar uma cirurgia cardíaca. “Mas não é tudo médico?”, perguntará o leigo. Com essa “proposta”, os abaixo-assinados demonstram a sua completa ignorância de como funciona o mercado de energia. Em determinado trecho, é mencionado que a empresa chegou a investir em etanol e biodiesel anos atrás, mas “deixou as renováveis de lado para focar no petróleo”. Fica difícil de saber de onde tiraram isso. A Petrobras tem papel marginal na produção de etanol e biodiesel, indústrias dominadas pelos grandes conglomerados do agronegócio, como Cargill e Raízen. O máximo que a petrolífera faz é comprar o etanol e o biodiesel e misturar na gasolina e no diesel. E só faz isso por determinação legal, não por estratégia de negócio.

O que se tem aqui é uma tentativa de introduzir um elemento estranho ao balanço da demanda/oferta de petróleo: o “custo ambiental”. Diminuindo a oferta artificialmente, teríamos um novo equilíbrio, com o preço do petróleo nas alturas (porque a demanda continuará lá) viabilizando fontes alternativas de energia. O resultado será menos gases de efeito estufa e energia bem mais cara do que a que temos hoje. Claro, as energias alternativas ficarão mais baratas com o tempo. Mas o caminho para o céu é a morte, e por mais que gostemos da ideia do paraíso, ninguém está a fim de morrer para chegar lá. Se energias alternativas mais baratas estivessem no horizonte, não estaríamos tendo essa conversa.

Esse abaixo-assinado seria cômico se não fosse trágico. Se a Petrobras seguisse o seu conselho, passaríamos a depender cada vez mais de petróleo importado. E, na heróica hipótese de que as metas para o clima fossem cumpridas, teríamos um petróleo cada vez mais caro no mercado internacional. Apostar que ”daqui a menos de 100 meses” teremos energia limpa a preços competitivos é jogar com a sorte dos mais pobres, que dependem de energia barata para sobreviver. Os abaixo-assinados dirão que o meteoro do aquecimento global está se aproximando, e não adiantará nada ter energia barata se todos estivermos mortos sob os escombros do seu impacto. É uma forma de ver a coisa. Fariam melhor, neste caso, se voltassem suas baterias para promover a diminuição da demanda. Atacar a oferta é uma forma autoritária de atingir o seu objetivo, na medida em que se colocam como aqueles que sabem o que é melhor para a humanidade, sem se dar ao trabalho de convencer a humanidade sobre a sua verdade.

Quem vai pagar a conta?

Existe energia suja, muito suja e imunda. A energia gerada a partir da queima do carvão enquadra-se nessa última categoria. Reportagem de página inteira hoje no Valor nos faz saber que o uso do carvão bateu o recorde histórico de uso em 2021. Mesmo os EUA de Biden, o amigo do clima, queimou mais carvão em 2021 do que os EUA de Trump, o arqui-inimigo do clima, havia queimado em 2019. Só não vou gargalhar porque rir em velório é de mau tom. Agora, a Europa procura desesperadamente alternativas ao gás russo. Adivinha no colo de quem a Europa vai cair. E tome carvão.

A reportagem nos conta que novas plantas de produção de carvão não estão recebendo financiamento, em função de exigências ESG. Resultado: o preço do carvão foi para as alturas (assim como, de resto, os preços dos combustíveis fósseis de maneira geral). A transição para energias limpas (solar e eólica principalmente) vem sendo exasperantemente lenta. Há claramente um problema de sincronismo. Resultado: energia (bem) mais cara no curto prazo.

Energia cara não é, de modo algum, popular. Não por outro motivo, governos em todo o mundo buscam formas de subsidiar os combustíveis fósseis neste momento. Na mesma reportagem, o secretário-geral da ONU, António Guterres, chama de “loucura” essa “corrida para os combustíveis fósseis”. Gosto de pensar no secretário da ONU proferindo essas graves palavras em seu gabinete na ONU com calefação obtida com a queima de carvão. O preço pode subir quanto for, a calefação na ONU estará garantida. O mesmo não se pode dizer de seus quase vizinhos do Bronx.

O problema da transição energética é que se trata de algo que tem um custo. E esse custo não é dos governos ou mesmo das empresas. Esse custo é de quem paga pela energia. Cúpulas do clima sempre terminam repletas de promessas. Só falta avisar quem vai pagar por elas.

A mensagem da Glencore para o planeta

A Economist vem mandando a real sobre a agenda ESG, principalmente no que se refere à sua influência sobre os investimentos. Em reportagem de sua última edição (Glencore’s message to the planet), a revista aborda o estranho caso da empresa suíça Glencore, que vem comprando ativos de produção de carvão na contramão da agenda de preservação ambiental – e com sucesso.

A matéria começa dizendo que o consumo de carvão para a produção de energia bateu recorde em 2021, mesmo depois de anos de pregação contra o seu uso. Esse consumo fez com que os preços da commodity atingissem níveis recordes em outubro deste ano, o que causou a forte alta das ações da Glencore.

A revista então chama a atenção para um pequeno fundo ativista, o Bluebell Capital, que vem tentando forçar a Glencore a vender seus ativos de produção de carvão, com base na agenda ESG. Mas sua iniciativa vem caindo em ouvidos moucos. Ao que parece, segundo a reportagem, os investidores têm mudado a sua visão a respeito do carvão. Não sem ironia, a revista afirma que este “é um sinal de quão ‘flexíveis’ podem ser os investidores quando as metas ESG batem de frente com o objetivo de maximizar retornos financeiros”.

Voltando um pouco no tempo, a reportagem lembra que a mineradora Rio Tinto foi a primeira a abandonar o carvão, isso em 2018. Logo depois, suas concorrentes, incluindo a Glencore, apresentaram planos na mesma direção. Em meados de 2021, a Anglo American separou a sua subsidiária de carvão, Thungela Resources, com o intuito de vendê-la. No entanto, depois de poucos meses, as ações da Thungela haviam quadruplicado de preço. Vendo isso, a Glencore, que havia acabado de aprovar um plano de venda de seus ativos de carvão, comprou a participação nesses mesmos ativos da Anglo American, e a mineradora BHP anunciou que vai segurar a venda de seus ativos de carvão.

A mudança de atitude veio dos próprios investidores, segundo a revista. A Blackrock, maior gestora do mundo e profundamente dedicada à pauta ESG, além de outros investidores, teriam chegado à conclusão de que é preferível que esses ativos permaneçam em mãos de empresas listadas em bolsa do que serem vendidas para fundos opacos de private equity. Novamente usando da fina ironia inglesa, a revista sugere que talvez os investidores não fossem tão benevolentes se os preços das ações estivessem caindo.

O fato é que, e a revista já vem chamando atenção para isso há algum tempo, o uso do carvão não vai sumir do mapa simplesmente porque os ativos foram vendidos pelas grandes mineradoras. Enquanto a demanda estiver aí – e a matéria afirma que a demanda dos países mais pobres continuará existindo durante muito tempo – os ativos continuarão existindo, só que longe dos olhos dos investidores.

A solução? A Economist sugere que somente uma ação concertada dos governos para a taxação das emissões de carbono e o redesenho dos sistemas de geração de energia pode diminuir a demanda pelo carvão. Mas, já falamos sobre isso aqui: taxar carbono significa aumentar o custo da energia. Qual governante está realmente disposto a colocar a mão nessa cumbuca?

O fato é que é mais fácil falar do que fazer. Como diz um desesperançado Nizan Guanaes em recente artigo no Brazil Journal, “acho que estamos mergulhados em um mar de blá blá blá. Se todas as empresas são ESG, quem está desmatando o mundo, emporcalhando os mares, aquecendo a atmosfera?”

Qual o tamanho do desafio de substituir o petróleo?

Na vibe da conferência do clima em Glasgow, o Estadão publicou reportagem sobre o desafio de zerar as emissões de gás carbônico. Segundo o relatório Net Zero Carbon, da Associação Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), o consumo de petróleo deveria ser reduzido dos atuais 96 milhões de barris/dia para 24 milhões barris/dia, uma redução de 75% em relação ao atual nível de consumo de petróleo. A projeção está no gráfico a seguir:

Resolvi fazer algumas contas para entender o tamanho do desafio. Assumi que todo esse petróleo deveria ser substituído por energias renováveis. Mas qual é exatamente a equivalência?

Para responder a essa primeira questão, é necessário saber a conversão de energia entre uma fonte e outra. Encontrei o site da Cegás, a companhia de gás natural do Ceará, que traz uma tabela de equivalência aqui. Segundo esta tabela, um barril de petróleo equivale a 150 m3 de gás natural e, ao mesmo tempo, 1 m3 de gás natural equivale a 10,92 kWh. Fazendo uma regrinha de 3 simples, chegamos na seguinte equivalência:

1 barril de petróleo = 1.639 kWh = 1,64 MWh (megawatts hora)

Em português, um barril de petróleo produz o equivalente a 1,64 MWh de energia. Portanto, a produção de 96 milhões de barris/dia equivale a 157,44 milhões de MWh por dia.

Para evitar grandes números, vamos transformar os MWh em TWh (tera watts hora): cada TWh equivale a 1 milhão de MWh. Assim, 96 milhões de barris/dia equivalem a 157 TWh/dia.

Como um ano tem 365 dias, temos 157 x 365 ~ 57.300 TWh/ano. Esta é a geração de energia em um ano de toda a produção de petróleo do planeta.

Voltando à meta da IEA, deveríamos cortar 75% desse produção, o que equivale a 0,75 x 57.300 ~ 43.000 TWh/ano. Este é o total de energia renovável que deveria ser produzida para substituir esse tanto de petróleo. Guarde este número.

A próxima questão é: quanto de energia renovável é produzida hoje? Encontrei esta informação no site da Sociedade de Investigações Florestais (aqui). Segundo o artigo, em 2019 foram produzidos aproximadamente 25.700 TWh de energia elétrica no mundo. No gráfico abaixo, temos a distribuição das fontes dessa energia ao longo do tempo, segundo a IEA:

Observe duas coisas:

  1. Grande parte da energia elétrica tem sua fonte no carvão (38%), no gás natural (23%), e no óleo combustível (3%), totalizando 64% de fontes emissoras de CO2 e
  2. A produção de renováveis equivale a 25% do total de 25.700 TWh, ou 0,25 x 25.700 ~ 6.430 TWh/ano.

Na verdade, este número é um pouco maior, considerando que estamos trabalhando com a proporção de 2017, e esta proporção vem aumentando. Vamos trabalhar com o dado do IEA, que pode ser encontrado aqui, e pode ser visto no gráfico a seguir:

Vamos, então, trabalhar com 7.000 TWh de produção de energia elétrica de fontes renováveis em 2019.

Lembremos agora que, para o consumo de petróleo cair 75%, precisamos produzir 43.000 TWh/ano de energia “limpa”. A produção atual de energia renovável é de 7.000 TWh/ano. Portanto, precisaríamos multiplicar a produção atual por aproximadamente 6 vezes.

Se quisermos, além disso, substituir as fontes sujas de energia elétrica, teríamos que produzir adicionais 64% x 25.700 TWh ~ 16.500 TWh/ano. Somados com os 43.000 TWh/ano para substituir o petróleo, teríamos 59.500 TWh/ano, ou 8,2 vezes a produção atual.

Mas, não consideramos o mais importante nessa conta: o aumento do consumo de energia ao longo dos próximos 30 anos. Esta é uma questão importante, pois a produção de energia renovável precisa não apenas substituir o petróleo e o carvão atuais, mas precisa também substituir o petróleo e o carvão do futuro.

Vamos recuperar os números vistos até o momento para entender o impacto desse crescimento. Vimos que:

  • A produção de petróleo equivale a 57.300 TWh por ano.
  • A produção de eletricidade equivale a 25.700 TWh por ano.

Por uma questão de simplicidade do raciocínio, e sem perder muita precisão, vamos assumir que toda a energia do mundo tenha somente essas duas fontes, e que o petróleo não seja usado para produzir eletricidade. Temos, então, um total de 57.300 + 25.700 = 83.000 TWh por ano de produção de energia no mundo.

Agora, vejamos uma estimativa para o aumento da demanda por energia nos próximos 30 anos.

A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) estima a elasticidade da demanda de energia elétrica em relação ao crescimento do PIB em 1,5 (aqui). Ou seja, para cada 1% de crescimento do PIB, há um aumento de 1,5% de crescimento no consumo de energia elétrica. Vamos assumir essa elasticidade para o consumo global de energia.

Digamos que o crescimento do PIB global nos próximos 30 anos seja de míseros 2% ao ano. Teríamos, então, um crescimento de 3% (2% x 1,5) ao ano no consumo de energia. Ou seja, somente para acompanhar o crescimento do PIB, a produção de energia deveria crescer 1,03^30-1 = 142%. Ou, teríamos que ter uma produção adicional de 83.000 x 142% ~ 118.000 TWh de energia.

Resumindo, o desafio é o seguinte:

  • Temos que substituir 75% do petróleo produzido hoje, totalizando 43.000 TWh de energia por ano.
  • Temos que substituir as fontes “sujas” de energia elétrica, totalizando 16.500 TWh de energia por ano.
  • Temos que fazer frente ao aumento do consumo de energia nos próximos 30 anos, sem considerar contar com fontes “sujas”, no valor total de 118.000 TWh de energia por ano.
  • Total = 43.000 + 16.500 + 118.000 = 177.500 TWh/ano

Lembrando que, em 2019, tínhamos uma produção de 7.000 TWh/ano de energia renovável. É factível esperar um aumento de produção nessa magnitude?

No gráfico a seguir, a IAE estima a adição de capacidade instalada de geração de energia elétrica de fontes renováveis para os próximos anos, ano após ano:

Segundo o IAE, em 2019 foram adicionados 225 GW (gigawatts) ou 0,225 TW (terawatts) de capacidade de geração de energia elétrica de fontes renováveis. Isto significa uma capacidade de gerar 0,225 x 24 horas x 365 dias ~ 2.000 TWh de energia por ano.

Podemos observar que há duas previsões. A primeira (main case) apresenta um crescimento da capacidade de geração de energia limpa de 190 GW em 2019 para 225 GW em 2025, um aumento de 2,9% ao ano aproximadamente. Já no caso “acelerado”, em 2025 estaríamos aumentando 310 GW de energia em 2025, um crescimento de 5,5% ao ano.

Considerando que se trata da soma de uma progressão geométrica com razão 5,5% ao ano, termo inicial 2.000 TWh e 30 anos, temos:

Main case: Soma PG = 2.000 (1,029^30-1) / (1,029 – 1) ~ 93.500 TWh

Caso acelerado: Soma PG = 2.000 (1,055^30-1) / (1,055 – 1) ~ 145.000 TWh

Lembrando que a necessidade é de 177.500 TWh que vimos acima, mesmo no caso acelerado ainda não conseguiríamos chegar na substituição necessária, ainda que não fiquemos longe. No “main case”, ficamos muito distantes.

Enfim, trata-se de um exercício simples e bem limitado. Não sou especialista na área, trabalhei apenas com dados que encontrei na internet e fiz algumas contas. Se algum especialista encontrar algum erro grosseiro, por favor, terei prazer em corrigir.

O problema está na demanda, não na oferta

Adriano Pires, um dos maiores especialistas brasileiros em energia, escreve artigo no Brazil Journal em que explica o aumento absurdo dos preços dos combustíveis fósseis, principalmente gás, no mundo inteiro.

Resumindo a ópera: a demanda encontra-se em patamar muito maior que a oferta. Por trás desse truísmo econômico encontra-se uma realidade para a qual precisamos nos preparar: a oferta de energia “limpa” é instável e não confiável. Depende essencialmente da boa vontade da Mãe Natureza, que pode simplesmente se negar a colaborar, como temos visto na estiagem desse ano, que praticamente desligou Belo Monte, e na falta de ventos no Mar do Norte, que diminuiu a produção de energia eólica na Inglaterra.

Combustíveis fósseis, grandes lagos de hidroelétricas e átomos de plutônio são reservatórios de energia que servem como estoque para essas ocasiões em que mamãe natureza não colabora. Ocorre que a retirada de energia desses reservatórios gera poluição (ou, no caso dos lagos, a morte de muitas espécies), o que não combina com uma sociedade moderna e atenta aos problemas causados por esses processos.

O resultado é um descompasso entre oferta e demanda. Destaquei o trecho do artigo que acredito ser o mais importante.

Tenho repisado esse ponto toda vez que escrevo sobre o assunto: o problema está na demanda, não na oferta. Não existe uma migração de energias “sujas” para energias “limpas” sem custo. A energia limpa é mais cara, pelo simples fato de não ter fornecimento confiável ao longo do tempo. A solução é diminuir a demanda. Queremos um mundo mais limpo? Desliguemos nossos ar-condicionados e nossos sistemas de aquecimento (no caso do hemisfério norte). Achar que vamos continuar consumindo a mesma quantidade de energia, só que limpa, é pura ilusão. É isso que Adriano Pires mostra nesse artigo.

No final, quem sofre, como sempre, são os mais pobres. A migração para energias “limpas” torna a energia mais cara, e o preço é pago por todos, inclusive os mais pobres. Claro que as alterações climáticas afetarão também os mais pobres. Estamos no típico caso do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A solução? Não vejo outra, a não ser diminuir o consumo. Conseguiremos abrir mão do conforto? Pouco provável.

O resultado é um preço de energia estruturalmente mais alto. É bom nos acostumarmos com a ideia.

O problema que teremos pela frente

O Estadão traz hoje entrevista com Rodrigo Aguiar, sócio fundador da Elev, empresa de projetos voltados à mobilidade elétrica. O entrevistador, claro, procura mostrar o lado claro da força. Mas uma das suas respostas deixa entrever o problema que teremos pela frente.

Com o objetivo de mostrar que os carros elétricos não são uma ameaça ao sistema elétrico brasileiro, o entrevistado afirma que até 2035 a alimentação da frota de carros elétricos prevista para aquele ano (1,3 milhões de veículos) não consumirá mais do que 1,5% da energia elétrica produzida hoje pelo país.

À primeira vista, o problema não parece muito grande. Mas, vamos analisar.

A frota de veículos hoje, no Brasil, totaliza 109 milhões, sendo 58,5 milhões de automóveis e o restante ônibus, caminhões e motocicletas. Uma frota de 1,3 milhões de veículos não faz nem cócegas para diminuir o efeito estufa. Quer dizer, o efeito sobre a demanda de energia elétrica é mínimo, desde que a eletrificação da frota não faça diferença para o dito aquecimento global.

Digamos, por outro lado, que tivéssemos uma frota que fizesse a diferença. Algo como metade dos automóveis, por exemplo, o que significaria mais de 20 vezes o número previsto para 2035. Agora, regrinha de três: se 1,3 milhões de veículos consomem 1,5% da eletricidade ofertada no país hoje, quanta eletricidade seria consumida por 20 vezes mais veículos? Exato! Seria 30% de toda a eletricidade gerada no país! E isso para eletrificar somente metade da frota de automóveis, sem contar ônibus, caminhões e motos, que são muito mais poluentes.

E antes que critiquem a conta, sim, a oferta de eletricidade irá aumentar ao longo dos anos, assim como o tamanho da frota. A conta acima continuará correta se o aumento da oferta de eletricidade acompanhar o aumento da frota. Para que o número acima fosse proporcionalmente menor, seria necessário um crescimento mais rápido de oferta de energia elétrica. E é aí que mora o problema.

Como o meu amigo Barnabe Da Silva Junior explica em seu excelente artigo sobre o sistema elétrico brasileiro, o espaço para aumento de energia de origem hidroelétrica é cada vez menor. Por isso, aumentará a produção de energia de outras fontes, como eólica, solar e, cruz credo, termoelétrica. Como as duas primeiras são intermitentes por natureza, para garantir a segurança do sistema será necessário aumentar a queima de combustíveis fósseis em usinas termoelétricas, não tem jeito.

Assim, enquanto for brinquedo de rico, os carros elétricos não vão pressionar o nosso sistema elétrico. Para realmente fazerem a diferença, os carros elétricos necessitarão de um aumento brutal de oferta de energia elétrica. Precisaremos ter um melhor mix de oferta de energia elétrica no país, caso contrário, estaremos apenas transferindo a queima de combustíveis fósseis de lugar. O que não deixa de ser bom para os pulmões dos moradores das grandes cidades, mas tem pouca utilidade para evitar o tal aquecimento global.

Energia “limpa”: por que não?

  • Clima estabilizado
  • Empregos bem remunerados
  • Crescimento da economia
  • Futuro de nossos filhos garantido

Não consigo entender porque, diante de tantas e numerosas vantagens, descritas pelos ativistas no New York Times, os governos não fazem a transição para a energia limpa. O céu está logo ali na esquina.

Talvez porque não passe de papo de vendedor. Se você entra em uma loja, o vendedor vai lhe apresentar somente as vantagens do produto. Claro, ele quer vender. As desvantagens ficam para você descobrir depois.

Então, qual a grande desvantagem da chamada “energia limpa”? A falta de confiabilidade no fornecimento.

Estamos no Brasil vivendo uma grande estiagem. À falta de água, soma-se o fato de que Belo Monte foi construída sem reservatório, justamente para preservar o meio-ambiente local, o que torna o fornecimento ainda mais dependente das chuvas. Qual a solução?Depois da crise de energia de 2001, o país investiu em termoelétricas movidas a óleo e, mais recentemente, a gás. Também investiu em eólicas e energia solar, mas estas fontes sofrem também de intermitência. Ou seja, para garantir confiabilidade ao sistema, as termoelétricas são essenciais. E, como sabemos, elas soltam gases de efeito estufa.

Os combustíveis fósseis libertaram a humanidade. Uma fonte barata, abundante e confiável de produção de energia permitiu a mobilidade praticamente irrestrita ao viabilizar automóveis e aviões, além de finalmente tornar o ser humano livre das condições climáticas, aquecendo no inverno e refrigerando no verão. As populações dos países desenvolvidos, que são os grandes produtores de gás de efeito estufa, estão acostumados há gerações com esses confortos. Estariam dispostos a abrir mão?

Claro que a tecnologia vai evoluir e teremos fontes alternativas de energia confiáveis e baratas. Quando isso acontecer, não será necessário que os governos coloquem metas de redução de emissões.

Não existe energia limpa

Esta pequena notinha escondida no caderno de economia do Estadão de hoje trata de um grave problema: a oferta de energia “limpa” (e vocês vão entender daqui a pouco porque coloquei o “limpa” entre aspas).

O Brasil tem uma das maiores ofertas de energia “limpa” no mundo. Nos países desenvolvidos do hemisfério norte, grande parte da energia elétrica é produzida em usinas termoelétricas a carvão ou óleo. Ou seja, usinas que produzem gases de efeito estufa (esta é a definição de energia “não limpa”, aquela que contribui para o chamado aquecimento global. Ou, mais modernamente, “mudanças climáticas”).

Sempre achei curioso o esforço e foco na substituição dos automóveis movidos a gasolina por carros elétricos. Sim, melhora a poluição nas cidades, sem dúvida, mas esse não é o coração da pauta ambientalista. O problema é o “aquecimento global”. Se o carro elétrico é alimentado por energia gerada por usinas termoelétricas, a quantidade de gases de efeito estufa deveria ser o mesmo. Afinal, para a mesma unidade de energia, é necessário liberar a mesma unidade de calor. Só muda o lugar onde esses gases são liberados. E, como se trata de aquecimento GLOBAL, se está no globo, tanto faz onde o gás é liberado, o efeito para o aquecimento deveria ser o mesmo.

As usinas hidroelétricas (e também as solares e eólicas) têm uma outra lógica: transformam energia contida em outros elementos que não o óleo ou carvão combustível para gerar energia elétrica. Por isso, são consideradas energias “limpas”.

Essa notinha sobre Belo Monte mostra que essa energia não é tão limpa assim. Para gerá-la, foi necessário mudar o regime de águas de um trecho do Rio Xingu, matando a flora e a fauna da região e levando a fome aos indígenas e populações ribeirinhas (veja matéria sobre o assunto nos comentários). E isso porque Belo Monte inundou apenas um terço do território que Itaipu, por exemplo, teve que inundar. Por isso, dizemos que Belo Monte é uma usina a “fio d’água”, depende menos de reservatórios que mudam o ecossistema da região.

Pois bem. Belo Monte gera energia que não contribui para o aquecimento global. Por outro lado, gera impactos bastante negativos no ecossistema da região. Podemos classificá-la como “energia limpa”?

Não existe isso a que chamam de “energia limpa”. Existe energia mais ou menos suja. Toda energia, para ser gerada, causa algum tipo de impacto no ambiente. Qualquer ser vivo causa impacto no ambiente. O ser humano muito mais, pois aprendeu a desenvolver máquinas para o seu próprio conforto. O problema não é a fonte de energia. O problema é a necessidade de gerar um montante de energia proporcional ao conforto requerido.

Belo Monte vai liberar água por ordem do Ibama para salvar a fauna, a flora e as populações ribeirinhas. Como, no entanto, as populações nas cidades continuarão fazendo questão de ligar seus aparelhos de ar-condicionado, Belo Monte vai precisar comprar energia adicional de usinas termoelétricas. Resultado: troca-se uma energia suja por outra energia suja. Trata-se de um trade off, que vai continuar existindo enquanto nós, todos nós, continuarmos a insistir em viver no máximo conforto possível.

Por isso, sou cético com relação a iniciativas de geração de “energia limpa”. Geração de energia sempre vai “sujar” o meio ambiente, de uma maneira ou de outra. O problema está na demanda, não na oferta. Enquanto nós, seres humanos, quisermos um refresco no verão e um aquecimento no inverno, alguma energia precisará ser gerada. E geração de energia degrada o meio ambiente, de uma maneira ou de outra.

Ah, e claro, a energia deve ser gerada da forma mais barata possível. Afinal a desigualdade social também é um problema, lembra?