Melhor puxar um banquinho para esperar sentado

O indiano Raghuram Rajan, ex-presidente do BC indiano e ex-economista-chefe do FMI, dá uma entrevista muito boa hoje no Valor. Destaquei o trecho abaixo porque representa uma boa parte do otimismo (ou seria melhor dizer “fio de esperança”) que nos resta: a esperança de que os oligarcas deponham Putin para preservarem as suas fortunas, alvos das sanções ocidentais.

Rajan sopra um ar gélido sobre a chama da esperança, ao dizer que Putin, assim como qualquer líder autocrata, legitima a própria existência dos oligarcas. Ou seja, ao derrubar Putin, esses oligarcas estariam dinamitando a própria estrutura que os sustenta. A entrada de outro dirigente, autocrata ou não, significaria começar o jogo do zero, o que torna o futuro imprevisível para esses oligarcas. Assim, entre perder uma parte de sua fortuna ou a sua legitimidade, a escolha é óbvia.

Mas Rajan deixa ainda uma fresta aberta na porta da esperança: os movimentos de massa, que poderiam forçar a troca do regime. Na medida em que mais soldados russos morrem em uma campanha que não faz sentido, seria cada vez mais provável uma insurreição da população, o que presumivelmente levaria à queda de Putin.

Lamento ter que eu mesmo soprar um ar gélido sobre essa outra chama de esperança de Rajan e de muita gente. Há pouco tempo, escrevi a resenha de um livro que descreve o regime de terror de Stálin, Sussurros, do historiador britânico Orlando Figes. Um dos capítulos narra a Grande Guerra Patriótica, nome pelo qual ficou conhecida a 2a Guerra na União Soviética. Neste capítulo, Figes descreve como os soldados russos tiveram contato com a chamada “civilização ocidental” na medida em que suas tropas foram avançando pela Alemanha, e como esse contato fez “cair a ficha” das mentiras contadas pelo regime a respeito de seu próprio bem-estar e da produtividade de seus campos. Em certo momento, houve a esperança de que esse seria um catalisador para a mudança do regime, pois os soldados voltavam falando sobre tudo o que viram e reclamando do governo de maneira aberta.

No entanto, como sabemos, Stálin continuou a governar o país com mão de ferro até a sua morte, em 1953. E uma revisão do stalinismo somente ocorreu em 1956, quando Kruschev se sentiu suficientemente seguro para implantar o seu próprio regime. Ou seja, somente 11 anos depois do “desmascaramento” das mentiras do regime. Ocorre que um regime de força dispõe de instrumentos de terror para lidar com esse tipo de pressão. Agora mesmo, Putin está prendendo ativistas, censurando redes sociais e contando a sua própria história nos telejornais. Para quem tem curiosidade sobre como uma única pessoa pode tornar refém um país inteiro durante anos, sugiro a série documental da Netflix, Como se Tornar um Tirano.

Portanto, quem espera que Putin caia para resolver o problema da guerra na Ucrânia, talvez seja melhor puxar um banquinho e esperar sentado.

Malvinas e Ucrânia: a história se repete?

Um governo autoritário se lança em uma aventura militar para galvanizar o sentimento patriótico da população e, assim, desviar a atenção de seus problemas internos. Não, não estamos nos referindo à invasão da Ucrânia pela Russia. Essa é a descrição da invasão das Malvinas pela Argentina em 1982.

Claro que todo paralelo histórico tem seus defeitos. No caso, a Ucrânia é um país soberano, ao passo que as Falklands (vou usar os dois nomes das ilhas para não parecer que estou tomando partido rsrsrs) são uma possessão do Reino Unido. Assim, a marinha da rainha veio em defesa do território invadido, ao passo que a Ucrânia precisa se virar sozinha, pois nem a OTAN pode lhe vir em socorro nessa hora. No entanto, os países do ocidente determinaram sanções que, no dizer de Putin, equivalem a uma declaração de guerra. Portanto, na prática, mesmo sendo um país soberano e não uma possessão, a Ucrânia pode contar, em certa medida, com o esforço de guerra do ocidente.

Outra característica que aparentemente enfraquece o paralelo são as motivações. Enquanto os generais argentinos enfrentavam crescente descontentamento interno e usaram a guerra para prolongar a sua sobrevida, Putin, em tese, contava com razoável apoio interno e, segundo uma parcela significativa dos analistas ocidentais, teria feito esse movimento para proteger seu território contra o avanço da OTAN. O curioso, no entanto, é que o discurso de Putin não tem sido esse. Naquela longa aparição na semana da invasão, o líder russo gasta a sua saliva para contar a história da grande Mãe Rússia, e de como a Ucrânia faz parte inseparável dessa história. Longe, portanto, de uma posição defensiva. Assim como Galtieri não levantou a possibilidade de uma invasão da Argentina pelo Reino Unido para justificar a operação, da mesma forma Putin não usou a carta da defesa como justificativa para a invasão da Ucrânia. Mesmo porque, a possibilidade de uma invasão da Rússia pela OTAN é tão alta como a possibilidade de uma invasão da Argentina pelo Reino Unido. O contrário, como se viu, não é verdadeiro.

Mas, apesar dessas possíveis falhas no paralelo (e que, como vimos, com um pouco de esforço podem ser superadas), há uma semelhança entre os dois eventos a que seria bom estarmos todos atentos: um dos dois lados necessariamente sairá derrotado e humilhado deste evento. A não ser que a Ucrânia seja um país de schrödinger, ao final da guerra os ucranianos terão um país soberano ou um país submetido às regras de Moscou. No primeiro caso, Putin, assim como ocorreu com Galtieri, cairá e, com ele, o seu sistema de governo. No segundo caso, os governos ocidentais observarão, constrangidos e sem margem de manobra, a Rússia com o domínio sobre um país antes soberano.

Claro que há nuances. A hipotética vitória russa não será tão clara em um primeiro momento. As tropas de Putin podem tomar Kiev e instalar um governo fantoche sem que os governos ocidentais reconheçam a sua vitória. Neste caso, as sanções econômicas poderiam perdurar por anos, sem que nenhum dos dois lados cedesse (vide os casos de Venezuela e Irã). Não se trata de uma perspectiva muito boa para a economia global, mas é uma possibilidade real.

Outra nuance importante é que, hipoteticamente, pode se chegar a uma solução de compromisso, com a Ucrânia cedendo os territórios do sudeste mais a Crimeia para a Rússia, além do compromisso de não aderir à OTAN, em troca de sua soberania para aderir à União Europeia. No entanto, neste caso, a aparente saída honrosa, na verdade, seria uma vitória superlativa da Rússia. Com a força das armas, arrancou territórios e o compromisso de um país soberano sobre o seu próprio destino. Antes da guerra, a Ucrânia poderia fazer o que bem entendesse. Depois da guerra, a Ucrânia não pode aderir à OTAN e, ainda mais, perdeu territórios. Gostaria de ver algum país ocidental defendendo que essa solução não significa uma derrota humilhante. Além disso, existe uma fila de países no mundo com vontade de aumentar os seus territórios pela força das armas, a começar pela China.

Dadas as consequências, o melhor resultado é a derrota da Rússia e a queda do regime. No entanto, é difícil saber como se comportará um país derrotado de forma humilhante pela segunda vez em 30 anos. Não seria um problema, não fosse a presença do segundo maior arsenal nuclear do planeta.

Não há saída não humilhante

Essa história de que o governo russo agora admite não derrubar Zelensky é tão crível quanto as promessas de que não haveria invasão, mesmo acumulando tropas nas fronteiras. Putin realmente estaria satisfeito com um pedaço de papel assinado por Zelensky abrindo mão da adesão à OTAN? E, se fosse somente pelas províncias russas orientais, não precisaria ter ocorrido uma invasão de grandes proporções, vide Crimeia.

E falta um ator na mesa de negociações: os EUA. Estariam Biden e seus aliados dispostos a abrirem mão das sanções na hipótese de Zelensky topar abrir mão da OTAN sob a mira de uma baioneta? A Rússia voltaria normalmente ao convívio das nações depois de ter conseguido o seu objetivo usando a sua máquina de guerra contra uma nação soberana? No momento em que os países ocidentais assumiram um lado no conflito, amarraram o seu destino a esse lado e fazem parte da guerra. Não à toa, Putin considerou as sanções como um ato de guerra.

Posso estar enganado, mas acho que estamos em uma situação em que não há saída não humilhante para nenhum dos lados. Putin não consegue voltar ao status quo anterior somente com uma promessa nas mãos, assim como é difícil que Biden e seus aliados levantem as sanções sem que Putin volte ao status quo anterior. Por outro lado, não há guerra sem vitoriosos e derrotados. Portanto, um dos lados vai ceder no final. Ainda não está claro quem vai ceder e quando, e as consequências do novo arranjo para o futuro.

Putin merecia o benefício da dúvida?

Em meu último artigo sobre a guerra, desenvolvi a hipótese de que os países do leste europeu poderiam ter o mesmo destino da Ucrânia se não tivessem se aliado à OTAN. A evidência, para mim, foi justamente o fato de esses países QUEREREM se aliar à OTAN, mesmo conhecendo o risco de serem mal-entendidos pela Rússia. Supus que ninguém conhece melhor a “alma russa” do que os seus vizinhos.

Pois bem, fui inundado de artigos de respeitados especialistas afirmando o contrário (como se eu já não tivesse lido todos eles): que a Rússia estava quieta no seu canto, e foi provocada pela OTAN. Hoje, o Estadão traz uma entrevista com um especialista em Rússia, que nao não é um zé mané palpiteiro como eu, e que tem o mesmo ponto de vista do meu artigo.

Significa que ele está certo? Não. Significa apenas que essa é uma discussão em aberto. A história é uma ciência em que o contrafactual é impossível. Portanto, quem afirma com certeza que “teria acontecido isso se aquilo”, ou “não teria acontecido isso se não aquilo” está apenas chutando, por mais especialista que seja.

Historiador é como economista: é muito bom para explicar o passado, mas péssimo para desenhar o futuro. Existe um viés bem conhecido em investimentos chamado “hindsight”. Esse viés nos leva a acreditar que eventos que ocorreram eram óbvios, dava para prever com relativa facilidade. Como sempre vai haver um historiador ou um economista que “previu” aquele cenário (tem sempre um monte de gente falando um monte de coisa), o que foi dito é recuperado e toma ares de profecia, com a ilusão da previsibilidade se estabelecendo. Falta, obviamente, o contrafactual: o que teria acontecido se as premissas da previsão não tivessem se concretizado.

Portanto, é preciso tomar cuidado ao concluir rapidamente sobre a direção da causalidade em eventos históricos. É possível que Putin estivesse agora em seu canto se a OTAN limitasse a sua presença às fronteiras da Alemanha? Sim. Assim como é possível que estivesse agora bombardeando Varsóvia, como está fazendo em Kiev. Tudo é possível. E, como tudo é possível, os países do leste europeu não quiseram jogar com a sorte. Não acho uma atitude condenável.

Você compraria um carro usado deste homem?

Na batalha das narrativas sobre a guerra na Ucrânia, ganhou força na esquerda uma que coloca a culpa do conflito, adivinha, nas costas dos Estados Unidos.

A narrativa é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da União Soviética, estavam os russos quietos no seu canto, lambendo as feridas do orgulho ferido por terem sido rebaixados de superpotência para mercado emergente, quando os Estados Unidos, do nada, levam a OTAN até o quintal dos russos. Estes, sentindo-se ameaçados, desenharam uma linha vermelha na Ucrânia e, quando esta ameaçou juntar-se também à aliança ocidental, não restou outra alternativa a Putin do que ocupar o país vizinho. Que, by the way, historicamente faz parte da Rússia, como deixou claro o mandatário russo.

Para reforçar a imagem, perguntam, no melhor estilo xeque-mate, como os EUA reagiriam se o México fosse aliado da Rússia e esta colocasse mísseis nucleares ao longo do Rio Grande, a poucos minutos das grandes cidades americanas. A conclusão, óbvia, é que os Estados Unidos não deixariam a coisa chegar neste ponto, e invadiriam o México para evitar que isso acontecesse.

O que dizer?

Bem, essa narrativa seria uma versão crível dos fatos se tivesse alguma lógica. Para entender por que se trata de uma versão discutível dos fatos, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para 1949, quando a OTAN é constituída.

A Europa vinha de uma guerra terrível em várias dimensões. Havia uma unanimidade em torno da ideia de que era necessária uma estrutura militar permanente que prevenisse que algo semelhante ocorresse novamente. O diagnóstico é que o militarismo nacionalista, concretizado na ascensão nazista na Alemanha, precisaria ser evitado a todo custo. Para isso, duas coisas eram necessárias: uma presença militar norte-americana permanente no continente europeu e uma maior integração europeia em torno de ideias democráticos. A presença norte-americana foi uma quebra de paradigma, pois os EUA sempre resistiram muito a sair de seu casulo, tendo sua entrada na 2a guerra sido feita a fórceps. E a ideia de uma integração europeia com suporte em uma aliança militar era nada mais do que uma rendição ao fato de que boas intenções somente se concretizam na base da, digamos, dissuasão militar.

O estabelecimento da OTAN se precipita em 1949, quando a União Soviética testa a primeira bomba nuclear. Os EUA não eram mais a única potência nuclear, e os europeus ficam alarmados. Este é um primeiro fato importantíssimo para entender o que vem a seguir. Os europeus (no caso, Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido) não buscam a União Soviética como aliada, mas os Estados Unidos. Parece uma escolha óbvia e natural, mas não é. A União Soviética foi aliada dos Estados Unidos e Reino Unido contra a Alemanha. Mas aquela aliança havia sido circunstancial; a União Soviética tinha um regime completamente alienígena ao espírito da aliança militar que se estava formando. É bom sempre ter isso em mente quando analisamos os acontecimentos que se seguiram desde então: não estamos falando de dois polos opostos e equivalentes. Não. De um lado temos uma aliança eminentemente defensiva, que tem como objetivo evitar o ressurgimento do militarismo nacionalista e suportar a integração do continente europeu em torno de ideias democráticos. Do outro, temos uma ditadura sanguinária, que tem como objetivo implementar o regime comunista a ferro e fogo, e que não tem pudor em usar o peso da máquina estatal contra seus próprios cidadãos para atingir seus objetivos. Portanto, não se tratava de dois polos opostos simétricos, cada um buscando seus próprios interesses, com se tanto fizesse que o mundo, hoje, fosse dominado pelos Estados Unidos ou pela União Soviética.

A OTAN, portanto, foi formada com os objetivos de evitar uma escalada militarista nacionalista e promover a integração europeia, aos quais foi acrescentado um terceiro objetivo: fazer frente à agressividade (agora nuclear) da União Soviética. Este terceiro objetivo acabou por ser o dominante nos anos seguintes, até 1991, quando a União Soviética desaparece. Mas é bom ter em mente os dois primeiros objetivos quando nos determos sobre os acontecimentos pós-1991.

A história segue e, em 1955, a Alemanha Ocidental adere à OTAN, o que leva a União Soviética a estabelecer, em seguida, o Pacto de Varsóvia, a união militar da URSS com seus satélites. Sim, aqui temos uma reação da União Soviética a uma ação dos Estados Unidos. Mas, para entender esse movimento da OTAN, é preciso voltar um pouco no tempo, para 1945, quando se encerra a 2ª Guerra. As potências aliadas dividem a Alemanha em 4 zonas administrativas, cada uma delas controladas, respectivamente, por Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Com o passar do tempo, foi ficando claro que os países democráticos estavam de um lado e a União Soviética estava do outro. Em 1949, dois países surgiram no lugar da antiga Alemanha: a Alemanha Ocidental, correspondente à ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França, e a Alemanha Oriental, correspondente à ocupação da União Soviética. A Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer, percebendo o risco de um enclave soviético em sua fronteira (a Alemanha Oriental), solicitou a admissão na OTAN. Portanto, a admissão na OTAN veio em resposta à presença ameaçadora de uma potência nuclear não confiável em suas fronteiras. Este mesmo tipo de raciocínio servirá como base para os pedidos de admissão pela OTAN dos antigos membros do Pacto de Varsóvia e das antigas repúblicas soviéticas anos depois. Tudo se resume na palavra CONFIANÇA. Voltaremos a isso mais à frente.

Avançando no tempo, temos a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. A Federação Russa, ou simplesmente Rússia, passa a ser a herdeira da antiga União Soviética. Sob a liderança de Boris Yeltsin, a Rússia parece ter se tornado um país democrático e capitalista, o que fez com que Francis Fukuyama escrevesse, em 1992, o seu famoso ensaio “O Fim da História”, tomando como certa a vitória do regime democrático sobre o autoritário, e do capitalismo sobre o socialismo, para todos os efeitos práticos. Esta leitura, vista de hoje, parece um tanto ingênua, ainda que, de fato, até a China seja capitalista hoje em dia. Mas um mundo liderado por apenas uma superpotência benigna, em uma espécie de “pax americana”, parece uma visão cada vez mais distante da realidade.

Voltando. Todos sabemos em que direção as pessoas correram quando o muro de Berlim caiu. Da mesma forma, os antigos países do Pacto de Varsóvia procuraram correr para longe da esfera russa assim que puderam. Novamente: é interessante observar que países como Grécia ou Turquia, que faziam parte da OTAN desde 1952, não se interessaram em correr para o colo da Rússia. Mas Polônia, República Tcheca e Romênia correram para o colo dos Estados Unidos em 1999, sendo admitidas pela OTAN naquele ano.

Alguns podem se perguntar por que a OTAN não seguiu o mesmo caminho do Pacto de Varsóvia, e foi simplesmente desativada com o fim da União Soviética. Para entender por que isso aconteceu, é útil voltar lá no início do texto, e relembrar os objetivos fundantes da OTAN: evitar uma escalada nacionalista militar na Europa e suportar militarmente a integração europeia. Para entender por que estes dois objetivos ainda davam sentido à existência da OTAN, basta lembrar que a 2ª Guerra havia terminado há menos de 50 anos, e ainda estava viva na memória os seus horrores. Assim, a presença militar norte-americana no continente europeu e a adesão de mais países ao tratado ornava com os objetivos de manter a paz no continente. Como sabemos, o preço da paz é a eterna vigilância.

Nesse sentido, é digno de registro o estabelecimento, em 2002, de um Conselho OTAN-Rússia, em que a Rússia, já sob a direção de Putin, foi colocada em igualdade de condições com os outros membros da aliança para discutir questões de segurança. Este Conselho ainda existe formalmente, mas perdeu totalmente o seu sentido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. No site do Conselho, o último documento disponível é de 2013. De qualquer forma, fica claro que os objetivos da OTAN incluíam a cooperação com a Rússia, em busca da manutenção da paz no continente europeu.

A OTAN, em linha com seus objetivos, sempre deixou as portas abertas para o ingresso de novos membros. A pergunta, portanto, não é porque a OTAN (leia-se Estados Unidos) admitiu países do Pacto de Varsóvia em 1999 e antigas repúblicas socialistas em 2004. A pergunta correta é: porque esses países ESCOLHERAM fazer parte da OTAN.

Como mencionado acima, a palavra-chave é CONFIANÇA. No final do dia, tudo se resume a saber de quem você compraria um carro usado, de Putin ou de Biden. Não que Biden (ou Trump, ou qualquer outro ex-presidente norte-americano) seja pessoalmente mais confiável do que Putin. A questão são os pesos e contrapesos que só regimes democráticos maduros são capazes de garantir. Biden não é um ditador, assim como não foram nenhum dos seus antecessores (o que às vezes exaspera quem espera soluções “rápidas” para os problemas), de modo que a estrutura é mais confiável do que a estrutura russa de poder. É por isso, e somente por isso, que Letônia, Estônia, Lituânia e uma longa lista de países procuraram proteção no guarda-chuva da OTAN. Os ucranianos devem estar se lamentando não terem sido tão ágeis quanto seus antigos companheiros de União Soviética.

Da forma como está sendo contada a versão da “Rússia defendendo-se de uma ameaça ocidental” para justificar o ataque à Ucrânia, a coisa parece uma profecia autorrealizada: com medo da Rússia, os países da antiga União Soviética correram para a OTAN, o que fez com que a Rússia efetivamente atacasse, confirmando os receios que levaram os países do leste europeu a fazer o movimento que fizeram. Segundo essa versão, se esses países tivessem ficado no seu canto, Putin agora estaria se dedicando a fazer bolinhos de chuva e tricotando no Kremlin.

É esta parte da versão que não é crível. Putin nunca foi confiável. Semana passada, a Economist publicou artigo da primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, que chamou Putin de um “mentiroso patológico”. Segundo ela, ditadores só conhecem o idioma da brutalidade. Sim, a Lituânia pegou a boia salva-vidas da OTAN em 2004.

Alguém poderá dizer que é compreensível o temor das ex-repúblicas soviéticas, o que não é compreensível é que a OTAN tenha provocado o tigre com vara curta. Quem faz esse raciocínio não entende a lógica do nacionalismo militarista, justamente aquele que a OTAN tem como objetivo combater: a chance de surgimento de um regime doidivanas é tanto menor quantos mais países são agregados ao guarda-chuva militar. Não é à toa que, em seu site, a OTAN afirma que “está aberta a qualquer outra nação europeia em posição de implementar os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”.

A pergunta correta, portanto, é quem é a Rússia na fila do pão para impedir que a Ucrânia faça a sua adesão à OTAN. O raciocínio da guerra fria, de que o avanço da OTAN significa uma ameaça existencial à Rússia faz sentido somente na cabeça paranoica de um ditador tirânico. Que Putin pense assim, é compreensível. Que analistas ocidentais, movidos por um anti-americanismo atávico, comprem essa narrativa, é de chorar.

Os Estados Unidos e seus aliados não são anjos de bondade, todos têm os seus interesses e seus erros históricos. Isso é uma coisa. Outra coisa é colocar os regimes democráticos ocidentais no mesmo nível de confiabilidade da governança russa, como se se tratasse de uma simetria perfeita. Não é. A democracia tem muitos defeitos, mas, como dizia Churchill, é o pior regime com exceção de todos os outros. Isso inclui o autoritarismo russo, que não é confiável de maneira alguma.

O verdadeiro culpado pela volta do PT

Em meu post de ontem, em que crítico a fala do presidente defendendo neutralidade em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, muitos contra-argumentaram que o Brasil votou a favor da condenação do ataque no Conselho de Segurança da ONU, que é o fórum que importa. Portanto, seria uma má vontade com o presidente pinçar uma frase dita à beira da praia durante o carnaval e simplesmente esquecer o voto do Brasil na ONU.

Pode parecer algo bobo, sem importância, mas essa dicotomia diz muito sobre o presidente e sua torcida organizada. Vejamos.

O primeiro ponto importante a considerar é que estamos diante de dois fatos que pertencem ao mundo real. De fato, o presidente afirmou que o Brasil deveria buscar a neutralidade e, de fato, o Brasil votou pela condenação ao ataque no Conselho de Segurança. Devemos concordar, de início, que estes dois fatos são reais, aconteceram. O primeiro objetivo, portanto, é tentar entender porque o voto brasileiro no Conselho de Segurança não ornou com as declarações do presidente. Temos três hipóteses.

A primeira hipótese é que a diplomacia brasileira não segue a orientação do presidente. Seguisse e fosse coerente com o discurso de neutralidade, teria optado pela abstinência na votação da ONU, como fizeram China, Índia e Emirados Árabes.

A segunda hipótese é que, por algum misterioso motivo, o presidente falou uma coisa na praia, mas orientou o seu oposto para a diplomacia. Uma possível explicação para essa dicotomia é que Bolsonaro detesta entrar em conflito com grupos de interesse. Quando se trata de confrontar a esquerda ou o politicamente correto, não tem pra ninguém. Mas quando a situação exige confrontar corporações do serviço público ou lobbies, Bolsonaro sempre procura contemporizar. Vimos isso acontecer, por exemplo, durante a tramitação da reforma da Previdência, em que as declarações do presidente frequentemente iam de encontro ao projeto do próprio governo. Nesse caso, não seria mera coincidência a citação aos fertilizantes, uma pauta cara ao setor do agribusiness.

Por fim, a terceira hipótese é de que o presidente se arrependeu da posição do Brasil na ONU. As declarações se deram após a votação, e esse lapso temporal explicaria a mudança de posição.

Em qualquer das três hipóteses, o voto no Conselho de Segurança não serve como alívio para a fala do presidente. Na primeira hipótese, porque o voto não teria sido orientado pelo presidente. Na segunda, por que se trataria de uma forma de dissimular a verdadeira posição do governo no assunto, como se falar uma coisa e fazer outra passasse despercebido. E, na terceira, porque teria havido arrependimento, o que revelaria a sua posição mais atual sobre o tema.

Para terminar, um palavra final sobre a torcida organizada. Criticar o presidente da República, qualquer que seja ele, é uma prerrogativa que assiste a qualquer pessoa em regimes democráticos. Isso não significa que se vai automaticamente votar em seu oposto. Se eu deixo de escrever as minhas críticas, não significa que o comportamento criticável desaparecerá. As pessoas observam e tomam as suas posições. Há uma tentativa de inversão da culpa: o culpado pela derrota eleitoral do presidente seria aquele que escreve sobre o comportamento do presidente e não o próprio presidente, autor do comportamento.

Costuma-se dizer que o “culpado” pela eleição de Bolsonaro foi o próprio PT, com sua montanha de erros acumulados. Da mesma forma, o culpado pela eventual volta do PT serão tão somente os erros acumulados do presidente. Não culpem o mensageiro.

Trocando a democracia por fertilizantes

Após o término da 2a Guerra, meus avós maternos, tendo sobrevivido aos campos de concentração nazistas, reconstruíram suas vidas em Łódź, na Polônia. A vida voltou ao normal durante alguns anos.

No entanto, em 1956, os húngaros armaram uma revolta popular contra o governo comunista do país. A União Soviética veio em socorro e ajudou o governo húngaro a esmagar a revolta. Era a primeira vez que tropas de um país invadiam o território de outro em solo europeu desde o fim da guerra. A revolta na Hungria havia sido inspirada por outra na Polônia alguns meses antes, que substituiu o governo de corte stalinista por outro em comum acordo com a União Soviética.

Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Meu avô, observando os acontecimentos, teve receio de que a União Soviética endurecesse o regime. Ainda estava fresca em sua memória as atrocidades das tropas soviéticas na 2a guerra, que não foram exatamente gentis com os judeus. Fugir dos nazistas para cair nas mãos dos soviéticos não estava em seus planos. Foi assim que decidiram migrar para o Brasil em 1957.

Com todas as seus evidentes limitações, a democracia é superior a qualquer outro regime de governo quando a liberdade está no topo dos valores. Meus avós vieram para o Brasil porque não queriam viver novamente em um país onde não pudessem levar suas vidas em paz. A invasão da Ucrânia pela Rússia faz recordar justamente esse tempo.

Por tudo isso, fico abismado quando um presidente que tem a palavra “liberdade” na boca de maneira tão fácil e frequente, subordine a luta pela liberdade de um povo ao comércio de fertilizantes. É simplesmente chocante. Do jeito que o barco da guerra está andando, é possível que a profecia de Churchill novamente se confirme: entre a desonra e a falta de fertilizantes, escolheu a desonra, e terá a falta de fertilizantes.

As chances de uma guerra nuclear

Um desequilibrado que entra em um shopping lotado amarrado com explosivos e dizendo que vai levar tudo para os ares se não lhe permitirem assaltar as lojas só terá sucesso em seu intento se a sua ameaça for crível. Ou seja, se as pessoas acreditarem que se trata realmente de um potencial suicida que está disposto a cumprir a sua ameaça.

O fato de termos mais de uma potência nuclear faz com que as armas nucleares funcionem mais ou menos como o cinturão de explosivos amarrado à cintura. Qualquer um dos lados que aperte o botão estará assinando a própria sentença de morte. Como, em princípio, não há nenhum desequilibrado mental à frente de uma potência nuclear a ponto de condenar suas próprias cidades à mais horrível das mortes, os arsenais nucleares servem somente para efeitos dissuasórios. Ou seja, para transformar qualquer ataque nuclear em uma ação suicida. Não por outro motivo, na única ocasião em que uma bomba nuclear foi lançada sobre uma cidade, a potência atacante era a única que dominava a tecnologia. Pouquíssimo provável que o ataque tivesse ocorrido se o Japão pudesse revidar, jogando uma bomba atômica sobre, por exemplo, Los Angeles.

Portanto, esqueça essa história de arsenal nuclear. O que realmente importa são as forças convencionais. Aliás, se bomba atômica resolvesse guerra, o investimento em armamentos convencionais seria um desperdício de dinheiro. A Rússia sabe disso. E, mesmo sendo um país com PIB bem menor do que seus adversários da aliança ocidental (mais exatamente, 27 vezes menor), conta com um arsenal de respeito. No gráfico abaixo, podemos observar o poder de fogo da OTAN e da Rússia. Acrescentei uma coluna da OTAN sem EUA e Canadá, dado que o engajamento de forças do outro lado do Atlântico é mais complexo.

Chama a atenção o número de equipamentos de terra (tanques), que praticamente se iguala a toda a aliança ocidental. De qualquer modo, parece claro que, em uma guerra total entre Rússia e OTAN, a vitória seria da aliança ocidental, mas não seria um passeio no parque.

Antes de continuar, um parênteses. A Alemanha anunciou um aumento de praticamente 50% em seus gastos militares. Hoje, a Alemanha tem um budget de US$ 50 bilhões, aumentaria para algo como US$ 75 bilhões. Parece muito, não é mesmo? Bem, esse novo montante seria algo como 2% do PIB alemão. A Rússia gasta cerca de 9% de seu PIB com defesa, o que resulta em US$ 150 bilhões. Os EUA gastam 3,5% do seu PIB com defesa, US$ 770 bilhões. Não é à toa que o Trump reclamava que os EUA levavam a OTAN nas costas. Fecha parêteses.

A Rússia, hoje, tem um poder militar convencional de respeito. Invadiu um país soberano e pode derrubar o seu governo porque tem essa força militar, e porque a OTAN não quer se envolver militarmente com um país não-membro da aliança. Aliás, outro parênteses: não deixa de ser curioso que as forças chamadas democráticas deixem de defender militarmente uma democracia agredida somente pelo fato de não haver um pedaço de papel assinado. É uma bela desculpa. Fecha parênteses.

A questão que tira o sono é até que ponto Putin estaria disposto a atacar um membro da OTAN para melhorar a sua própria segurança. Os países bálticos (Estônia, Lituânia, Letônia) são os alvos mais óbvios, por fazerem fronteira. Caso ocorra este movimento, o que parece pouco provável visto de hoje, talvez tenhamos uma guerra de grandes proporções na Europa. Mas não estaremos, por isso, mais próximos de uma catástrofe nuclear. Tratar-se-á de uma guerra convencional, como as que tivemos no passado, ainda que com tecnologia superior e ainda que seja entre potências nucleares. Ninguém vai apertar o botão, pois isso significaria suicidio.

A menos que apostemos que a psicopatia tenha definitivamente tomado o lugar da brutal razão geopolítica.

Apertando o torniquete

O Banco Central Russo aumentou a taxa Selic deles de 9,5% para 20%. Além disso, obrigou que todas as empresas exportadoras convertam ao menos 80% de suas receitas para rublos, não sendo permitido manter esse montante no exterior.

Essas medidas fazem o receituário clássico de economias quebradas, sem reservas, como a Argentina. Não são compatíveis com uma economia que tem mais de US$600 bilhões de reservas e superávit no balanço de pagamentos. O que aconteceu com “as grandes reservas” que permitiriam à Rússia lutar meses, ou mesmo anos, sem se preocupar com suas finanças?

Simples: como todo país emergente, a moeda da Rússia é um mero papel pintado. Portanto, suas reservas estão em moedas como dólar, euro e libra esterlina. Ocorre que reservas nessas moedas foram congeladas no sábado, o que representa, mais ou menos, 2/3 de todas as reservas russas. Sobraram basicamente reservas em ouro e moedas inúteis, como o iuan chinês, que, como moeda de festa junina, só pode ser usado no arraial chinês. E o ouro, só dá pra vender no mercado negro. Enfim, para todos os efeitos, a Rússia ficou sem reservas para defender a sua moeda, que já ultrapassou 100 rublos por dólar.

Parece que as tais sanções financeiras estão realmente apertando o torniquete de Putin. Vamos ver as cenas dos próximos capítulos.