Na batalha das narrativas sobre a guerra na Ucrânia, ganhou força na esquerda uma que coloca a culpa do conflito, adivinha, nas costas dos Estados Unidos.
A narrativa é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da União Soviética, estavam os russos quietos no seu canto, lambendo as feridas do orgulho ferido por terem sido rebaixados de superpotência para mercado emergente, quando os Estados Unidos, do nada, levam a OTAN até o quintal dos russos. Estes, sentindo-se ameaçados, desenharam uma linha vermelha na Ucrânia e, quando esta ameaçou juntar-se também à aliança ocidental, não restou outra alternativa a Putin do que ocupar o país vizinho. Que, by the way, historicamente faz parte da Rússia, como deixou claro o mandatário russo.
Para reforçar a imagem, perguntam, no melhor estilo xeque-mate, como os EUA reagiriam se o México fosse aliado da Rússia e esta colocasse mísseis nucleares ao longo do Rio Grande, a poucos minutos das grandes cidades americanas. A conclusão, óbvia, é que os Estados Unidos não deixariam a coisa chegar neste ponto, e invadiriam o México para evitar que isso acontecesse.
O que dizer?
Bem, essa narrativa seria uma versão crível dos fatos se tivesse alguma lógica. Para entender por que se trata de uma versão discutível dos fatos, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para 1949, quando a OTAN é constituída.
A Europa vinha de uma guerra terrível em várias dimensões. Havia uma unanimidade em torno da ideia de que era necessária uma estrutura militar permanente que prevenisse que algo semelhante ocorresse novamente. O diagnóstico é que o militarismo nacionalista, concretizado na ascensão nazista na Alemanha, precisaria ser evitado a todo custo. Para isso, duas coisas eram necessárias: uma presença militar norte-americana permanente no continente europeu e uma maior integração europeia em torno de ideias democráticos. A presença norte-americana foi uma quebra de paradigma, pois os EUA sempre resistiram muito a sair de seu casulo, tendo sua entrada na 2a guerra sido feita a fórceps. E a ideia de uma integração europeia com suporte em uma aliança militar era nada mais do que uma rendição ao fato de que boas intenções somente se concretizam na base da, digamos, dissuasão militar.
O estabelecimento da OTAN se precipita em 1949, quando a União Soviética testa a primeira bomba nuclear. Os EUA não eram mais a única potência nuclear, e os europeus ficam alarmados. Este é um primeiro fato importantíssimo para entender o que vem a seguir. Os europeus (no caso, Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido) não buscam a União Soviética como aliada, mas os Estados Unidos. Parece uma escolha óbvia e natural, mas não é. A União Soviética foi aliada dos Estados Unidos e Reino Unido contra a Alemanha. Mas aquela aliança havia sido circunstancial; a União Soviética tinha um regime completamente alienígena ao espírito da aliança militar que se estava formando. É bom sempre ter isso em mente quando analisamos os acontecimentos que se seguiram desde então: não estamos falando de dois polos opostos e equivalentes. Não. De um lado temos uma aliança eminentemente defensiva, que tem como objetivo evitar o ressurgimento do militarismo nacionalista e suportar a integração do continente europeu em torno de ideias democráticos. Do outro, temos uma ditadura sanguinária, que tem como objetivo implementar o regime comunista a ferro e fogo, e que não tem pudor em usar o peso da máquina estatal contra seus próprios cidadãos para atingir seus objetivos. Portanto, não se tratava de dois polos opostos simétricos, cada um buscando seus próprios interesses, com se tanto fizesse que o mundo, hoje, fosse dominado pelos Estados Unidos ou pela União Soviética.
A OTAN, portanto, foi formada com os objetivos de evitar uma escalada militarista nacionalista e promover a integração europeia, aos quais foi acrescentado um terceiro objetivo: fazer frente à agressividade (agora nuclear) da União Soviética. Este terceiro objetivo acabou por ser o dominante nos anos seguintes, até 1991, quando a União Soviética desaparece. Mas é bom ter em mente os dois primeiros objetivos quando nos determos sobre os acontecimentos pós-1991.
A história segue e, em 1955, a Alemanha Ocidental adere à OTAN, o que leva a União Soviética a estabelecer, em seguida, o Pacto de Varsóvia, a união militar da URSS com seus satélites. Sim, aqui temos uma reação da União Soviética a uma ação dos Estados Unidos. Mas, para entender esse movimento da OTAN, é preciso voltar um pouco no tempo, para 1945, quando se encerra a 2ª Guerra. As potências aliadas dividem a Alemanha em 4 zonas administrativas, cada uma delas controladas, respectivamente, por Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Com o passar do tempo, foi ficando claro que os países democráticos estavam de um lado e a União Soviética estava do outro. Em 1949, dois países surgiram no lugar da antiga Alemanha: a Alemanha Ocidental, correspondente à ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França, e a Alemanha Oriental, correspondente à ocupação da União Soviética. A Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer, percebendo o risco de um enclave soviético em sua fronteira (a Alemanha Oriental), solicitou a admissão na OTAN. Portanto, a admissão na OTAN veio em resposta à presença ameaçadora de uma potência nuclear não confiável em suas fronteiras. Este mesmo tipo de raciocínio servirá como base para os pedidos de admissão pela OTAN dos antigos membros do Pacto de Varsóvia e das antigas repúblicas soviéticas anos depois. Tudo se resume na palavra CONFIANÇA. Voltaremos a isso mais à frente.
Avançando no tempo, temos a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. A Federação Russa, ou simplesmente Rússia, passa a ser a herdeira da antiga União Soviética. Sob a liderança de Boris Yeltsin, a Rússia parece ter se tornado um país democrático e capitalista, o que fez com que Francis Fukuyama escrevesse, em 1992, o seu famoso ensaio “O Fim da História”, tomando como certa a vitória do regime democrático sobre o autoritário, e do capitalismo sobre o socialismo, para todos os efeitos práticos. Esta leitura, vista de hoje, parece um tanto ingênua, ainda que, de fato, até a China seja capitalista hoje em dia. Mas um mundo liderado por apenas uma superpotência benigna, em uma espécie de “pax americana”, parece uma visão cada vez mais distante da realidade.
Voltando. Todos sabemos em que direção as pessoas correram quando o muro de Berlim caiu. Da mesma forma, os antigos países do Pacto de Varsóvia procuraram correr para longe da esfera russa assim que puderam. Novamente: é interessante observar que países como Grécia ou Turquia, que faziam parte da OTAN desde 1952, não se interessaram em correr para o colo da Rússia. Mas Polônia, República Tcheca e Romênia correram para o colo dos Estados Unidos em 1999, sendo admitidas pela OTAN naquele ano.
Alguns podem se perguntar por que a OTAN não seguiu o mesmo caminho do Pacto de Varsóvia, e foi simplesmente desativada com o fim da União Soviética. Para entender por que isso aconteceu, é útil voltar lá no início do texto, e relembrar os objetivos fundantes da OTAN: evitar uma escalada nacionalista militar na Europa e suportar militarmente a integração europeia. Para entender por que estes dois objetivos ainda davam sentido à existência da OTAN, basta lembrar que a 2ª Guerra havia terminado há menos de 50 anos, e ainda estava viva na memória os seus horrores. Assim, a presença militar norte-americana no continente europeu e a adesão de mais países ao tratado ornava com os objetivos de manter a paz no continente. Como sabemos, o preço da paz é a eterna vigilância.
Nesse sentido, é digno de registro o estabelecimento, em 2002, de um Conselho OTAN-Rússia, em que a Rússia, já sob a direção de Putin, foi colocada em igualdade de condições com os outros membros da aliança para discutir questões de segurança. Este Conselho ainda existe formalmente, mas perdeu totalmente o seu sentido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. No site do Conselho, o último documento disponível é de 2013. De qualquer forma, fica claro que os objetivos da OTAN incluíam a cooperação com a Rússia, em busca da manutenção da paz no continente europeu.
A OTAN, em linha com seus objetivos, sempre deixou as portas abertas para o ingresso de novos membros. A pergunta, portanto, não é porque a OTAN (leia-se Estados Unidos) admitiu países do Pacto de Varsóvia em 1999 e antigas repúblicas socialistas em 2004. A pergunta correta é: porque esses países ESCOLHERAM fazer parte da OTAN.
Como mencionado acima, a palavra-chave é CONFIANÇA. No final do dia, tudo se resume a saber de quem você compraria um carro usado, de Putin ou de Biden. Não que Biden (ou Trump, ou qualquer outro ex-presidente norte-americano) seja pessoalmente mais confiável do que Putin. A questão são os pesos e contrapesos que só regimes democráticos maduros são capazes de garantir. Biden não é um ditador, assim como não foram nenhum dos seus antecessores (o que às vezes exaspera quem espera soluções “rápidas” para os problemas), de modo que a estrutura é mais confiável do que a estrutura russa de poder. É por isso, e somente por isso, que Letônia, Estônia, Lituânia e uma longa lista de países procuraram proteção no guarda-chuva da OTAN. Os ucranianos devem estar se lamentando não terem sido tão ágeis quanto seus antigos companheiros de União Soviética.
Da forma como está sendo contada a versão da “Rússia defendendo-se de uma ameaça ocidental” para justificar o ataque à Ucrânia, a coisa parece uma profecia autorrealizada: com medo da Rússia, os países da antiga União Soviética correram para a OTAN, o que fez com que a Rússia efetivamente atacasse, confirmando os receios que levaram os países do leste europeu a fazer o movimento que fizeram. Segundo essa versão, se esses países tivessem ficado no seu canto, Putin agora estaria se dedicando a fazer bolinhos de chuva e tricotando no Kremlin.
É esta parte da versão que não é crível. Putin nunca foi confiável. Semana passada, a Economist publicou artigo da primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, que chamou Putin de um “mentiroso patológico”. Segundo ela, ditadores só conhecem o idioma da brutalidade. Sim, a Lituânia pegou a boia salva-vidas da OTAN em 2004.
Alguém poderá dizer que é compreensível o temor das ex-repúblicas soviéticas, o que não é compreensível é que a OTAN tenha provocado o tigre com vara curta. Quem faz esse raciocínio não entende a lógica do nacionalismo militarista, justamente aquele que a OTAN tem como objetivo combater: a chance de surgimento de um regime doidivanas é tanto menor quantos mais países são agregados ao guarda-chuva militar. Não é à toa que, em seu site, a OTAN afirma que “está aberta a qualquer outra nação europeia em posição de implementar os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”.
A pergunta correta, portanto, é quem é a Rússia na fila do pão para impedir que a Ucrânia faça a sua adesão à OTAN. O raciocínio da guerra fria, de que o avanço da OTAN significa uma ameaça existencial à Rússia faz sentido somente na cabeça paranoica de um ditador tirânico. Que Putin pense assim, é compreensível. Que analistas ocidentais, movidos por um anti-americanismo atávico, comprem essa narrativa, é de chorar.
Os Estados Unidos e seus aliados não são anjos de bondade, todos têm os seus interesses e seus erros históricos. Isso é uma coisa. Outra coisa é colocar os regimes democráticos ocidentais no mesmo nível de confiabilidade da governança russa, como se se tratasse de uma simetria perfeita. Não é. A democracia tem muitos defeitos, mas, como dizia Churchill, é o pior regime com exceção de todos os outros. Isso inclui o autoritarismo russo, que não é confiável de maneira alguma.